Anderson Valle* - Biólogo e Mestre em Psicobiologia. Este texto foi publicado em 2009. Confira sua atualização no artigo O Estado conivente com o tráfico de animais silvestres.


A criação amadorista de Passeriformes tem sua origem histórica com a edição da Lei nº 5.197/67 que determinou em seu Art. 1o que "Os animais de quaisquer espécies, em qualquer fase do seu desenvolvimento e que vivem naturalmente fora do cativeiro, constituindo a fauna silvestre, bem como seus ninhos, abrigos e criadouros naturais são propriedades do Estado, sendo proibida a sua utilização, perseguição, destruição, caça ou apanha".

De tal forma, a partir de 1967, a captura de animais na natureza e sua conseqüente manutenção em cativeiro passou a ser considerado crime. No entanto, ainda havia a questão do que fazer com os animais silvestres que antes de 1967 haviam sido capturados e eram mantidos nas residências. 

Considerando que a Lei somente pode retroagir em favor do réu (art. 5º XL da Constituição Federal), as pessoas que os detinham sob sua guarda não poderiam ser penalizadas pela nova Lei. Precisava-se, entretanto, diferenciar estes casos de novos atos de captura e, em 1972 o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF) editou a Portaria n° 3.175 determinando que aqueles que mantinham criadouro de aves, pássaros e animais da fauna de origem indígena, bem como aquelas que se dedicassem, sem objetivo comercial, a criação de aves, deveriam se registrar no IBDF e obter concessão de registro – começa aqui a criação amadorista de animais silvestres da fauna nativa.


Todavia, ao editar a Portaria o IBDF cometeu um erro jurídico quando determinou que os pássaros pudessem doravante continuar cativos, assim como os filhotes que viessem a ter. 

Assim, considerando que os passarinhos não constituem sujeitos de direito, e sim seus donos, apenas estes poderiam ser agraciados com a irretroatividade da Lei. Desta forma, a correta interpretação da lei deveria ser: enquanto perdurar a vida das pessoas que na data da entrada em vigor da Lei n° 5.197/67 possuíssem passarinhos, estas teriam o direito de ter estes animais, bem como as crias destes. Sendo este direito intransferível.

Desse modo, com o passar do tempo, o número de animais cativos oriundos desta situação deveria diminuir. Mas a errônea interpretação da Lei, desde 1972, tem permitido a transferência destes animais e o ingresso de novos criadores. Isto contraria, inclusive, outro dispositivo da Lei n° 5.197/67 que concerne aos criadouros comerciais a única forma pela qual, após 1967, uma pessoa poderia adquirir espécimes da fauna silvestre nativa. 

Por outro lado, devido a uma série de irregularidades cometidas por vários clubes e federações (que detinham o controle dos criadores), em 2001 o Ministério Público determinou que o Ibama retomasse o controle da atividade. Este controle foi retomado por meio de um recadastramento e um sistema informatizado, o Sispass. Porém, o Ibama manteve o erro jurídico do IBDF e autorizou (inclusive via internet) a entrada de novos criadores. 

Os problemas advindos desta autorização se refletem no fato de que de 1972 a 2002 quando houve o recadastramento foram contabilizados 70.970 criadores amadoristas de Passeriformes, e de 2003 até dezembro de 2005, com a atuação do IBAMA, 108.453 novos criadores se registraram. Fato, no mínimo curioso, pois em 30 anos existiram cerca de 70.000 criadores e em apenas três anos ocorreu um aumento que ultrapassou 100%. Tal fato se torna ainda mais preocupante pelo fato de várias unidades do Ibama constatarem que diversos novos criadores se tratam, na verdade, de “laranjas”.

Além disso, há o fato da incômoda coincidência quanto às espécies mais criadas pelos criadores amadoristas serem aquelas mais traficadas (Nicácio, 2005). A se considerar que a criação comercial objetivaria substituir os animais do tráfico por aqueles legalizados, qual seria o interesse dos criadores em espécies comuns? Se a atividade estava regulamentada desde 1972 e que não havia e ainda não existem empecilhos ao ingresso de novos criadores é curioso que o tráfico ainda incida sobre as mesmas espécies que são criadas e podem, portanto, ser adquiridas de forma legal. Além disso, mais de 40 anos se passaram, não deveria a pressão do tráfico sobre as espécies mais criadas ter diminuído?

Outra questão problemática com o segmento se refere à venda de anilhas, na verdade registros, pela internet. Este ilícito funciona da seguinte forma: quando ocorreu o recadastramento alguns criadores informaram a existência de pássaros e suas respectivas anilhas, porém os animais não existiam. Assim, estas supostas anilhas foram cadastradas no sistema e hoje são comercializadas ilegalmente pela internet objetivando regularizar aqueles animais capturados na natureza. As anilhas ou registros que possuem maior valor são aquelas que à época foram feitas pelos clubes e federações, pois as entregues pelo Ibama seguem um padrão mais rígido quanto ao diâmetro interno e com isso dificulta o anilhamento de pássaros adultos capturados na natureza. Apesar disso, já existem relatos de pessoas que falsificam também as anilhas do Ibama. 

Além disso, vários pássaros são apreendidos com patas quebradas, e falanges que depois de quebradas cicatrizam de forma errada. Passarinheiros usam este método para colocar anilhas em pássaros adultos retirados da natureza. Tais ocorrências são extremamente comuns nas apreensões do Ibama e de conhecimento generalizado entre os criadores. Também encontramos relatos de passarinheiros usando o método de descalcificar os ossos do pé da ave colocando-o imerso em uma solução ácida por 24 horas.

É importante ressaltar que a sociedade tem se revoltado com a situação do tráfico de passeriformes no país, cobrando maiores esforços da fiscalização. O número de denúncias feitas ao Linha Verde, o sistema de denúncias do IBAMA, em 2006 envolvendo fauna correspondem a cerca de 45% de todas as denúncias do Ibama, e deste percentual, aquelas envolvendo cativeiro de fauna representam 64,2% (2.062). Destas, a maioria envolvem pássaros em cativeiro.

Uma abordagem do vulto das negociações praticadas pode ser observada em uma visita ao sítio eletrônico http://inforum.insite.com.br/1905/?forum=1905&limit=0&max_msg=28&sort= . Nele foram localizadas, até a data de 12 de janeiro de 2007, 1006 mensagens relacionadas a compra e venda de anilhas, e no site http://inforum.insite.com.br/4108/, outras 503 mensagens envolvendo troca e venda de aves por particulares, venda de anilhas do Ibama, venda de registros de aves que já morreram, contatos com caçadores de aves e demais negociações criminosas que envolvem criadores amadoristas. Ressalta-se ainda, que este é apenas um dos fóruns de discussão da internet.

Por fim, a verba destinada ao combate ao tráfico está muito aquém do necessário. Embora exista a preocupação Ministerial e também da sociedade quanto ao tráfico de animais silvestres, a quantia de 500 mil reais destinada ao IBAMA com rubrica para a fiscalização de assuntos relacionados à fauna em 2004 diminuída para 395 mil reais em 2005 e para 150 mil reais em 2006 não foram suficientes. Esta situação impede o combate ordenado ao tráfico de animais silvestres, Além disso as ações efetivas resultantes foram desencontradas e pontuais não surtindo efeitos mais expressivos. Um levantamento da Divisão de Fiscalização da Fauna da Coordenação Geral de Fiscalização/DIPRO precisou ser necessário recursos da ordem de R$ 2.800.000,00 apenas para o atendimento ao básico das demandas relacionadas à fauna. Assim, sem um montante mais expressivo para o combate aos ilícitos de fauna, de forma a se conseguir planejar ações nacionais e coordenadas, o tráfico continuará a vicejar no País.

Medidas alternativas têm sido feitas. O IBAMA de forma discreta visitado a residência daqueles que solicitam anilhas para registros de suas aves silvestres supostamente nascidas em cativeiro confirmando a existência ou não dos filhotes.

Porém, diante do cenário atual, para atender à demanda da sociedade e diminuir a prática dos crimes de tráfico e criação ilegal envolvendo aves, existem outras considerações que poderiam melhorar a questão do combate ao tráfico no país respaldando, inclusive, o engajamento do Brasil na Campanha Internacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres. 

Portanto, a primeira alteração deveria ser no Art. 29 da Lei n° 9.605 de 1998 que não distingue criadores, traficantes nacionais e traficantes internacionais. Para que as ações de fiscalização sejam eficientes é imprescindível que a legislação diferencie os criminosos, atribuindo àqueles cujas evidências apontam como traficante, penas de prisão de no mínimo 3 anos. Seria importante também que, com base na ausência de respaldo legal para registros dos criadores amadoristas, que eles fossem interrompidos, e por último, um aumento significativo dos recursos destinados à proteção da fauna.

Referências

NICÁCIO, V. L. T. D. 2005. A criação de passeriformes silvestres em cativeiro e seu controle pelo órgão ambiental. Monografia. Instituto Científico de Ensino Superior e Pesquisa. UnICESP. 31pp.