Fundamentalismo e Globalização: Companheiros do Medo e da Instabilidade

Roberto dos Reis, M.Th.

 

 

          

         O termo fundamentalismo tornou-se mundialmente conhecido, sem sombra de dúvida, a partir dos atentados ocorridos em 11 de Setembro de 2001. É a partir dos clamores das vítimas (diretas e indiretas), seja dos edifícios do World Trade Center, dos aviões (da American Airlines e da United) utilizados como armas ou dos terríveis eventos que, a partir dali se desencadearam, que essa palavra, geralmente ligada à religião, definitivamente passou a pulular os noticiários. Cunhada em 1915, por professores da Universidade de Princeton, EUA, a nova terminologia se aplicava ao Cristianismo, no sentido de torná-lo mais ortodoxo, objetivando conter a acelerada modernização pela qual passava a sociedade norte-americana no início do século XX. É no bojo desta “onda” de modernidade, amplamente modificadora da textura social, que conceitos como liberalismo e liberdade de opinião passaram a vicejar na América, justificando assim medidas mais rigorosas de preservação dos preceitos morais e religiosos tão caros ao Cristianismo. Assim, ainda que tenha nascido como resposta ao distanciamento da sociedade norte-americana dos preceitos dos pais peregrinos, o fundamentalismo deixou de ser um termo técnico restrito à religião para alcançar os espaços da política e do direito internacional, na medida em que afeta direta e irremediavelmente as relações internacionais.

O fundamentalismo, termo oriundo do texto produzido pelos professores de Princeton – “Fundamentals: a Testimony of the Truth” – não é uma doutrina no sentido lato do termo, mas uma postura, uma forma de ver e interpretar a doutrina, ou seja, fundamentalista é aquele que encara seu posicionamento – religioso, ético, moral, político etc. – como sendo dotado da mais plena verdade, livre de todo e qualquer tipo de engano. Neste aspecto, a visão fundamentalista é unilateral, monocrômica, absoluta. Aqui reside o ponto nevrálgico desse tipo de postura: a inflexibilidade ante a possibilidade discursiva e dialogal com o diferente, com o oposto, com o outro. Abre-se, portanto, espaço para as mais nefastas consequências, uma vez que a postura fundamentalista (de que se julga detentor da verdade), por não comungar com outra verdade (ou verdades), mostra-se intolerante. E a intolerância em relação ao diferente gera o desprezo, e o desprezo gera a agressividade, e a agressividade, por sua vez, gera a guerra em seus mais diferentes níveis (BOFF, 2002).

            A despeito de sua origem estritamente religiosa, o fundamentalismo ultrapassa os limites da religião, uma vez que, conforme asseveramos acima, configura-se como atitude e tendência irremediavelmente inflexíveis de um determinado ponto de vista. Logo, podemos não ser fundamentalistas em relação a um dado texto sagrado (o nicho do fundamentalismo), mas o somos quanto a nossa inclinação política, social, cultural etc. Talvez, conforme sugerem alguns pesquisadores, o termo mais adequado seja “fanatismo”, uma vez que “fanático é um termo cunhado [...] para denominar pessoas que seriam partidárias extremistas, exaltadas e acríticas de uma causa religiosa ou política” (PINSKY/PINSKY, 2004, p.09). Mas, seja como for, em ambos os casos a intolerância e a certeza absoluta e incontestável da verdade é ponto de convergência, fazendo de ambos os termos as faces de uma mesma moeda. Destarte, tanto os hooligans (fanatismo em torno do futebol), o Ku Klux Klan (fanatismo racista), o nazismo (fanatismo em torno de uma ideologia política) ou o Islamismo radical (fanatismo em torno de preceitos religiosos), compartilham da mesma insanidade. Eis aqui, segundo Boff (2002), alguns dos muitos rostos do fundamentalismo.

            Os ataques ao World Trade Center, em 11 de Setembro de 2001, não apenas demonstraram ao mundo (ao vivo!) a que níveis de horror e brutalidade os homens podem chegar – e aqui não importam as justificativas –, mas também chamaram a atenção para um fato igualmente relevante: somos vizinhos uns dos outros. O mundo já não é mais o mesmo, as distâncias não mais existem (pelo menos enquanto impedimento para a comunicação e locomoção). Estamos irremediavelmente ligados. E mais que isso, estamos, queiramos ou não, intrinsecamente envolvidos nesta nova textura político-social. Portanto, abordar o tema da globalização constitui elemento preponderante para a compreensão da dimensão dos últimos acontecimentos no cenário internacional e como afetam o direito positivo dos Estados soberanos. Neste talante, é pertinente dizermos que o conceito de globalização, enquanto chave hermenêutica para a interpretação do mundo contemporâneo, não é unívoco, e sim, plurívoco. Segundo Faria (1999, p.59), “[...] comumente associado à ênfase dada pela literatura anglo-saxônica dos anos 80 a uma nova economia política das relações internacionais”. E desde a última década, pontua Faria (1999), o conceito de globalização vem sendo utilizado para expressar, traduzir e descrever uma vasta gama de processos que, como fator comum, encontram-se ligados uns aos outros.

Neste aspecto, o termo foi cunhado, entre outros, para expressar, em primeiro lugar, um processo econômico onde os Estados não encontrassem nenhuma (ou pouca!) restrição ou impedimento quanto à troca de bens e serviços (a internacionalização do comércio); em segundo, a integração entre as nações através da comunicação, tanto da mídia televisiva quanto da rede mundial de computadores, onde, segundo McLuhan (2005), o profeta da globalização, os homens viveriam imersos em uma grande malha global, um mundo sobreposto e instantâneo, onde a pluralidade de ideias se dissolveria e as diferenças se anulariam, inaugurando, finalmente, a chamada “aldeia global” (a internacionalização das comunicações); em terceiro lugar, a inserção do indivíduo numa sociedade de dimensão mundial, onde cada pessoa é, na verdade, cidadão do mundo (a internacionalização do indivíduo). Seja como for, independentemente do sentido que a ele se atribua, o termo evoca dois elementos fundamentais: 1) a promoção de mudanças radicais em todos os setores da vida e 2) a projeção dessas mudanças em escala planetária.

            Ainda que tenha suas raízes históricas na época dos Grandes Descobrimentos e tenha se desenvolvido a partir da Revolução Industrial, a globalização só se tornou plenamente evidente a partir da Segunda Guerra Mundial. Foi após os terríveis combates e a devastação quase que total da Europa que, em 1945, as nações aliadas resolveram que seria imprescindível a criação de mecanismos diplomáticos suficientemente eficazes no sentido de evitar que os horrores da guerra voltassem a acontecer. A solução, portanto, seria aproximar os países uns dos outros e garantir, consequentemente, a paz. É desse consenso que nasceu a ONU (Organização das Nações Unidas).

            Embasada na Carta do Atlântico, assinada por Winston Churchill e Franklin D. Roosevelt em 1941, a ONU tornou-se responsável pela persecução e manutenção do equilíbrio entre os países, mediando os conflitos, discutindo possíveis intervenções militares e primando por ações humanitárias em escala global. A grande questão, entretanto, é que concomitantemente ao surgimento da ONU – tentativa diplomática de unir os países – o mundo é dividido em zonas de influência. Em pólos antagônicos se encontravam, de um lado, os Estados Unidos da América do Norte (EUA), defensores do capitalismo, do livre mercado e da democracia liberal e representativa. Do outro, a ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), defensora do socialismo. De um lado ou de outro, tem-se a divisão do mundo entre Oriente e Ocidente. Este, representado pelos Estados Unidos e organizado em torno do Tratado do Atlântico Norte (OTAN); aquele, liderado pela então URSS, adepta do Pacto de Varsóvia. Seja como for, a divisão político-ideológica do mundo entre os países que detinham condições econômico-militares superiores surgiu simultaneamente à formação do contexto globalizado, dando forma, consequentemente, ao cenário internacional tal qual o conhecemos. É nesse espaço geopolítico e socioeconômico, altamente cambiante e extremamente melindroso, que os Estados transitam em busca de seus ideais.

            A divisão do mundo entre Oriente e Ocidente afetou toda a terra habitada. De um lado o capitalismo norte-americano, do outro, o socialismo e o resto do mundo. “What’s good for America is good for the world” (“o que é bom para a América é bom para o mundo”), disse o ex-presidente norte-americano, George W. Bush, quando falou a respeito da diminuição dos gases poluentes no caso do Protocolo de Kyoto, em 1997. Ecologia e meio ambiente à parte, a declaração reflete o sentimento de supremacia das superpotências em relação ao resto do planeta. “A luta é do bem contra o mal. Ou se é contra o terrorismo e pela América, ou se é a favor do terrorismo e contra a América”, declarou Bush, após o ataque a Nova York, em 11 de Setembro de 2001. Não há matizes nem alternativas. Só existem dois lados: a América e o resto do planeta. Segundo Santa Ana (1987), trata-se de um conflito universal com possibilidades inimagináveis, haja vista a magnitude e o alcance dos conflitos.

As ações e reações ocorridas no atual cenário globalizado, qual ondas concêntricas provocadas por um movimento brusco, alcançam a todos indistintamente, arrastando para a vala comum os mais fracos e debilitados. Afinal de contas, é em virtude da globalização e do redimensionamento dos Estados – atores desse novo contexto sócio-político – e da sedimentação da interdependência existente entre eles, que todo e qualquer movimento inesperado ultrapassa as fronteiras dos Estados, atingindo, consequentemente, todo o sistema internacional. Ademais, é pertinente dizer que, à semelhança de um gigantesco tabuleiro de xadrez, quanto mais importante for a peça a ser movimentada no "tabuleiro”, maiores são as chances de se ganhar o “jogo”, pois maiores são os estragos causados no adversário. Desta forma, um atentado terrorista perpetrado contra uma superpotência, como os Estados Unidos, ou ainda um desajuste financeiro ocorrido em sua economia interna como, por exemplo, a quebra do banco de investimentos Lehman Brothes, causa um mal estar mundial (O Estado de São Paulo, 16 de Setembro de 2008, p.b1-b11). Afinal de contas, não vivemos isolados e independentes e, a despeito da imensa distância geográfica que nos separa, somos vizinhos uns dos outros, companheiros do medo e da instabilidade.

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