Introdução

Uma das causas de extinção da punibilidade no processo penal se dá pela morte do acusado que é comprovada mediante certidão de óbito. Entretanto, a apresentação de certidão de óbito falsa no processo penal é recorrente, e os desdobramentos deste ato podem ser distintos. Comprovada a falsidade do documento após o trânsito em julgado da sentença extintiva de punibilidade, o acusado poderá apenas responder por crime de falsidade ideológica, mas já existem julgados determinando a revisão criminal.

 Desenvolvimento

As causas extintivas da punibilidade elencadas no artigo 107 do Código Penal, acarretam na perda do Estado em exercer o seu “jus puniendi”, ou seja, o Estado não poderá mais desempenhar o direito de punir aquele que praticou ação ou omissão descrita em norma penal incriminadora. Dessa forma, existe o ilícito penal, porém este não é punível.

Dentre as causas que extinguem a punibilidade, o inciso I do referido artigo 107, traz como causa de extinção da punibilidade a morte do agente. Causa esta, que, somente poderá ser declarada após juntada aos autos da certidão de óbito e mediante vista do juiz, conforme preceitua o artigo 62 do Código de Processo Penal.

O princípio “Mors Omnia Solvit” (a morte tudo apaga), é consequência direta do princípio da personalidade da sanção penal, consagrado no art. 5º, inciso XLV, da Constituição Federal que dispõe:

“nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido.”

Dessa forma, na hipótese de crimes praticados em concurso de agentes, só será extinta a punibilidade daquele que obtiver a morte comprovada. Todavia, a decisão que julgar extinta a punibilidade do agente não impedirá a propositura de ação cível pelo ofendido, seu representante legal ou seus herdeiros para efeito de reparação do dano, como preceituado no artigo 67, inciso II do CPP.

Nos casos de extinção da punibilidade pela morte do agente, a pretensão punitiva do Estado é julgada improcedente por meio da sentença absolvitória, que não pode ser revista, especialmente quando há enfrentamento de mérito, como é o caso em questão. Dessa forma, a ação penal se iniciada será cessada, caso contrário, não será instaurada.

Contudo, não é incomum apresentação de certidão de óbito falsa pelo acusado no processo a fim de que seja extinta sua punibilidade.

Deste fato emerge a discussão sobre o que deverá sobrevir à sentença transitada em julgado que extingue a punibilidade em decorrência de certidão de óbito falsa. Há divergências doutrinárias e jurisprudenciais acerca do tema.

Uma primeira corrente sustenta que não existe a possibilidade de reabrir o processo e rever a decisão extintiva de punibilidade, haja vista que esta faz coisa julgada material, sendo inaceitável a hipótese de revisão criminal pró-societate (em favor da sociedade), e, desfavoravelmente ao agente declarado morto, não se pode instaurar novo processo pelos mesmos fatos.  Dessa forma, o crime que poderá ser imputado àquele que se beneficiou de certidão de óbito falsa será o de falsidade ideológica. Nesse sentido, assevera Guilherme de Souza Nucci:

“Se o juiz reconheceu extinta punibilidade, pela exibição de certidão de óbito falsa, nada mais pode ser feito, a não ser processar quem falsificou e utilizou o documento. Outra solução estaria impondo a revisão em favor da sociedade, o que é vedado em processo penal. Desejasse o legislador e poderia ter feito constar do Código de Processo Penal especial licença para reabrir o caso, quando a certidão de óbito utilizada for considerada falsa.” (NUCCI, 2006)

Cabe ressaltar que o crime de falsidade ideológica tipificado no artigo 299 do Código Penal possui pena de reclusão de 1 a 5 anos, e multa, se o documento é público, como é o caso da certidão de óbito falsa. Tal pena é de pouca relevância se comparada as demais previstas no Código Penal.

Outro entendimento afirma que como a decisão fora fundada em fato inexistente, ou seja, a morte não ter de fato ocorrido, não fará coisa julgada, assim sendo, a persecução penal deverá ser retomada com base no Princípio da Verdade Real, princípio este, brilhantemente conceituado por Fernando Capez:

“No processo penal, o juiz tem o dever de investigar como os fatos se passaram na realidade, não se conformando com a verdade formal constante nos autos (...). Este princípio é próprio do processo penal, já que no cível o juiz deve conformar-se com a verdade trazida aos autos pelas partes, embora não seja um mero espectador inerte da produção de provas.” (CAPEZ, 2001)

Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal, vem entendendo que ação arquivada em razão de certidão de óbito falsa deve voltar a tramitar. A questão foi analisada pela Primeira Turma no Habeas Corpus 104998 SP, julgado em 14/12/2010, assim como, pela Segunda Turma no Habeas Corpus 84525 MG, julgado em 15/11/2004. Ambos os julgados trazem na ementa o seguinte texto:

“A decisão que, com base em certidão de óbito falsa, julga extinta a punibilidade do réu pode ser revogada, dado que não gera coisa julgada em sentido estrito.”

 Conclusão

O mero formalismo processual deve ser superado em benefício da justiça. Saber que a legislação vigente abre brechas para, a título de exemplo, casos como o de um agente que pratica crime de latrocínio tipificado no art. 157, § 3º do Código Penal, cuja pena prevista é de 20 a 30 anos, e, no curso do processo forja a própria morte apresentando certidão de óbito falsa vir posteriormente a responder apenas por falsidade ideológica, cuja pena máxima é de 5 anos de reclusão, geram na sociedade um sentimento de impunidade. Chega a ser irônico o fato de um criminoso se livrar de sanção penal através de outra conduta ilícita.

Portanto, a hipótese de suceder ação penal contra a mesma pessoa e pelo mesmo fato, deveria ser sempre considerada, uma vez comprovado que a morte do acusado fora erroneamente declarada, se não sobrevier, contudo, causa extintiva do crime. O Código de Processo Penal Brasileiro carece de previsão legal nesse sentido, o que não ocorre no CPP Italiano, que em seu art. 69 trata deste tema permitindo a reabertura do processo.

A cultura democrática de Justiça consiste na análise do Direito não apenas em seu aspecto formal, mas também, como objeto de responsabilidade social, que envolva a incorporação de valores característicos, e somente funcionará de maneira satisfatória a partir da existência de um sistema jurídico eficaz e justo.

                               
Referências Bibliográficas

NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 5 ed. São Paulo: RT, 2006, p. 183.

CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 6 ed. Editora Saraiva: RT, 2001, p. 26.

http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/19735632/habeas-corpus-hc-104998-sp-stf

http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/766720/habeas-corpus-hc-84525-mg-stf