GOFFMAN, Erving. Estigma: Notas Sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada. Tradução de Márcia Bandeira de Mello Leite Nunes. 4 ed. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1988.





Estigma: uma análise sobre a situação da pessoa estigmatizada


Erving Goffman foi Sociólogo e escritor canadense. Obteve o grau de Bacharel Pela Universidade de Toronto em 1945, de Mestrado e Doutorado pela Universidade de Chicago, onde estudou Sociologia e Antropologia Social. Em 1958 passou integrar o corpo docente da Universidade da Califórnia em Berkeley, tendo sido promovido a Professor Titular em 1962. Ingressou na Universidade da Pensilvânia em 1968, atuando como professor de Antropologia e Sociologia. Em 1977 obteve o prêmio Guggenheim. Foi presidente da Sociedade Americana de Sociologia, em 1981-1982 e realizou pesquisas na linha da sociologia interpretativa e cultural.

Autor de obras como "A Representação do Eu na Vida Cotidiana", "Estigma: Notas Sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada", além de outras ligadas à interação humana, seus estudos tiveram papel relevante para Antipsiquiatria e para a Luta Antimanicomial no Brasil devido as suas colocações sobre a função social da Psiquiatria na sociedade. Goffman faleceu em Filadélfia, no Estado da Pensilvânia nos Estados Unidos da América no dia 19 de Novembro de 1982. Exemplo de suas contribuições para a compreensão da dinâmica social encontra-se na obra "Estigma: Notas Sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada", que será aqui discutida.

Nesta obra, Goffman (1988) tem o propósito de reexaminar os conceitos de estigma, buscando esclarecer suas relações com a questão do desvio. Para tal, discute conceitos relativos à informação social: a informação que o indivíduo transmite diretamente sobre si. Mas, antes de adentrar nas análises do autor, é importante conhecer o significado do termo estigma. Segundo o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, estigma significa marca, cicatriz perdurável. Segundo Goffman (1988), o termo se refere a um atributo profundamente depreciativo. Entretanto, mesmo diante dessa colocação, o autor concebe o significado da palavra para além do fator atributo quando salienta que, para a sua compreensão, é necessária uma linguagem de relações e não de atributos, uma vez que, um atributo que estigmatiza uma pessoa pode confirmar a normalidade de outra.

Com base nesse pressuposto, o autor parte das relações mistas para fundamentar a discussão sobre estigma. Ou seja, focaliza os momentos em que os estigmatizados e os normais estão na mesma situação social, na presença física imediata um do outro, quer durante uma conversa, quer na mera presença simultânea em uma reunião informal. É pautado nesse princípio que Goffman irá delinear ao longo dos cinco capítulos contidos na obra a situação do estigmatizado em suas relações sociais, discutindo as temáticas: Estigma e Identidade Social; Controle de Informação e Identidade Pessoal; Alinhamento Grupal e Identidade do Eu; o Eu e Seu Outro; Desvios e Comportamentos Desviantes.

Para melhor compreensão do assunto, o autor faz um recorte histórico sobre a concepção de estigma, passando pela Antiguidade Clássica ? em que o termo designava algo extraordinário ou mau sobre o status moral de quem o representasse por meio de sinais corporais e dos quais as pessoas normais deveriam manter distância ?, adentrando na Era Cristã ? na qual dois níveis foram acrescentados ao termo: a concepção religiosa (estigma como graça divina) e a patológica (distúrbio físico) ? até a atualidade ? em que o estigma faz alusão à situação do indivíduo que está inabilitado para a aceitação social plena. Entre os indivíduos estigmatizados estão os portadores de deformidades físicas; os portadores de caráter individuais ditos "anormais", tais como os doentes mentais, os alcoólatras, os criminosos, as prostitutas, os homossexuais, etc.; por fim, os pertencentes a grupos tribais de raça, nação e religião.

Feito esse recorte histórico, Goffman inicia sua análise recuperando o conceito de identidade social e pessoal, a condição de desacreditado e desacreditável dos estigmatizados, suas relações sociais e sua carreira moral. Entende-se por identidade social a categoria e os atributos inerentes a cada pessoa, visíveis nas relações sociais: é a imagem que o indivíduo apresenta sobre si no trato social. Mas, existe a identidade social virtual ? categoria e atributos que o indivíduo deveria ter ? e a identidade social real ? categoria e atributos que o indivíduo realmente possui. A discrepância entre a identidade social virtual e a identidade social real resulta num atributo depreciativo, num estigma, uma vez que, quando percebemos que o indivíduo "tem um atributo que o torna diferente do outro, um atributo depreciativo, [...] deixamos de considerá-lo criatura comum e total, reduzindo-a a uma pessoa estragada e diminuída" (GOFFMAN, 1988, p. 12, grifo nosso). Dessa forma, "[...] acreditamos que alguém com um estigma não seja completamente humano" (ibid, p. 15).

Quando as características distintivas do estigmatizado já são conhecidas ou são imediatamente evidentes no trato social, diz-se que ele está na condição de desacreditado. Quando tais características não são conhecidas nem imediatamente percebidas, diz-se que o estigmatizado está na condição de desacreditável. Nesse contexto, surge a discussão do acobertamento e do encobrimento, o primeiro referindo-se aos desacreditados na busca de manipular e reduzir as tensões e o segundo referindo-se aos desacreditáveis na busca de manipular as informações, ambos objetivando tornar menos perceptível e encobrir a sua condição de estigmatizados. Dentro dessa trama, é possível perceber que os estigmatizados vivem à busca de estratégias de relacionamentos intragrupais e exogrupais. Mas, como se dão essas relações?

Segundo Goffman, as relações mistas (entre normais e estigmatizados) se apresentam de forma desconfortável para ambos, primeiro porque os normais não conseguem enxergar os estigmatizados como normais, segundo porque os estigmatizados sempre se colocam em posição de retaguarda. Por isso, "a previsão de tais contatos pode levar os normais e os estigmatizados a esquematizar a vida de forma a evitá-lo" (p. 22). Provavelmente, isso terá maiores consequências para os estigmatizados, uma vez que, "faltando o feedback saudável do intercâmbio social quotidiano com os outros, a pessoa que se auto-isola possivelmente torna-se desconfiada, deprimida, hostil, ansiosa e confusa" (idem). Nestes aspectos, durantes os contatos mistos,


O indivíduo estigmatizado pode descobrir que se sente inseguro em relação à maneira como os normais o identificarão e o receberão; surge a sensação de não saber aquilo que os outros estão realmente pensando dele; é possível que sinta que está em exibição; erros menores e enganos incidentais podem ser interpretados como uma expressão direta de seu atributo diferencial estigmatizado; quando seu defeito pode ser percebido só ao se lhe dirigir a atenção, é provável que sinta que estar presente entre os normais o expõe cruamente a invasões de privacidade; algumas vezes vacila entre o retraimento e a agressividade, correndo de uma parte para outra, tornando manifesta, assim, uma modalidade fundamental na qual a interação face-to-face pode tornar-se muito violenta; o visivelmente estigmatizado terá motivos especiais para sentir que as situações sociais mistas provocam uma interação angustiada; nós, normais, também acharemos essas situações angustiantes (GOFFMAN, 1988, passim).


Daí percebe-se porque Goffman traz para a discussão a forma de socialização do estigmatizado, uma vez que, o resultado da discrepância entre a identidade virtual e a identidade real estraga a sua identidade social, fazendo com que o indivíduo afaste-se da sociedade e de si mesmo, "de tal modo que ele acaba por se tornar uma pessoa desacreditada frente a um mundo não receptivo. (GOFFMAN, 1988, p. 28). Assim, ora tende a se aproximar de grupos que partilham o mesmo estigma, pois serão mais aceitos e compreendidos, ora se afastar dele repentinamente, ou, do contrário, tentar mostrar que pode ser "igual" aos normais buscando superar suas limitações. É o caso de pessoas portadoras de deficiências físicas que conseguem desenvolver algumas atividades esportivas.

Essas relações sociais terão um papel determinante na sua careira moral. A carreira moral da pessoa estigmatizada é um fator importante no processo de socialização. Uma das fases desse processo "é aquela na qual a pessoa estigmatizada aprende e incorpora o ponto de vista dos normais [...]. Uma outra fase é aquela na qual ela aprende que possui um estigma particular e [...] as consequências de possuí-lo" (ibid, p. 41). Dessa forma, o autor ainda sustenta que "as pessoas que tem um estigma particular tendem a ter experiências semelhantes de aprendizagem relativa à sua condição e a sofrer mudanças semelhantes na concepção do eu" (idem).

Elencados todos esses processos, o autor finalmente aponta a ligação entre estigma e desvio, sinalizando que um grupo de indivíduos que não adere às normas possui um comportamento desviante. Dessa maneira,


As prostitutas, os viciados em drogas, os delinquentes, os criminosos, os músicos de jazz, os boêmios, os ciganos, os parasitas, os vagabundos, os gigolôs, os artistas de show, os jogadores, os malandros, das praias, os homossexuais, e o mendigo impenitente da cidade seriam incluídos, uma vez que, essas pessoas são consideradas engajadas numa espécie de negação coletiva da ordem social (GOFFMAN, 1988, p. 154-155).


Cabe então ressaltar que as análises de Goffman sobre a temática aqui abordada se constituem num panorama geral para a compreensão da dinâmica nas relações sociais. Para os profissionais que atuam no trato social, como é o caso do Serviço Social, debruçar-se sobre essa obra é um caminho para entender como as pessoas lidam com a sua condição inferiorizada na sociedade.

Cabe ainda trazer outra questão. Desviantes ou não, estigmatizados ou não, o indivíduo sempre acaba exercendo a identidade de papéis nas relações sociais: ora uma pessoa comum pode portar-se como uma pessoa desviante e vice-versa, ora uma pessoa estigmatizada pode vir a ser ou se comportar como uma pessoa normal e vice-versa. Essa troca de papéis está explícita na obra em análise quando Goffman (1988, p. 143) aponta a existência da unidade eu-outro, normal-estigmatizado, na qual "o indivíduo estigmatizado pode desempenhar ambos os papéis do drama normal-desviante".