História e historiadores

Rogério Dezem (2006)

Nas palavras do escritor e político romano Cícero (106-43 a. C.), a História pode ser definida como a testemunha do passado, luz da verdade, vida da memória, mestra da vida, anunciadora dos tempos antigos (Historia testis temporum, lux veritatis, vita memoriae, magistra vitae, nuntia vetustatis), belas palavras que sobreviveram ao tempo e que podem nos dar uma amostra do grande âmbito e da importância que o estudo histórico comporta.

Mas quando e onde surgiram os primeiros "historiadores"? É quase uma unanimidade no Ocidente citar a figura do grego Heródoto (484-424a. C.) como o "Pai da História". Sua obra Histórias, cuja essência parte "de uma extraordinária combinação de cronologia, etnologia, geografia e poesia"[1], possui uma linguagem corrente e fácil de entender. Segundo estudiosos da obra de Heródoto, seu mérito é o de ser considerada uma "importante fonte de informações sobre o mundo antigo"[2] e a pioneira a se basear em uma narrativa de caráter histórico. Pois o "material" recolhido, ou seja, suas fontes, se encontravam a partir dos testemunhos verbais que o autor reuniu em suas várias viagens feitas pela Grécia antiga e pela Pérsia. No entanto, muito dos relatos contidos em Histórias tem caráter fantasioso, outros são inconsistentes, pois partem de julgamentos equivocados e da aceitação de fontes não confiáveis[3]. Desse modo, o período da Antiguidade Clássica éconsiderado o berço da Civilização Ocidental e, conseqüentemente, o marco inaugural da História Ocidental.

Por muitos séculos, o que hoje denominamos de História viveu à sombra de outras disciplinas (Teologia e Filosofia), pois seu caráter continuou navegando entre o sagrado (hagiografia, apologias) e o profano (crônicas, narrativas, cancioneiro, biografias, fantasia, literatura). No período do Renascimento (XIV-XVI) a Europa vai viver um momento de renovação de idéias, principalmente da racionalidade (ratio), baseada em pensadores da antiguidade clássica como os gregos Platão e Aristóteles. Neste contexto, o filósofo inglês sir Francis Bacon (1561-1626) deu uma importante contribuição aos estudos ligados às ciências humanas e, conseqüentemente, ao estudo da História. Em um trecho famoso, ao criticar os empiristas, ele parte de uma parábola para dar um objetivo ao que podemos chamar de pesquisa histórica. Vamos a ela:

"Existem os empiristas, que como formigas, simplesmente coletam dados para apresentar suas idéias e teses, já os teóricos puros podem ser comparados a aranhas cujas teias se originavam de seu próprio interior. Bacon recomendava o exemplo da abelha, que não se limita a procurar a matéria-prima; também a transforma".[4]

As artes, a literatura, as ciências, enfim, toda uma visão de mundo começava a se transformar. A História estava associada à Ciência Política (Maquiavel, Hobbes, Locke). Sempre coadjuvante, ou melhor, auxiliar de outras disciplinas consideradas "mais nobres" como a Filosofia, o Direito e depois a Economia, a História, como nós a conhecemos hoje, tinha ainda um longo caminho a trilhar até se firmar como uma disciplina baseada em metodologias e teorias para que pudesse ser considerada uma Ciência.

Foi no século XIX, considerado um dos períodos áureos das ciências humanas, que a Revolução Industrial Inglesa e os reflexos associados diretamente aos acontecimentos na América do Norte (Independência dos EUA, 1776) e a Europa (Revolução Francesa, 1789), imprimiram novos rumos aos estudos da História. É a partir deste contexto histórico que mesmo "hesitando entre arte literária e o conhecimento científico", ela "se torna matéria de ensino"[5].

Pensadores de origem germânica como Immanuel Kant(1724-1804), G.W. F. Hegel (1770-1831), Karl Marx (1818-1880) e Wilhelm Dilthey (1833-1911), desenvolvem conceitos como o idealismo, a dialética, o materialismo histórico e a verstehen, aplicados ao estudo da História. Na Inglaterra temos E. Gibbon (1737-1794), Thomas Babington Macaulay (1800-1859) e na França Jules Michelet (1798-1874) entre outros. No entanto a História recebe o seu estatuto de ciência a partir do historiador germânico Leopold Von Ranke (1795-1886). O método crítico de Ranke tornou-se o modelo de investigação histórica no século XIX na Alemanha e no mundo inteiro. Sua idéia principal se baseava na famosa afirmação de que os historiadores devem estudar "o passado como de fato foi" (wie es eigentlich gewesen) a partir de documentos que "devem falar por si só", ou seja, os historiadores devem tentar "oferecer uma representação factual do passado desprovida de seus pontos de vista, mas devem também ir além dos fatos e buscar as tendências gerais ou as idéias principais que conferem a um indivíduo ou a uma instituição sua personalidade".[6] Foi ainda no contexto da "história rankeana" (fim do século XIX), que as disciplinas da área das ciências humanas como a Sociologia, a Antropologia, a Psicologia, a Geografia e a História, se consolidaram como Scientia, a partir de metodologias e objetivos de estudo delineados. O caminho estava aberto.

O historiador inglês E.H. Carr (1892-1982) foi um dos grandes críticos da visão de História de Ranke, para Carr "os fatos não são averiguados da mesma forma e não 'falam por si mesmos'. Nem são inteiramente produto da criação dos historiadores. (...) os fatos existem à parte do historiador, embora só se tornem 'fatos históricos' quando são considerados historicamente significativos por seleção e interpretação". Segundo o autor da obra Que é História?(What is History?), os historiadores "ocupam-se do diálogo interminável entre o passado e o presente"[7] ·

Dessa forma, no século XX, os debates sobre a História e seus objetivos tomam rumos nunca antes vistos. Surgem novas teorias sobreHistoriografia (estudo da história do pensamento histórico) e sobreHistória, que vão desde a desqualificação do modelo rankeano, passando por várias interpretações da história de cunho marxista, até chegarmos no início da década de 1990 com a publicação de O Fim da História (The End of History, 1989) e de O Fim da História e o Último Homem (The End of History and the last Man, 1992) ambos de autoria do cientista políticonorte-americano Francis Fukuyama (1952-) que"decreta" o fim da História...

No entanto algumas teorias, ou melhor, alguns pontos de vista sobre teorias relacionadas ao papel do estudo da História e, conseqüentemente, do historiador, vieram a se tornar clássicos, pois em grande parte contribuem ainda hoje grandemente para seu estudo e compreensão. Dessa forma devemos apresentar um pouco mais detalhadamente as idéias do historiador francês Marc Bloch (1886-1944), que, juntamente com o também historiador francês Lucien Febvre (1878-1956), em 1929 lançam o periódico Anais de História Econômica e Social ( Annales d'Histoire Economique et Sociale), que sobrevive ainda hoje com o título Anais: História, Ciências Sociais (Annales: Histoire, Sciences Sociales). Surge assim, na França, a denominada Escola dos Annales, também conhecida como Nova História.

O historiador MarcBloch foi um dos primeiros a efetivamente comparar a História às Ciências Exatas e Biológicas. Ele afirmava que "(...) enquanto a Química e a Biologia (...) envolvem análise e classificação, a História em grande medida envolve descrição e narração. Além disso, História e Ciência diferem no que tange ao tratamento dos fenômenos. Enquanto o cientista lida com fenômenos simples que passam apenas por sua consciência, o historiador trata de fenômenos 'psicossociais' que passam tanto pela consciência dele quanto pela consciência do agente histórico. Isso significa (...) que uma miríade de interpretações de acontecimentos passados é possível"[8]. Desse modo, o historiador (aquele que "produz" a História) deve ter o "espírito crítico", pois segundo Bloch "(...) o historiador ao contrário do cientista, é duplamente propenso à fraqueza e à fragilidade da memória humana. Entretanto, a maior parte da obra do historiador consiste em identificar a verdade, aquilo que é falso e aquilo que é provável."[9] Pois "o tempo é parte integrante de seu objeto, é 'uma ciência em marcha'. Para permanecer uma ciência, a História deve se mexer, progredir; mais que qualquer outra, não pode parar."[10]

Portanto, "a História é uma ciência, mas uma ciência que tem como uma de suas características, o que pode significar sua fraqueza, mas também sua virtude, ser poética, pois não pode ser reduzida a abstrações, a leis, a estruturas."[11] E o que vem a ser um historiador competente na visão de Bloch? Para o autor "o bom historiador se parece com o ogro da lenda. Onde fareja carne humana, sabe que ali está sua caça", ou seja, o historiador é "um comedor de homens"[12].

Uma outra questão levantada e que é o objetivo principal da obra inacabadaApologia da História, se encontra na questão primordial: Para que serve a História? Segundo Bloch, a História é a "ciência dos homens no transcurso do tempo"[13] ou ainda "o produto mais perigoso que a química do cérebro elaborou"[14]. Ele completa sua definição de forma clara e objetiva ao afirmar que "quando estudada rigorosamente, a história alimenta a imaginação, mas também permite alcançar uma compreensão da história humana. Isso implica reconhecer a busca de evidências como a busca de pistas ao longo de uma variedade de documentos; examinar as evidências levando em conta seu contexto; comparar as evidências; abster-se do julgamento de acontecimentos passados que se baseiam nos padrões morais de alguém; e procurar um vocabulário que represente 'o resumo preciso dos fatos'e ao mesmo tempo preserve 'a flexibilidade de que necessita para se adaptar a descobertas posteriores'"[15].Enfim, "a História é a ciência do tempo e da mudança, colocando a cada instante delicados problemas para o historiador".[16]

Bibliografia:

Bloch, Marc.Apologia da História, ou, O Ofício de Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

Burke, Peter. História e teoria social. São Paulo: Editora Unesp, 2002.

Hughes-Warrington, Marnie. 50 grandes pensadores da história. São Paulo: Contexto, 2002.



[1] Hughes-Warrington, Marnie. 50 grandes pensadores da história. São Paulo: Contexto, 2002. p. 183.

[2] Idem.

[3] Ibidem.

[4] Burke, Peter. História e teoria social. São Paulo: Editora Unesp, 2002. p. 35.

[5] Bloch, Marc.Apologia da História, ou, O Ofício de Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. p. 21.

[6] Hughes-Warrington, Marnie. 50 grandes... op. cit.. p. 290.

[7] Idem. P. 45-46.

[8] Bloch, Marc. Apologia da História… op. cit.. p. 27.

[9] Idem. p. 29.

[10] Ibidem. p. 21.

[11] Ibidem. p. 19.

[12] Ibidem. p. 20.

[13] Hughes-Warrington, Marnie. 50 grandes... op. cit.. p. 32

[14] Bloch, Marc.Apologia da História... op. cit.. p.22.

[15] Idem. p. 33.

[16] Hughes-Warrington, Marnie. 50 grandes... op. cit... p. 63