Enfim, Cuba.

27 de novembro de 2000. Meio-dia. Estou desembarcando no aeroporto internacional José Martí, em Havana. Mas a viagem começou antes, muito antes... 

1961:  a gente estava entrando na adolescência. Alunos dos maristas, americanófilos, admiradores do John Kennedy e da linda Jacqueline. Fãs do Elvis Presley, formação meio fascista (o titular da terceira série ginasial era o Irmão Porquinho, um velhinho simpático, espanhol, que adorava o Franco, tinha nojo de judeus e também de mulheres). Para nós o mundo se dividia entre os bons e os maus. Os bons tinham o dever de matar os maus e os maus eram os feios.

                        Apareceu no colégio um rapazinho, alguns anos mais velho do que a gente, conhecido por ser metido a intelectual e poeta, o José Asdrúbal  Amaral, convidado por um religioso meio maluco, o Irmão Zé Topeque, para proferir uma palestra.

                        O coitado foi vaiado o tempo todo. Também pudera, não podia dar outra. Falou bem do triunfo da revolução cubana e dos guerrilheiros comandados por Fidel Castro. Desceu a lenha nos americanos, principalmente no Kennedy, que havia determinado o bloqueio à ilha.

                        Foi preciso a interferência do Zé Topeque, que, para apaziguar os ânimos da meninada, explicou que a intenção do conferencista era apenas de provocar polêmica, pois o Asdrúbal era católico praticante, de boa formação moral e anticomunista. Se não fosse isso, provavelmente haveria um linchamento.

 

1967 – auditório da PUC/CAMPINAS:

                        Nesse tempo, quando saíamos da adolescência, éramos todos de esquerda. “Che” era o nosso ídolo. Quantos tombaram?  Quantos foram presos? Quantos tiveram de viver na clandestinidade? Quantos se exilaram?

                        Aparece na PUC, para fazer uma palestre, o escritor Carlos Heitor Cony. O tema foi a ilha de Fidel, com suas dificuldades, que ele havia visitado. Lembro-me bem de suas palavras. Cuba não tinha nada, além do ideal. Contou que teve uma dor de cabeça e não conseguiu uma aspirina na ilha. Tudo faltava. Sentimos ódio dos americanos.

                        Foi ovacionado pela platéia de pé. Preferíamos lutar, como os cubanos, contra a ditadura militar, mesmo enfrentando as dificuldades da falta de tudo, mas de cabeça erguida. Como éramos idealistas!

                        Um ano depois a ditadura nativa endureceu. Veio o famigerado Ato Institucional número cinco. Quanto sofrimento romântico!

 

1976:   O jornalista Fernando Morais lança o seu livro A ILHA (um repórter brasileiro no país de Fidel Castro). O escritor ainda não tinha completado os trinta anos de idade e se meteu numa aventura fascinante, indo a Cuba, via Espanha, à bordo de um quadrirreator soviético. A obra fez sucesso imediato. Basta dizer que sete edições, entre agosto de 1976 a fevereiro de 1977 foram esgotadas, ou seja foram vendidos vinte e três mil livros em apenas seis meses – um fenômeno no Brasil.

                        O livro me deixou fascinado. Logo no primeiro capítulo leio: “ O carregador do Nacional leva as malas ao confortável apartamento e fica me olhando sorridente. Tiro do bolso moedas recebidas na troca de dinheiro e lhe ofereço. Sempre sorrindo, o homem diz apenas que “não”. Devo estar oferecendo pouco, imagino. Tiro uma nota de um peso cubano – nove cruzeiros ao câmbio da época – e entrego a ele. O carregador é obrigado a ser claro comigo: “Compañero, aqui não existe mais isso. Estou esperando, mas é para o senhor dizer se está satisfeito com o apartamento”.

                        Que maravilha! Acabou a mentalidade da gorjeta. Acabou a submissão. Todos tem o suficiente para viver com dignidade.

                        Curioso, o repórter/escritor quis saber se havia prostitutas na ilha. Foi direto ao assunto com o motorista do táxi. Este lhe respondeu claramente: “ – Não compañero. Aqui não temos mais essas coisas”.  Fez a tentativa com outros motoristas, sempre recebendo respostas idênticas. Um porteiro de hotel, ironicamente, lhe informou: “ – Mas não se aborreça se não temos putas aqui, você é jovem, estrangeiro, certamente encontrará uma cubana que vá com sua cara. De graça, claro”.

                        No antigo bordel dos americanos não havia mais putas?  Teria sido extinta a profissão mais antiga do mundo? Como foi o milagre? Outras leituras sobre a ilha, que abundaram posteriormente, informavam que, quando o exército rebelde dos guerrilheiros avançava, obtendo vitórias, atrás dos soldados vinham os professores com a finalidade de ensinar aos marginalizados, principalmente a putada, sobre a dignidade humana. Eram aulas de idealismo sobretudo.

                        Quis ir imediatamente para Cuba. Ajudar a cortar cana. Trabalhar para ajudar a concretizar o sonho.

 

Dezembro/1981: Estava na moda viajar para Cuba. Os alunos formandos do Colégio Pio XII convidam para paraninfo o deputado  direitista Sebastião Navarro Vieira Filho. Aliás, todos os anos ele era convidado para essa função. Não tinha concorrentes. O motivo é que ele oferecia churrasco e chope para a meninada em uma chácara nos arredores da cidade.

                        Conheço o deputado há bastante tempo. Apesar de nossas diferenças ideológicas, sempre o respeitei por seu trabalho e sua lealdade. Seu pai, que era integralista declarado, foi o único político de nossa terra que visitou os conterrâneos que estavam presos pela ditadura e que os auxiliou nesse período difícil. Os deputados esquerdistas que conhecíamos não deram a mínima para os prisioneiros.

                        Eu era professor, lecionava direito usual e legislação aplicada e, por isso, também fui convidado pelo Navarro Filho para participar do churrasco.

                        Aceitei o convite apenas porque sabia que ele tinha viajado recentemente para Cuba.

                        Na festa animada, forcei a aproximação.

                        Conversa vai, conversa vem, perguntei?

-          O que achou de Cuba?

-          Muito pior do que eu pensava! Uma pobreza absoluta! Nunca estive em

lugar pior.

                        Fiquei puto com a resposta. Conversa de gente ligada à ditadura. Anticomunista declarado.

                        Tentei forçar mais. Citei o livro do Fernando Morais. Ele apenas comentou que poderíamos aprender poucas coisas com os cubanos, como, por exemplo, a questão da saúde e da educação, mas que o resto, realmente, era muito ruim.

                        Não me convenceu. Eu tinha que ir para Cuba de qualquer maneira. Tinha que conhecer aquela nova realidade, construída pelos idealistas barbudos e pelo povo. “Che”, Fidel, Cienfuegos ainda eram os mesmos ídolos que nortearam o romantismo de minha juventude.

 

1986:  Muita gente já havia visitado a ilha.  Quem havia voltado recentemente foi o advogado José Carlos de Paiva Cardillo. Este eu conheço a bastante tempo. Foi meu professor de latim no ginásio. É um sujeito boa pinta. Parece artista de cinema. Politicamente nunca se filiou a qualquer partido. Poderia ser tucano, pois está sempre em cima do muro. Educado, não tem palavra ofensiva para ninguém. Sempre é agradável. Esta é a sua grande característica. Adora viajar. Pode ser que não conheça o mundo todo, mas falta pouco. Marquei um encontro com ele num restaurante conhecido. Queria que me contasse sobre a Cuba que conheceu.

                        Neste ponto deve ser dito: o Cardillo era, e ainda é, advogado de grandes empresas, de multinacionais. Por isso fui com um pé atrás. Afinal, pouco tempo antes o Brasil estava dividido entre mocinhos e bandidos, assim como na pré adolescência o mundo era dividido entre os bons e os maus. Os mocinhos éramos nós, que queríamos derrubar a ditadura por qualquer meio. Quem estava do outro lado era bandido – todos. Também eram bandidos os americanófilos que trabalhavam para as multinacionais. O Cardillo estava enquadrado nesta última classificação.

                        Quando cheguei o meu ex professor já estava lá, saboreando um scotch com gelo.

-          Oi professor! Ainda sabe latim?

-          Esqueci tudo.

                       Pedi um nacionalizado. O scotch era muito caro para mim e a gente tinha o hábito de dividir as despesas.

-          Conta prá mim. Como é Cuba?

-          Igualzinho à Bahia. Quando desci, pensei que estava em Salvador.

                      Salvador eu conhecia. Tinha viajado para lá recentemente. Adorei. Talvez tenha sido influência do Jorge Amado. Havia lido toda a sua obra.

                       - Mas e o socialismo. Conta! Há tudo para todos.

                        - Bem, no dia em que cheguei, comecei a fazer muitas perguntas ao garçom que atendia no bar. Ele não respondeu quase nada. Mas, no dia seguinte, havia outro garçom. Desconfio que foi para lá só para responder às minhas indagações. Este tinha curso universitário, falava inglês e respondeu todas as minhas perguntas. Tudo com elogios à revolução. Fiquei desconfiado. Será que ele não foi ali só para isso? Para fazer propaganda?

-          E prostituição tem?

-          No hotel em que estávamos hospedados havia muitas mocinhas cubanas.

Não tenho muitas dúvidas. Eram profissionais do sexo. A aparência é igual em qualquer parte do mundo.

                        Não acreditei muito. Possivelmente o advogado estava enganado. Talvez fossem apenas cubanas querendo se divertir.

-          E a saúde? Como é?

-          Os cubanos são muito saudáveis. Todos fortes. Atléticos.

-          E têm de tudo?

                        - Bem, eles não tem acesso ao dólar. Abordam a gente querendo trocar os seus pesos. É claro que eu não aceito. Em terra estranha boi é vaca. Imagina se eu ficar preso em Cuba? Mas eles insistem para a gente comprar gêneros para eles nas tiendas. Nas tiendas são vendidos produtos internacionais, em dólar. Só que o cubano não tem acesso a elas. Aliás, eles não podem ter dólares. É proibido.  

-          Gorjeta? Você deu?

-          Claro.

-          Mas eles aceitam?

-          Como em qualquer parte do mundo.

                      As respostas não batiam com minhas informações. Seria mentiroso o  Zé Carlos ou a Cuba que ele conheceu não era mais a Cuba que o Fernando Morais contou? Ou será que o jornalista foi conduzido para relatar o que Cuba queria? Eu precisava ir a Cuba. Tinha que ver para saber.

                        Falei para ele: - eu vou para Cuba.

                        Como um mestre ele respondeu: - Conheça outros lugares primeiro. Há muita coisa que você precisa conhecer.

                        Realmente, não era – e ainda não sou – muito viajado. Mas outras viagens vieram. Cuba sempre postergada.

***

                        Interessante que, até hoje, muitas pessoas têm receio de viajar para a ilha de Fidel, principalmente empresários, talvez por temerem represálias dos Estados Unidos.

                        Fiquei sabendo que dois altos industriais da cidade viajaram para lá. Foi o filho de um deles quem me disse. Eles mantiveram segredo sobre o passeio ou viagem de negócios.  Disseram apenas que estiveram no Caribe. Nenhuma palavra sobre Cuba.

                        Na agência de viagens fomos informados  da necessidade de obter visto de entrada, mas que poderíamos ficar tranqüilos, pois os nossos passaportes não seriam carimbados. O visto é dado em uma tarjeta. Indaguei o por que. A resposta foi a óbvia: - para que os senhores não tenham problemas quando viajarem para os Estados Unidos.

                        Não é só o bloqueio que perdura. É, ainda, um verdadeiro terrorismo imperialista.

 

***

A VIAGEM

 

                        Discuti muito com a Sandra. Ela queria ir para a Portugal e Espanha. Tínhamos quinze dias de férias. Passamos a folhear revistas de turismo. De repente deparo com um anúncio sobre Cuba. O sonho de visitar a ilha de Fidel há muito já estava esquecido, armazenado em algum compartimento do cérebro. Convenceu-me o preço. Acabei também convencendo a companheira, mas fui vencido quanto à organização do roteiro e à qualidade dos hotéis. Cedi nessa parte.

                        Nosso roteiro seria: quatro noites em Santiago, três noites em Varadero, duas noites em Cayo Largo e o restante em Havana.

                        Com as passagens e reservas, embarcamos em São Paulo. O velho avião DC-10 segue para Buenos Aires e depois direto para Havana, com uma parada inexplicável de uma hora em Varadero. A rota aumenta em seis horas o percurso.

                        Disse ser inexplicável o pouso em Varadero porque esta cidade dista apenas 140 quilômetros de Havana. Poucos passageiros descem ou apanham o avião. Seria muito mais prático pousar direto na capital e transportar  estes poucos por ônibus ou vans. Haveria muita economia com decolagem e pouso.

                        No aeroporto internacional dessa famosa cidade balneária o primeiro choque. Sinto necessidade de ir ao banheiro. Na porta uma mulher entregando pedaços de papel higiênico, que enrolava em suas próprias mãos. Tive que dar um dólar por um pedaço. E sabe-se lá onde esta mulher tinha colocado as mãos! Teria as lavado antes? As instalações sanitárias um tanto precárias. Fiquei com vontade de escrever no meu portunhol: “em los aeropuertos de la vida, jamas vi casa de baños assi, no sey si yo cago nela, o si ela quien caga em mi.” Só não o fiz porque não tinha lápis ou caneta. E também por não ser uma coisa educada.. Mas que a vontade foi grande, isso foi.

                        Nosso destino era Santiago, para onde o avião decolaria somente às 19 horas. Tínhamos, descontado o tempo de espera no aeroporto, pelo menos cinco horas na capital de Fidel. Resolvemos tomar um táxi para percorrer a cidade.

                        O agente de viagens nos apresentou a um mulato alto, de olhos claros, o César. Ele nos levaria ao passeio.

                        César nos deu uma aula de história e de sociologia política cubana. Muito simpático, iniciou a conversa num inglês britânico. Ligou o taxímetro do carro francês, semi novo, o ar condicionado e partiu. Pedi a ele para falar em espanhol, seria mais fácil a comunicação. Ele abriu um sorriso e disse: - antes que me perguntem, já vou dizer. Em Cuba não existem analfabetos. Todos tem direito à saúde. Nossos médico são muito eficientes. Tudo aqui é estatal. Eu sou empregado do Estado. Só são particulares os carros velhos. Tudo é de todos. Agora, me perguntem se eu sou a favor? Eu respondo: - sou contra. Respeito a revolução, foi uma coisa muito bonita. Mas o Fidel já deveria ter ido embora há muito tempo.

                        Já na estrada começamos a ver carros da década de cinqüenta, caindo aos pedaços. Sandra, habituada com o Brasil, faz uma pergunta : - aqui é obrigado a usar o cinto de segurança?

                        Olhei para ela com um sorriso debochado, apontando para os calhambeques que cruzávamos.

                        César respondeu: - não há cintos para todos. Já tentaram uma lei nesse sentido. Também houve uma lei para obrigar aos motociclistas a usarem capacetes, mas não há capacetes para todos. Ser fritado no inferno socialista é uma delícia. Um dia falta azeite, no outro dia falta óleo, no outro não tem fogo. Falta tudo.

                        Passou a falar sobre a educação. Sandra perguntou: - e você, estudou o que?

-          Eu sou engenheiro eletricista.

Curioso, indaguei: - Mas não há emprego na sua área de formação?

-          Claro que existe! E muito.

-          Mas por que você está dirigindo táxi?

-          Pela propina. Só quem trabalha com os turistas têm acesso à propina. Os

Outros, coitados, têm apenas o salário que o estado paga. Uma miséria. A propina que eu ganho me dá direito a muitas coisas. Por exemplo, eu tenho antena parabólica em casa. É proibido, mas muitos cubanos têm. Tenho internet, o que é rigorosamente vedado aos cubanos. Todo dia me comunico com o mundo pela internet.

-          Mas como você têm um provedor?

Abriu mais ainda seu sorriso: - pela esquerda... pela esquerda...

-          Ouvi dizer que todo cubano tem bicicleta. Li no Brasil que o cubano se

divide em cabeça, tronco, membros e bicicleta. Você tem?

-          Não. Tenho um carro velho, que me dá muito prazer.

                        Chegamos na beira mar. Um enorme muro o cerca. É o Malecon. Parou o carro perto da Catedral. Descemos para ver a cidade velha. Pensei que estava na Bahia. Quase não tem diferença, mesmo porque o traje típico das baianas é quase idêntico ao das cubanas. A praça repleta de músicos. O som caribenho invadindo nossos ouvidos. Uma negra, vestida de branco, lábios pintados exageradamente de vermelho, pitando um imenso charuto, bailava num verdadeiro show, fazendo coreografia para os músicos. Artistas populares faziam representação. Um casamento, que pensei fazer parte do espetáculo, mas que depois descobri ser real, com os noivos a frente, daminhas de honra, pais, padrinhos e convidados, desfilava frente à igreja. Ficamos deslumbrados. Mas nosso tempo era pequeno. Visitamos as famosas Bodeguita e Floridita, botecos onde Hemingway se refrescava com mojitos e daiquiris.

                        Explicou-nos que as ruas eram estreitas para que os prédios de um lado dessem sombra aos do outro e discorreu sobre  a arquitetura espanhola, com influência árabe, agora sendo restaurada, graças ao empenho da ONESCO.

                        Fiquei pensando com meus botões. Perguntei para
Sandra: - se a gente fosse montar alguma empresa aqui, o que você teria em mente?

                        Ela, sem pensar, deu a mesma resposta que estava na minha cabeça: -uma fábrica de tintas.

-          Agora vou lhes mostrar a melhor casa de música de Havana.

                        O bar, no meio de uma quadra,  modesto como todos os outros. Entramos. Logo nos apresentou: - é a minha irmã. Formada em música pela Universidade de Havana. A mulata nos beijou, como se fôssemos conhecidos há muito – o que é hábito tipicamente cubano – e nos apresentou as outras três participantes do conjunto. Todas nos beijaram. Estavam sentadas, fumando. Era hora do intervalo. Tomamos uma mesa e fomos atendidos com bastante demora. As moças passaram a tocar e cantar. Ótimas, realmente. Perguntei qual era o ritmo, pois tenho dificuldades em distinguir a rumba do mambo, da salsa, e de tantos outros. César, com uma palavra, resolveu: - Som. Tudo aqui pode ser chamado de “som”. Não se preocupe com o nome.

                        A irmã do César, após a apresentação, tentou nos vender um CD. Não comprei no momento, deixei para a volta, mas deixei dois dólares no pires das meninas.

                        Deixamos o bar. Um flanelinha  guardava o táxi. Ganhou centavos de dólar. César mostrou-nos Vedado com suas mansões, bairro em que os ricos moravam antes da revolução e os pobres não podiam freqüentar. Depois um local à beira mar, onde somente estrangeiros, donos de barcos, têm acesso e as embaixadas, parando frente à que serviu à  antiga União Soviética, uma estrutura enorme de cimento, pesada, onde perguntou com ar de deboche: - já viram construção mais feia do que esta?

                        Não respondemos, Sandra porque não a achou tão feia e eu porque conheço bem Brasília e, sem querer falar mal do nosso grande arquiteto, acho horrível. Mas uma coisa ficou patente: os cubanos, apesar da ajuda que tiveram, jamais digeriram a soberania soviética.

                      - Agora quero lhes mostrar um local onde penso que o Fidel fica algumas vezes.

                        Saímos da cidade e deparamos com um imenso cercado, com muitos militares vigiando. Precisou se identificar, explicando que estava conduzindo turistas em um passeio. Não vimos nada demais, a não ser a vigilância. César disse que ninguém sabe de onde Fidel comanda o país. Que ele é obrigado a estar sempre mudando, pois já sofreu seiscentas tentativas de assassinato.

                        Fiquei com pena do supremo comandante. Deve ser dura a vida de ditador.

                        Na volta para o aeroporto fez questão de dizer que não havia crimes em Havana. Que poderíamos passear sem medo pelas ruas, ao contrário do Brasil, que ele conhecia pela violência.

                        Quis revidar, mas como?

                        Perguntei: - há gente presa por crimes comuns?

-          Sim. Há muita gente presa.

-          Homicidas?

-          Não. Não há muitos homicídios.

-          Que tipo de crime?

-          Mais furtos e roubos.

                        Era a minha oportunidade. Falei: - então é como no Brasil.

-          Não. Menos... menos.

                       No aeroporto senti na pele o furto. Sem ser solicitado, um negro enorme apanha nossas bagagens no porta-malas do táxi e passa para seu carrinho de mão. Perguntei quanto era. Respondeu que era um dólar. Tudo bem. Consultei os bolsos e a menor nota que tinha era de dez. Ele: - eu dou o troco. Pegou a nota e me deixou até hoje esperando. Valeu a experiência, apesar da cara de bobo.

 

SANTIAGO:

                        Quando a gente era adolescente, tomávamos a jardineira para visitar as cidades vizinhas. A última vez eu já estava com meus vinte anos. Fui no casamento de um amigo. O ônibus imundo, pegando gente, galinhas, porcos e cabritos  pelo caminho. O avião que faz o vôo doméstico para Santiago é bem parecido. Um cargueiro adaptado, sem janelas, cadeiras quebradas e o que me assustou: pneus carecas. Rezei. No ar, enquanto subíamos, as nuvens entravam como uma cortina de fumaça. Graças a Deus chegamos. No aeroporto a primeira prova da eficiência cubana. Não havia ninguém da companhia de turismo nos esperando para o traslado. Inadmissível. Ficamos quase uma hora esperando, e nada. Resolvemos tomar um táxi. No caminho o motorista recebe uma chamada pelo rádio: - dona Sandra e senhor Antônio estão no seu táxi? o motorista parou o veículo. Nós confirmamos nossos nomes. Pediu para ver nossos documentos. Mostramos. Ficou tudo explicado. O responsável pelo nosso traslado havia se atrasado em apenas uma hora. Pediu para que o motorista desligasse o taxímetro. Seria tudo resolvido no dia seguinte. Afinal o patrão era o mesmo. Continuou a discussão. O motorista queria saber quem pagaria os dois dólares rodados. Sandra, já nervosa, interferiu: - eu pago! Vamos embora!

                        Assim resolvido. Chegamos no hotel, de onde não saímos nessa primeira noite, pois estávamos muito cansados. Apenas um mojito no bar.

                        Dia seguinte fomos para o centro logo cedo. Santiago nos apresenta muito mais pobre do que Havana. No centro, quase tudo fechado. Perguntamos ao motorista o por que. Resposta simples: - é domingo.

                        Por acaso chegamos no “La Trova”, um lugar destinado a cubanos e turistas para ouvir música. Bem simples. Cadeiras se ajuntando numa sala, com os músicos à frente e entre estes e as cadeiras um pequeno espaço para dança. Ao lado, uma loja de souvenirs e nos fundos um bar. Sandra ficou escolhendo CDs. Fiquei de lado, afastado. De repente três meninas se aproximam de mim. Uma delas, como quem não quer nada, vai aproximando sua mão da minha. Encosta. Faz uma pergunta: - espanhol? Respondo que não. Ela vai se apertando em mim. Não resisto: sussurro imitando um grito para Sandra: - Socorro, estou sofrendo um assédio sexual! Ela não entendeu. Continuou a ouvir as gravações, agachada atrás do balcão. Sou obrigado a sair de perto. A cubana me segue. Aproximei-me da Sandra e a abracei. A cubana nem ligou, ficou sorrindo para mim, mostrando a ponta da língua.

                        Sinto vontade de fumar. Meus cigarros acabaram. Procuro e não vejo um único lugar onde possa comprar um maço. Que vício terrível. Acabo localizando uma cafeteria. Na verdade, uma pequena porta, escura, só freqüentada por cubanos. Peço os cigarros. Só tem o “Popular”, fumo negro, sem filtro, embalagem branca com letras azuis. Horrível de aparência. Penso: - vamos experimentar. Apanho o maço e tiro uma nota de um dólar para pagar. A senhora idosa, atrás do balcão, não aceita. Quer um peso. Como fazer? Já tinha aberto o maço. Insisto. Ela taxativa: - não vendo. Um rapazinho vem em meu auxílio. Informa à senhora que ela pode receber vinte e cinco centavos de dólar e ainda é muito. Ela fica brava com ele: - por que não vende você? Eu não vendo. O rapazinho paga para mim e eu lhe dou o dólar. Tudo acertado. Creio que a senhora ainda não acredita que o cubano já tem acesso ao dólar. Ela deve ser do tempo em que isso era proibido e não se atualizou. Acendo o cigarro e vem o acesso de tosse. Ótimo. Não vou fumar.

                        Na praça, frente à igreja, um cubano me fala ao ouvido: - cuidado com a carteira!

                        Vi, no dia seguinte, no mesmo local, meninos vendendo relógios e outros objetos a pessoas mais velhas, que ficavam encostadas nas paredes. Pode ser que não, mas para mim pareceu que eram trombadinhas negociando com receptadores. Igualzinho ao que se vê no Brasil.

                        Entramos na Igreja da Virgem do Cobre. Na porta, velhos mendigos com canequinhas nas mãos. Um menino grita pedindo trocado, apontando para a mãe em uma cadeira de rodas. Não são muitos os pedintes, mas a revolução ainda não conseguiu acabar com essa chaga. Será que um dia conseguirá?

                        Nesse domingo, com a cidade vazia, perguntamos à motorista de um coco, onde estava o povo. Ela respondeu: - todos estão na praia.

                        O coco é um veículo criado pelo cubano. Trata-se de uma moto triciclo, italiana, com uma estrutura redonda de fibra de vidro, em forma de ovo, que serve para transportar até três passageiros. Também é estatal.

                        Se todo mundo estava na praia. Vamos também para a praia.

                        A piloto do coco nos explicou que havia uma bela praia retirada, onde poderíamos ficar o dia todo, pagando quinze dólares cada um, mas poderíamos comer e beber o que quiséssemos, estava tudo incluído. O local era conhecido como “Bucaneiro”. Topamos o programa. Após rodar uns vinte quilômetros, chegamos. Já estávamos amigos da piloto. Convidamos ela para ficar. Muito alegre, ela aceitou.

                        O local é, na verdade, um hotel, com chalés e apartamentos, piscina, bares, restaurantes e praia particular. Além da comida e bebida, pode-se fazer também pesca submarina ou mergulhos com equipamentos, tudo incluído no preço. Na portaria, pedi ingresso para três. O recepcionista coloca uma pulseira de plástico em mim e na Sandra, mas diz para a piloto: - A senhora não! Cubano não pode entrar com turistas!

                        Quis brigar. Fiquei puto da vida com o Fidel. A coitada estava tão alegre!

                        Argumentei: - nós então também não vamos entrar!

                        A piloto apaziguou: - Pode deixar. Às seis horas eu volto para buscá-los e saiu de perto.

                        Entramos e, depois de um breve reconhecimento do local,  fomos diretos para o restaurante.

                        Surpresa! Quem estava lá dentro, almoçando? A piloto. Pensei que tivesse conseguido entrar “pela esquerda”, como havia dito o César. Mas não, ela tinha direito ao almoço, embora não pudesse ficar ali naquele dia. Era dia em que estava trabalhando.

                        A Sandra não bebe álcool e eu, sem parceiros, bebo pouco. Mas, quando tenho companheiros, sou imbatível. Ficamos amigos de um casal de cubanos  que estava ali hospedado. Ele tinha direito ao “estímulo”, ou seja, a um descanso de cinco dias naquele local. Tudo por conta do Estado. Eram pessoas bastante simples. O Roberto, que ao que me pareceu já havia ingerido algumas cervejas, me convidou para ir ao bar: - tudo já está pago. Pode beber a vontade. Pedi uma cerveja, aliás muito boa a “Cristal” cubana, e uma dose de rum para quebrar o gelo. Roberto ficou espantado com meu pedido. Pediu apenas cerveja. Depois passou a me imitar. Coitado! Quase foi à lona. Ficou me ensinando a dançar “salsa”.

                        A Sandra quem explorou bastante a cubana. Aprendeu muito sobre a ilha. E aqui deve ser dito: Eu falo espanhol. A Sandra não fala. No entanto, ninguém entendia o que eu falava e eu também pouco entendia o que diziam. A Sandra entendia tudo e todos a entendiam. É muito interessante. A cubana contou das novelas brasileiras. Sabia muito mais do que nós. Mas ambos se fecharam, até mesmo o Roberto, que estava chumbado, quando perguntamos sobre política. Desconversaram, mas sempre de forma simpática.

                        Por volta das seis horas, começamos a nos despedir. A piloto deveria chegar logo.

                        Falei para o casal: - se a piloto não chegar, eu alugo uma bicicleta para ir embora.

                        Eles, não entendendo que eu estava apenas brincando, fizeram cara de preocupados. Roberto disse: - não! É perigoso!

                        Dei corda: - não, não creio que haja perigo. Sou muito forte.

                        Tentaram de toda forma me convencer a não ir de bicicleta. Eu insistindo. Roberto pediu licença: - volto já. Espere um pouco.

                        Voltou com um canivete enorme na mão. – Se você for mesmo de bicicleta, leve isto!

                        Neste momento chegou a piloto. Veio com sua filha, uma bonequinha negra de três anos. Encantadora. Roberto ficou aliviado. Prometemos voltar no dia seguinte, mas cadê tempo? A gente quer conhecer tudo. Foi uma pena, pois nem pegamos o endereço deles. Mas brasileiro é assim mesmo: marca um compromisso e não cumpre. Talvez os cubanos também sejam assim.

                        Em Santiago conhecemos vários outros cubanos. Todos muito simpáticos, alegres, prestativos e conversadores. Mas todos desconversando quando tocávamos em política.

                        Numa das noites em que estávamos perdidos pelas ruas, conhecemos o Luizito, motorista de táxi clandestino, um chevrolet verde, todo amassado, 1950. Depois de rodarmos por diversos locais já éramos íntimos. Ele se abriu:

-          Isto aqui é uma merda. Todo dia tem gente fugindo para Miami.

-          E vocês não falam nada?

-          Se falar eles prendem a gente. Algemam. A gente tem medo de falar.

Aqui não tem oposição. Ou é a favor do Fidel ou vai para a cadeia. Não tem escolha.

-          Mas você não acha que está havendo uma abertura?

-          Que nada! O homem não deixa o poder de jeito nenhum. Está pior do

que o Moisés, que ficou quarenta anos rodando o deserto atrás da terra prometida e o povo sofrendo.

                        Em Havana o César havia nos dito que acreditava em uma abertura, e que esta teria de ser lenta e gradual, em benefício do povo. Essa conversa pareceu-me já ter ouvido no Brasil anos antes.

                        Visitamos vários museus da cidade. Em todos muitas mulheres para atender. Praticamente não fazem nada. É muita gente para pouca função.  O primeiro foi o Bacardi. Pagamos o ingresso na porta e uma senhora negra nos conduziu, dando explicações sobre os quadros e de  como foram adquiridos. Simpática, como são todos cubanos, começamos a conversar sobre o carnaval. Em Santiago ele ocorre no mês de julho. De acordo com ela, dura dez dias, e ninguém faz nada nesse tempo. Nos convidou para voltarmos nessa época e disse que poderíamos ficar na sua casa. Disse morar num sobrado e que o desfile transcorria sob sua janela. Como são amigáveis esses cubanos! Acabamos de nos conhecer e já coloca a sua casa à nossa disposição! Que gente amável! Parou diante de um óleo e disse: - esta é a Carmem Miranda. Fiquei boquiaberto. Sandra disse para ela que a cantora era do Brasil, mas que tinha nascido em Portugal. Ela não sabia, pensava que era cubana. Reverenciada pelo povo. Despedimo-nos com beijos. Ainda sem experiência, não lhe dei gorjeta alguma. Na outra ala do museu, onde existe uma múmia egípcia, a cicerone com jeito de espanhola foi educada, mas não tão amável quanto a outra. Deu-nos todas as explicações e, quando nos despedimos, simplesmente perguntou: - não tem uma propina? Dei a ela um dólar, arrependido de não ter dado nada para a outra.

*

**

Carnaval de Santiago.

                                   Se em Havana me senti como se estivesse na Bahia, Santiago é Salvador elevado à segunda potência. Para poder entender esta afirmativa, uma comparação: se Cuba fosse o Brasil, Havana seria São Paulo e o Rio de Janeiro seria Santiago. Ora, se Havana é tão alegre quanto a Bahia, que é mais alegre do que o Rio de Janeiro, imagine Santiago! O carnaval faz parte integrante de sua cultura. É considerado como sendo a instituição cultural viva, mais antiga do país. Sua origem se perde no transcorrer dos séculos. Nada se faz e nada se decide durante as festividades. É o orgulho da cidade. Os  bairros competem entre si para o desfile organizado. Ocorre no mês de julho, mas pelo menos desde fevereiro começa a ser organizado. Os temas musicais, as alegorias, a coreografia, tudo é feito em segredo. É necessário que os bairros não conheçam as montagens dos outros. A competição é ferrenha. Os temas estão relacionados com atividades da vida cotidiana, assim como podem ser homenageados outros países. Há um corpo de jurados para decidir quem foi o melhor. O ritmo, la conga, é puro, vivo, à base de tambores. Uma corneta estridente identifica pelo seu toque cada bairro. Todo mundo dança. Todas as pessoas que conhecemos nos convidaram para voltar no carnaval. A festa é levada muito a sério.

***

INTEGRANDO COM OS CUBANOS

                        Na terceira noite tomamos um táxi na porta do hotel e pedimos que nos levasse a uma casa de shows. Quando chegamos, o espetáculo já estava para findar. O motorista nos indagou: - Vocês não querem conhecer um lugar onde poderão se misturar com os cubanos? Um local onde os cubanos se divertem? Era isso que queríamos. Concordamos imediatamente. Fomos ao La Claqueta. Três dólares por pessoa para entrar. O local muito simples. Na verdade um lote de terreno com uma meia água nos fundos, que

serve de bar e, na frente, mesinhas e cadeiras sobre cimento rústico. Lotado de cubanos. Poucos estrangeiros. Já na entrada caíram sobre nós como moscas no mel. Todo mundo puxando a gente para sentar com eles. Ficamos até mesmo um pouco assustados com as insistências. Cinco ou seis cubanas me arrancam da Sandra e me puxam para a dança sensual. Sandra também é assediada pelos rapazes. Ela, de forma educada, mas firme, o que é bem sua característica, consegue se desvencilhar. Mas eu, bonachão por natureza, vou me deixando envolver. Saem cantadas de todos os lados. São agressivas nos passares de mãos. Com muito esforço, consigo chegar ao bar. Peço uma cuba libre. Elas pedem para que eu lhes pague bebidas. Escolhem cerveja. Tiro uma nota de cinco dólares, entrego para uma delas pagar. Elas devolvem as cervejas ainda não abertas, pagam a cuba e ficam com o troco. A Sandra se diverte com as minhas dificuldades. Não consigo me livrar. Estava prestes a sofrer um estupro e a Sandra rindo de mim. Tive que ser ríspido para conseguir me livrar das garotas. Achamos melhor ir embora, mesmo porque a fome estava apertando e no Claqueta não tinha nada para mastigar.

                        Na rua, escura, portas fechadas, sentimos medo. Andamos quatro quarteirões até chegar em um restaurante. Encontramos este fechando. Solicitamos informação sobre onde poderíamos fazer um lanche e nos informaram que a “Colunita” ficava aberta a noite toda. Deveríamos descer uma rua, dobrar outra e caminhar por mais uns seis quarteirões. Saímos em direção ao local indicado. O medo voltou. Vez por outra cruzávamos com uma moto. Seria assaltante? Um negro, encostado num dos poucos postes elétricos nos aborda. Pergunta aonde queremos ir. Já em posição de defesa, preparado para qualquer ataque, respondo. Ele, gentilmente, nos acompanha até o boteco. Quanta diferença de Copacabana!

                        Na última noite, resolvemos não sair. Apenas curtir o hotel cinco estrelas. Fizemos bem.  No bar o “som” era comandado por Paco. É um daqueles que não martelam o piano, mas que puxam o som do instrumento. Ao ouvir o meu sotaque, não teve dúvidas, passou a tocar músicas brasileiras: Garota de Ipanema, Aquarela do Brasil, Eu Sei que Vou Te Amar e várias outras, principalmente do repertório Jobim/Vinícius. Indescritível. Pelas mesas, turistas, executivos e executivas estrangeiros, cubanas e cubanos enfeitados. A prostituição também é masculina. Os negros cubanos fazem sucesso, principalmente com as alemãs. Aliás, de manhã, na beira da piscina, estavam ao nosso lado dois italianos. Pelo jeito de conversarem, não tive dúvidas, era um casal gay. De repente, um negro cubano chega perto deles. É recebido com abraços e beijos pelos dois que o convidam para almoçar. Ele aceita. Notei que o cubano durante todo tempo estava triste e cabisbaixo. Foi o único cubano triste que vi. Funcionou minha imaginação: - será que transaram e ele não gostou? Será que ele está pensando: - O que a gente não faz para ganhar uns dólares? Mas isso é apenas imaginação de quem não tem o que fazer.

                      Mais no fim da noite, no último andar, a boite apresenta um show. Músicos da melhor qualidade, principalmente Aldo,  o saxofonista. Valeu não ter saído.

 

Varadero

                       

                        Outro vôo arriscado e novamente o aeroporto de Havana. Desta vez não houve atraso da agência de viagem. Um táxi estava a nossa espera para o traslado a Varadero. O motorista, um loirinho robusto e sardento, se apresentou. As deficiências foram outras, que irritaram a Sandra. Após dez minutos de percurso, antes de pegar a estrada, o loirinho pede licença. Para o carro e nos deixa esperando. Parou para tomar uma vitamina, feita por uma ambulante. Parece que eram namorados, pois nos deixou parados pelo menos vinte minutos, enquanto ele ingeria copo atrás de copo e abraçava a vendedora. Ao retornar, perguntou se éramos brasileiros. Diante da resposta afirmativa, talvez para nos agradar, ligou a música. Uma fita de um cantor cubano imitador do Roberto Carlos e cantando as suas músicas. No volume máximo.  E eu já não sou muito fã do original. Foi um suplício, mas como contrariar alguém que quer nos agradar? A Sandra, após uns sessenta quilômetros rodados, conseguiu com educação que ele baixasse o volume. Na metade do caminho estacionou o carro no acostamento. Pediu licença e desceu. Apareceram alguns camponeses com embrulhos de pano nas mãos. Gente vermelha e sardenta. Vendiam queijos na estrada. Comeu um pedaço, negociou o preço, bateu papo... e nós esperando. Sandra deixou claro: - não dê um centavo de gorjeta! Brigo com você se der alguma coisa para ele. Ao voltar ele esclareceu: - é para comer em casa. Eu como com goiaba. É gostoso. Fico na frente da televisão comendo queijo com goiaba. Parece com nós mineiros, que adoramos queijo com goiabada. Mas creio – não perguntei – que o negócio feito foi contra a lei, já que o leite é destinado apenas às crianças e os vendedores não estavam parados na estrada, como ocorre no Brasil, mas saíram de trás do mato. Se não foi, pelo menos a suspeita ficou.

                        Finalmente o hotel. Tiramos as malas do carro e descemos. O motorista se despediu, sem nenhum comentário. Sandra indagou: - deu gorjeta para ele? Respondi que não. E ela: - deveria ter dado. Coitado! Quem vai entender essas mulheres?

 

***

                        Hotel imenso, com todo conforto possível e imaginável. Varadero é destinado praticamente aos estrangeiros. Disseram que cubanos também ali podem passar férias, mas não vi nenhum. Serve apenas para o ócio total. Nada para se fazer além de curtir sol, piscinas e praia. Nesta custa dois dólares por pessoa o aluguel de cadeira. E olhem que a praia é do hotel. Tudo muito organizado, muito bonito, igualzinho filme americano. Mas não era isso que eu queria... queria mesmo era voltar para o meio do povão... queria mesmo era ir para Havana. Praias por praias, sem desmerecer nenhuma, fico aqui com as nossas.

                        Apesar de destinado a estrangeiros, o serviço de bar também é precário. O atendimento é demorado, os garçons ficam conversando entre si. Sentam nos bancos em volta do balcão para fumar. O profissionalismo capitalista ainda não os seduziu.

 

***

                        Na conversa com os estrangeiros, a triste constatação: ninguém quer vir para o Brasil. Medo da violência.

                        Um francês foi bastante claro comigo: - O lugar mais lindo do mundo é o Rio de Janeiro. Não troco o Rio por qualquer outra cidade do mundo. Mas tenho medo de voltar lá.

                        Tento argumentar que não é bem assim. Não adianta. A fama é muito grande.

 

***

                        A garçonete de um dos restaurantes tem nome russo. Puxo papo com ela. Diz que estudou destilaria na Checoslováquia. Fala bem de Fidel e da revolução. Comunista de carteirinha. Resolvo provocar: - Mas você acha justo trabalhar como garçonete, depois de ter estudado por conta do Estado nos exterior? Não seria mais correto dar um retorno, trabalhando na profissão em que o Estado investiu em você?

                        - Há muita gente para trabalhar em destilaria. Aqui eu também sirvo o Estado e posso ajudar melhor a minha família com a propina que ganho.

 

***

 

                        Apenas mar, sol, dormir, comer e beber e, por falar em comer e beber, vamos a outro capítulo.

 

GASTRONOMIA:

                       

                        Já confessei em outro livro: tenho orgasmo à mesa. Com uma vantagem: gosto de tudo. Turismo para mim é sinônimo de gastronomia. Por isso adoro São Paulo, o melhor lugar para se comer no Brasil, talvez no mundo.

                        A comida crioula foi uma decepção. Não tem gosto de nada.

                        Ainda no avião conhecemos o Jânio. Comerciante de antigüidades, que, pelo menos uma vez por semana, voa para Cuba, onde adquire objetos para vender no Brasil. Perguntei a ele sobre a comida.

                          Ele foi taxativo: - não sabem fazer.

                          Retruquei: - Mas nem lagostas e camarões?

   - Eles estragam tudo!

                           Não acreditei. Difícil estragar lagostas e camarões. Infelizmente Jânio tinha razão.

                        O cubano não gosta de peixes e crustáceos. Carne, apenas a de porco e a de frango. A de vaca somente para servir aos doentes hospitalizados. Arroz branco ou congri com feijões negros constituem o alimento básico. As frutas e verduras (que decepção!) estão muito aquém das desenvolvidas no Brasil. Banana verde, picada em rodelas que são fritas como batatinhas, fazem o complemento. Repito: tudo sem gosto. A gente come para não sentir fome. Não chega a ser ruim. Simplesmente come-se sem qualquer prazer.

                        Num dos restaurantes do hotel cinco estrelas em que estávamos hospedados, pedimos lagosta. O garçom ofereceu, por conta da casa, vinho cubano. Não quis arriscar. Fiquei apenas com água mineral. Foi um erro. No avião, na volta, experimentei e achei razoável. Mas a lagosta, como tudo o mais, sem qualquer sabor.

                        Falei para a Sandra: - amanhã a gente almoça num Paladar. Vamos conhecer a comida dos restaurantes populares.

                        Paladares são restaurantes familiares, que têm a autorização do Estado para exercer o comércio, cobrando em dólares. Em Havana, Emiliana, uma cubana que ficou nossa amiga, nos levou em um, fora do roteiro turístico. Limpo e arrumado o lugar. Apenas cinco mesas. Pedimos salada e lagosta novamente. Como em todos os lugares de Cuba, o atendimento foi demorado. Ficamos tomando cerveja. Veio a vontade de aliviar. Indaguei sobre o banheiro. Indicaram-me os fundos. Atravessei a casa cubana e cheguei no lugar. Surpresa! No lugar de papel higiênico, jornais recortados. Ainda bem que minha necessidade consistia em apenas aliviar a cerveja. Coitadas das minhas hemorróidas se a necessidade fosse outra.

                        O sabor idêntico aos outros, ou seja, nenhum.

                        Repetimos o pedido no restaurante do Capitólio. Lagosta para a Sandra e camarões para mim. Estragaram mais ainda os pratos. Não havia diferença entre eles no modo de preparo. Ambos cobertos com massa de tomate e nem esta tinha qualquer gosto.

                        Assim, a solução era se empanturrar de ovos no café da manhã.

                        Mas nem tudo estava perdido. Revelou-se como bom prato o frango. O jogo de coxa e sobrecoxa assado, frito ou marinado. Fica entre o nosso frango de granja e o caipira. Acredito que Cuba ainda não desenvolveu uma ração capitalista como a nossa. Foi o que de melhor comi na Ilha.

                        Mas a comida típica crioula posso afirmar, sem qualquer dúvida, é a pizza. Esta é encontrada em todos os lugares. A cubanada aprecia demais. Talvez seja o preço: uma brotinho, honesta, pode ser encontrada por vinte e cinco centavos de dólar. Há filas enormes para comprar. Em todos os hotéis há pizzarias. É claro que não podem competir com as cantinas do Bixiga, mas dá para o gasto.

                          Nas tiendas, o balcão de frios é decepcionante. Interessante que a mortadela é mais cara do que o presunto. Experimentamos ambos e ambos tão saborosos como gelatina sem sabor.

                        Em resumo, gastronomia não é o forte de Cuba.

 

***

 

CAYO LARGO:

                        Trinta e cinco minutos de vôo e estamos na ilhota de Cayo Largo. Pode ser uma contradição, mas o silêncio é ensurdecedor. O hotel, desta vez, não é tão bom quanto os outros. Apenas razoável. A diária é completa, ou melhor: completíssima. Pode-se também beber o dia todo sem qualquer gasto a mais. Tudo está incluso no preço. Apenas um casal de cubanos hospedado. Todos os outros apartamentos ocupados por estrangeiros. E, se tudo é de graça, o melhor lugar para ficar é o bar.

-          Pergunto para o barman se há pinga?

Ele ri, de forma escandalosa.

Fico surpreso. Repito a pergunta.

                        - Pinga, em Cuba, é o pinto! Continua a rir e segura o membro viril, num gesto obsceno.

                       Lembrei-me de uma crônica escrita pela atriz Lucélia Santos em uma revista de grande circulação, fazendo humor, onde ela diz ter pedido “pinga” em Cuba. A estas alturas já estávamos rodeados de empregadas do hotel. Contei a crônica para eles. Todos caem em gargalhadas. O barman diz: - devem ter dado muita “pinga” para ela aqui. Nós cubamos adoramos a Lucélia Santos.

                        Notei um rapazinho loiro, de uns vinte anos de idade, sorrir de forma tímida, tentando entrar na conversa, mas sem conseguir. Sandra, que acabara de chegar, também notou a timidez do moço. Ele se aproximava da gente, dava um risinho sem graça, e se afastava.

                        Uma observação: a jornada de trabalho na ilhota é de doze horas diárias, sendo que os empregados laboram vinte dias por mês e descansam dez. A maioria reside em Havana. Todos ficam alojados no próprio hotel.

                        No aperitivo da tarde, enquanto Sandra se arrumava, forcei conversa com o rapazola. Aos poucos ele venceu a timidez e perguntou:

-          No Brasil corre dinheiro?

                        - É diferente. Há dinheiro correndo, muita gente rica, mas também tem muita pobreza.

-          Eu vou fugir daqui!

-          Para Miami?

                        -   Para qualquer lugar. Meus pais já fugiram. Eles estão trabalhando nas ilhas Cayman.

-          Mas você não está bem aqui?

                        - Veja a minha roupa! Está cheia de furos. A gente não consegue nada. Eu não tenho nada! Nem esperança. Não quero passar a vida inteira servindo turistas. Quero ganhar dinheiro. Eu vou fugir, nem que seja a nado.

                        A estas alturas outros turistas estavam chegando e ele encerrou a conversa.

                        Amanhece com céu de brigadeiro. Após o café da manhã, alugamos um jipe e fomos conhecer a ilhota. De um lado apenas um vilarejo, na estrada vários hotéis, muitos em construção. Pegamos uma trilha e partimos para conhecer a praia virgem e, de repente, lá estávamos nós. Apenas Sandra, eu e aquele mar imenso, verde esmeralda, que banha a areia tão fina e macia, que a gente se afunda ao andar. Silêncio total. O sonho Hollywoodiano de morar em uma ilha deserta é apenas sonho. O silêncio e a solidão assustam. Preferível viver no meio da multidão, o medo da violência é menor. Resolvemos voltar. Após nos perdermos nas trilhas, chegamos ao hotel, devolvemos o jipe e fomos para a praia em frente, onde havia gente. No percurso passamos pelo bar. O rapazola não estava.

                        Ao longe o mar é azul escuro. Depois vai esverdeando. O verde vai clareando e quebra transparente na areia branca. Peixes circulam em volta dos banhistas em cardumes. Também são transparentes, quase invisíveis. É o paraíso na terra.

                        A gente, de papo para o ar, se refrescando com mojitos, daiquiris e cuba-libres. Às vezes uma cervejinha. Não quero outra vida. E ali ficamos o tempo todo, até quase anoitecer.

                        Na volta para o hotel, Sandra foi na frente. Fiquei no bar. Perguntei sobre o rapazola. Ninguém respondeu.

                        Jantamos, fomos para a área de lazer e não vi o moço.

                        Dia seguinte partimos para Havana. Antes de sair do hotel, após o almoço, passei no bar para gratificar o pessoal, o rapazola não estava. Fica a indagação: será que se mandou?

 

HAVANA:

 

                        Chegamos ao entardecer, após trinta e cinco minutos de vôo acompanhado de muita reza. No aeroporto doméstico outra grande falha da empresa de turismo. Ninguém a nos esperar. Desta vez não era apenas Sandra e eu, mas um grande grupo de turista, entre eles quatorze brasileiros. A gente já estava acostumado, os outros ainda não. Sandra quis tomar um táxi. Discordei. Queria saber quanto tempo levariam para pegar a gente. Isso também é cultura. Depois de uma meia hora de espera, chegou uma van, apanhou alguns estrangeiros. Logo após chegou outra, levou o restante, menos nós brasileiros, que tínhamos outro hotel por destino. Chegou um ônibus. Perguntamos ao motorista se era o nosso. Ele respondeu negativamente, dizendo que estava aguardando um avião de Varadero. Nós todos ali aguardando. Com muitas reclamações, descobrimos que não havia nenhum avião vindo de Varadero. Insistimos com o motorista do ônibus. Ele mostrou a ordem. Tinha que esperar o vôo de Varadero que não existia. Nisso chegou uma mensagem pelo o rádio, a ordem fora errada, o vôo que ele devia esperar era o nosso. Cronometrado, tudo levou uma hora e dezoito minutos de espera no aeroporto vazio.

                        A primeira noite praticamente sem programa. Ficamos no bar do hotel. Aqui a prostituição é mais ostensiva, chega a ser descarada. Jantamos num dos restaurantes – o mais sofisticado – a mesma falta de gosto nos pratos. Salva a música. Como tem músicos em Cuba! Todos tentando vender suas fitas ou CDs, e sempre com um pires para as propinas.

                        Logo cedo, partimos para Havana velha. Estávamos morrendo de vontade de voltar. Alí nos perdemos pelas ruas, apreciando os prédios, a música que envolve toda a cidade, a história e, principalmente o povo.

 

SAÚDE/ MULHERES:

                        Falar sobre a saúde em Cuba é abundar. A literatura e a mídia já falaram muito sobre o assunto. É direito de todos, os médicos são ótimos, muitos estrangeiros vão à ilha em busca de tratamentos, etc. Mas pelo menos uma falta de especialidade médica existe. Não deve haver endocrinologistas. As mulheres são, na maioria, enormes. Banhas caindo por todos os lados, principalmente nas bundas. Os homens são mais atléticos. Mas as mulheres, como dizem os advogados, data venia, devem cultivar a gordura. Mesmo as magras e esticadas cultivam as bundas. Sejam brancas, mulatas ou negras. Mais ainda: encurtam as saias e vestidos na parte de trás, para dar destaque. Em Cuba, bundas abundam.

                        Fica aqui uma sugestão para os facultativos especializados em regimes. A obesidade é uma doença generalizada no país de Fidel. Bom campo para exercer a profissão.

***

                       

                        Embora não querendo abundar, falando sobre a saúde em Cuba, é interessante a seguinte informação: em 1999, Cuba ostentou um índice de mortalidade infantil de 6,4 óbitos para cada mil crianças nascidas vivas, o mais baixo de sua história (no Brasil o índice é de 36 óbitos para mil crianças e, nos Estados Unidos, o índice é de 7). Na ilha não há casos de paralisia infantil, malária, difteria, sarampo, rubéola, caxumba, tétano neonatal, a síndrome da rubéola congênita e a meningoencifalite pós caxumba. Administram-se vacinas preventivas às crianças contra 13 doenças. A mortalidade materna continua abaixo de 3 nos últimos quatro anos.

***

EMILIANA:

                        Conhecemos Emiliana nas ruas. Representante típica cubana. Negra lustrosa, enorme de ombros, barriga, peitos e bunda. Um metro e setenta de altura e uns cento e dez quilos de peso.  E só anda de sapato alto, empinando a bunda mais ainda. Aspecto saudável e sorriso contagiante. Vinte e três anos de idade. Educada, prestativa e alegre. Eu estava querendo comprar um boné desde Santiago e só havia encontrado nas tiendas. Mas os preços eram salgados, vinte dólares. Foi Sandra quem a abordou em uma esquina. Solícita, boa de papo, foi nos acompanhando. Não encontramos o boné, tive que morrer com o preço pedido na tienda. E aqui outra sugestão para empresários que quiserem investir: uma fábrica de bonés a preços populares.

                        Depois de uma voltas pela cidade, resolvemos parar no “El Patio” para uma hidratada. Sandra pediu um suco. Emiliana e eu cerveja. Ela deve ter tomado umas dez e fumou todo o meu maço de cigarros. Disse ser professora primária, mas que estava de licença por três meses e, assim, estava procurando ganhar alguns dólares dos turistas. Disse baixinho:

                        - Por favor, se algum polícia ou fiscal perguntar, digam que sou amiga de vocês. Que foram vocês que me convidaram.

                        Realmente. Nós quem a convidamos. Mas perguntei:

-          Por que?

                        - Existe uma lei em Cuba que proíbe o assédio ao turista. Ninguém respeita, mas é bom não abusar.

                        Pensei: No  Brasil nós também temos lei que não entraram na moda.

-          Vocês querem comprar charutos?

                        Antes de qualquer resposta, foi dizendo: - Nas fábricas e nas tiendas os charutos são muito caros. Eu tenho um primo que trabalha enrolando charutos e ele consegue por preço bem mais em conta.

                        - Como?

-          Ele pega na fábrica.

-          Ele furta?

-          Não. Tem um esquema. Ele consegue por preço muito menor.

                        Fiquei interessado em saber como ele conseguia. Como pagamento? Algum trambique? Fiz várias indagações, mas ela não deu nenhuma explicação satisfatória. Apenas disse:

-          Ele tem um jeito.

                       Depois descobri que em Havana há multidão de cubanos tentando vender charutos por preço menor para turistas. Mesmo na porta da fábrica encontrei meia centena deles assediando os turistas para esse fim. Ou seja, infringindo a lei ostensivamente. Tudo sob as vistas dos policiais, que são muitos pelas ruas.

                        Me recusei a comprar os charutos.

-          E rum? Deseja?

-          De rum eu gosto.

-          Tenho um cunhado que trabalha numa destilaria. Consegue mais barato?

                        E repetiu a história. Repeti a pergunta: - mas como ele consegue? Ela: - ele dá  um jeito.

                        Falou do racionamento e das dificuldades para conseguir produtos melhores. Houve tempo em que Fidel teria dito que a revolução só terminaria quando acabasse o racionamento. Quando isso acontecesse ele rasparia a barba. Pelo visto, a barba dele ainda vai crescer por muitos anos, pois cada dia o racionamento é maior. Mas isso não assusta muito, todos comem nas escolas e nos locais de trabalho. Como disse, a obesidade é que é um problema.

                        Levou-nos no paladar.

                        Enquanto tomávamos cervejas, esperando o pedido, ela pediu licença e saiu para a rua. Voltou com um rapazola.

-          É meu irmão. Está indo para o trabalho.

                        Não devia ser verdade. Convidei o menino para almoçar com a gente  e ele, sem se fazer de rogado, também pediu cerveja e encomendou uma lagosta. Mas são tão simpáticos, tão informativos do que queríamos saber, que achamos ótimo.

                        Ela contou que foi mãe com dezesseis anos de idade. O pai de seu filho fugiu para Miami. Não manda um centavo sequer.

-          Mas vocês aqui tem saúde. Há médicos, hospitais...

-          Mas não têm remédios. Não existem remédios nas farmácias. Se você

tem uma dor de cabeça, não encontra aspirina. Tudo existe, mas apenas para quem está hospitalizado. Sem hospital não tem remédio. Em Cuba falta tudo. O que mais tem em Cuba é falta.

                        A certa altura disse para ela que estava interessado na Santería. Disse que era de Ogum.

- Eu tenho uma madrinha que é santeira. Se quiser vamos lá depois.                                             Eu estava brincando. Mas aceitei o convite.

 

 

RELIGIÃO  

                        As estatísticas oficiais informam que a religião mais difundida em Cuba é a católica. As variações protestantes são minoria. Um boletim informativo, neste tópico, diz que o ateísmo também é grande.

                        Não creio sejam verdadeiras estas informações. Pelo que observei, a santería, que corresponde à nossa umbanda, tem maior número de adeptos. Um manual de turismo explica que a religião afrocubana é fruto da fusão da religião trazida pelos escravos com o catolicismo. O sincretismo religioso teve sua origem na busca pelos escravos negros de uma identificação de suas divindades com os santos católicos, para poder enganar o conquistador espanhol e, assim, cultuarem sua própria religião, sem se submeterem a castigos. Assim, Obatalá encontrou seu correspondente na Virgem das Mercedes;  Iemanjá tem sua eqüivalência na Virgem de Regla; Ochum, em Nossa Senhora da Caridade do Cobre; Ogum em Santo Antônio;  Changô em Santa Bárbara; São Lázaro, lá é um santo muito respeitado, se confunde com Babalu Aié, tudo como ocorreu também no Brasil.

                        Para ser adepto da santería é exigido o batismo na Igreja Católica. Foi o que aprendi com a madrinha da Emiliana.              

                      Mulata clara, alta, de óculos arredondados e pano em forma de turbante envolvendo a cabeça a madrinha nos recebeu dentro dos costumes cubanos, ou seja, com beijos.

                        A conversa inicial foi como se já fôssemos conhecidos de muitos anos.

                        A casa simples, em um cortiço.

                        Quando entramos no assunto de religião, falei que não havia visto imagens.

                        Ela me levou para um canto da salinha e mostrou uns potes de barro pintados e foi explicando. Cada um dos potes representava uma divindade da religião afro. Dentro deles determinados objetos ou tipo de terra, que identificavam o “santo”.

                        Disse para ela: - Sou de Ogum!

                        Ela: - o santo guerreiro! Este é ele! – e mostrou-me uma panela de ferro. Dentro dela alguns cravos, um pequeno arco e flecha, uma imitação de revólver, tudo em ferro.

                        Fiquei admirando a criatividade dessa religião. As feiticeiras do passado também usavam objetos caseiros para representar as suas divindades.

                        Perguntou se queríamos fazer alguma consulta. Diante da resposta afirmativa, perguntou:

-          Vocês são batizados na igreja católica?

Respondi que sim. Sandra disse que não era batizada.

                        Ela passou a fazer uma pregação para a Sandra, tentando convence-la a se submeter ao batismo católico, na igreja.

                        Depois pediu-nos que a aguardassem na cozinha, para ela preparar o ambiente.

                        Quando voltamos, sobre uma mesinha havia diversos copos com água. Creio que não usam velas pois, como tudo o mais, deve faltar no mercado.

                        Pediu-nos que ficássemos de pé e rezássemos o Pai-Nosso.

                        Depois sentamos e ela incorporou o “santo”.

                        Fez várias recomendações. Falou de forma genérica sobre nossas atividades e como deveríamos nos portar, a partir daí. Insistiu para que Sandra recebesse o batismo.

                        Terminada a sessão, disse que não cobrava nada por ela, mas se quiséssemos deixar-lhe alguma coisa ela aceitaria.

                        Pus uma nota de cinco dólares debaixo de um dos copos.

                        Despedimo-nos como chegamos, ou seja: com beijos.

                        Na porta, voltei e fiz uma pergunta: - e o Exu? Não existe aqui o Exu?

                        Ela: - Exu? Exu?... não conheço.

                        Insisti: - Exu! O que fica na porta de entrada! O Tranca-rua!

                        Ela pensou: - sim! Não é Exu! É Echo!

            E mostrou-nos, atrás da porta de entrada, bem escondido, um pote de barro com um crânio humano.                                                                                                                                                                                              

***

              Embora haja liberdade de religião, o católico é discriminado. Ele não pode fazer parte do Partido Comunista Cubano. Foi o que um tecladista, que tocava a “Oração de São Francisco”, me contou.

                         Releio “Fidel e a Religião”, do Frei Betto, e a discriminação é confirmada pelo próprio Comandante Supremo:

                              “ Frei Beto – Porém, no Partido Comunista Cubano não se admite a presença de cristãos?

                            Fidel Castro -  É verdade, não se admite.” (fls. 225)

                        Creio que esta discriminação deixará de existir em breve. O Papa João Paulo II, de 21 a 24 de janeiro de 1998, visitou a ilha, convidado por Fidel, esteve em quatro províncias e celebrou quatro missas. Este fato é destacado diariamente na imprensa e na televisão, consta inclusive dos diversos guias de turismo como sendo “festa nacional”. Não deixa de ser uma abertura.

                        Indagado sobre essa visita e se o Papa o havia convencido, Fidel assim se manifestou: “Na verdade, não lembro que o Papa tenha tratado de me convencer de algo. Recebemo-lo com a hospitalidade e o respeito que merece uma personalidade de tanta importância, especial talento e carisma. Ambos os dois falamos à luz pública ao chegar e ao partir, e ambos os dois colocamos com respeito e dignidade as nossas idéias. Eu fui breve: 14 minutos ao recebê-lo e 5 minutos na despedida. Colocamos o país nas mãos dele, lhe entregamos as mais históricas praças públicas, que foram escolhidas pelos organizadores da viagem; as nossas redes de televisão ficaram ao seu dispor, bem como os transportes que solicitaram para as mobilizações, que era tudo o que tinha o nosso país bloqueado; convidamos as militantes do nosso Partido, a Juventude Comunista e as organizações de massas para participarem das missas com a rigorosa orientação de escutar com respeito todos os pronunciamentos e sem um só cartaz, palavra de ordem ou exclamações revolucionárias. Cento e dez redes estrangeiras de televisão e cinco mil jornalistas receberam autorização para divulgar tudo ao mundo. Nem um soldado na rua, nenhum polícia com armas. Em nenhuma outra parte aconteceu algo parecido. Ao finalizar, os organizadores das viagens do Papa afirmaram que era a melhor  visita que ele tinha realizado. Não aconteceu nem um só acidente de trânsito. Acho que ele levou uma agradável impressão em Cuba. Tive oportunidade de admirar a sua capacidade de trabalho e a abnegação com que cumpria rigorosamente os duros programas que lhe impunham os seus colaboradores. Os que ficaram totalmente desapontados foram aqueles que no exterior, e não eram poucos, imaginaram que a Revolução derrubar-se-ia como as muralhas de Jericó, perante a presença do Papa. Tanto a Revolução como o Papa saíram muito cientes das suas próprias forças”.

 

                        Já a santería não é discriminada pelo partido. Pelo contrário. No hotel, frente ao aparelho de TV, vejo uma manifestação comunista comandada por Raúl Castro. – como comunista gosta de manifestação! Tem todo dia! Haja saco para agüentar! – Entre um discurso e outro, saudados pelos gritos de “viva Fidel!” – “viva Raúl!” – “viva o Partido!” vários espetáculos artísticos, todos representando a umbanda da ilha. Ao som dos atabaques os artistas dançam e imitam a incorporação, rolando pelo chão. A comunistada aplaudindo.

***

         A padroeira de Cuba é a Virgem da Caridade do Cobre. A lenda é similar à da Virgem de Aparecida. Conta-se que sua imagem foi encontrada flutuando nas águas da baia do Nipe, debaixo de uma tempestade e que ela salvou a vida de seus descobridores, que estavam naufragando. O Papa João Paulo II coroou esta imagem em janeiro de 1998 e a chamou de “Rainha dos cubanos”.

***

Outro santo bastante venerado é São Lázaro. Conheci muitos cubanos com o nome de Lázaro.

***

 

CORTIÇOS

                        Em Cuba não existem favelas. Existem cortiços.                

                        O Jânio havia informado que os cubanos adoram convidar os turistas para irem em suas casas. Se isso acontecesse conosco, deveríamos levar cervejas e alguma coisa para mastigar. Embora receptivos, eles não têm condições de oferecer nada.                         Com a Emiliana não deu outra. Tão logo saímos da casa da madrinha santeira, ela nos convidou:  - Vamos agora na minha casa. Vocês vão conhecer a minha mãe.

                              

                        Sandra quis recusar, pois estava anoitecendo. Poderíamos deixar para outro dia.             

                        Ela insistiu: - vocês não querem conhecer a minha mãe?

                        Ficamos sem jeito de recusar. Mas não tivemos tempo de comprar petiscos e cervejas. Fomos assim mesmo.

                        A frente da casa, um sobrado velho, de três andares, estilo espanhol, caindo aos pedaços. Subimos uma escada e chegamos num cômodo de uns seis metros quadrados. Uma senhora negra, baixinha, menos gorda do que a filha, estava sentada frente a uma mesa rústica. Na frente desse cômodo uma pequena cozinha, com fogão de duas bocas, geladeira da década de cinqüenta, alguns utensílios de alumínio, pia, barricas de plástico para armazenar água  (não existe, naquela parte da cidade, água potável encanada – a distribuição é feita por caminhões tanques). Nos fundos, outras moradias idênticas. Na sala onde estava sentada a senhora, uma TV em preto e branco, aparelho de som, móveis antigos. Panelas idênticas à da madrinha santeira guarneciam um dos cantos. Sobre essa sala, outro cômodo, com chão de madeira dividindo, consistente do único quarto e de pequeno banheiro. Ali vivem treze pessoas.                     

                        Tão logo chegamos, Emiliana abriu seu sorriso, falando bem alto: - Casa de cubano!

           Para ela, sua casa também  é uma atração turística. E tem razão.                                               

            Como todos os cubanos, a mãe nos recebeu com beijos e abraços. Pôs-nos à vontade.

                        Emiliana desapareceu. Foi para o cômodo de cima. Após alguns minutos, ouço, vindo da parte superior, o som de uma descarga de privada. Sinto cheiro de merda. Devem ser precários os encanamentos.

                        A mãe ligou o aparelho de som. Cubano não vive sem som. Começamos a falar de música. Ela se levantou e me convidou para dançar. E passou a ensinar a mim e a Sandra os passos da rumba.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                 Chegou um senhor. Era o tio. Ofereceu rum. Não aceitamos. Ficamos conversando.        A mãe disse: - tenho um filho de dezessete anos estudando na Alemanha. Vai passar lá três meses. Ele estuda línguas. Está lá para se aperfeiçoar. E passou a falar dos filhos, como toda mãe. Disse que era católica, devota de São Lázaro. Olhei para o canto da sala, onde estavam as panelinhas e perguntei: - mas e aqueles orixás?

         Ela: - para seguir os orixás é preciso ser católico.                                                                       

         Quase uma hora depois ressurgiu Emiliana. Estava toda empetecada. Purpurina dourada no rosto e calça listrada de preto e branco, bem apertada, dando maior destaque à bunda. Cheirosinha.

 

ME PASSARAM PARA TRÁS (outra vez)                   

                        Emiliana se convidou: - vou sair com vocês! Vou levá-los para ver o canhonaço.

             Canhonaço é uma representação cerimonial, na fortaleza de Havana, onde se dá um tiro de canhão. É uma bobagem, mas atrai turistas toda vida.                                                       

             Argumentamos que deveríamos voltar ao hotel para um banho e troca de roupas.            

                      - Eu espero.

          - Então, tudo bem.

            Na rua, não nos deixou apanhar um táxi.

            Vamos apanhar um clandestino. É mais barato. Só um dólar por pessoa.            No fordeco cinqüenta e dois já estava um casal. Em cuba não tem importância. O motorista primeiro deixou o casal e recebeu os seus dois dólares. Depois foi para nosso hotel, onde parou um quarteirão antes, pois se fosse até a porta poderia ter o carro apreendido. Descemos do carro. Enfiei a mão no bolso, a menor nota que tinha era de dez dólares. Dei para ele, esperando o troco. Ele enfiou a mão no bolso, fingindo, soltou o freio de mão e saiu em disparada.

 

FIDEL TAMBÉM É PASSADO PARA TRÁS;

                        Enquanto tomávamos banho no apartamento, Emiliana ficou no bar tomando cerveja por minha conta.

                        Já refrescados e de roupa limpa, apanhamos um táxi estatal.

                        Na fortaleza o motorista nos mostrou o taxímetro: - deu nove dólares. Fui pagar e ele perguntou: - não querem que eu espere? o taxímetro não corre com o carro parado.

                        Diante da minha concordância, falou novamente: - veja, deu nove dólares, depois o senhor paga tudo.

                        Assistimos o cerimonial, visitamos um museu de armas e demos um passeio  pelo local.

                        O motorista nos esperando.

                        Já havia acontecido antes. Eu é quem não tinha prestado atenção. Depois disso, fiquei mais atento e vi que todos os motoristas fazem o mesmo.

                        Ele voltou com o taxímetro desligado. Cobrou dezoito dólares. Nove foram para o Estado. Nove para o seu bolso. A operação é fácil. Todo motorista de hotel e aeroporto tem que ficar em seu posto. Quando transportam alguém, são obrigados a voltar. Não tendo passageiros, o taxímetro é desligado. Como é que o Fidel vai saber que está voltando com passageiros?

 

SHARO        

                          Uma semana antes de voar para Cuba, durante o happy hour, comentei com o Marcelo sobre a intenção da fazer a viagem. Ele já conhecia a ilha. Adorou. Ficou entusiasmado. Passou a me dar dicas. De repente ele falou: Tenho uma correspondente em Havana. Que dia vocês vão estar lá?                       

                         O Marcelo é internauta compulsivo. Corresponde com o mundo todo. Havia me esquecido dessa conversa.

                         Ainda não tinha acordado. Toca o telefone do apartamento do hotel. Quem será? Notícia ruim? Atendo.

                         - É o senhor Luís?  Pergunta uma voz feminina, em espanhol.

                         - Sim!

                         - Aqui é Sharo.

                         - Quem?

                         - Sharo! Amiga de Marcelo!

                         Lembrei-me do internauta.

                             Ela: - quero conhecer você e a Sandra!

                             - Onde podemos encontrá-la?

                             Ela me informou o lugar. Uma repartição pública, ligada a um ministério, bem como chegar lá.                       

                             Na hora marcada, lá estavam Sandra e eu. Na porta, uma mesinha com duas moças tomando conta. Disse a elas quem éramos e que queríamos falar com Sharo. Uma delas explicou que Sharo possivelmente trabalhasse num dos andares superiores. Ali em baixo era um museu. Se quiséssemos esperar, ela iria verificar quem era. Poderíamos ficar sentados ali na porta. Para entrar no museu teríamos que pagar três dólares cada um.

Falei: - Vamos fazer  o seguinte: eu pago os ingressos e vamos visitar o museu. Enquanto isso, você me faz o favor de procurar a Sharo, certo?  Ela concordou.            

                             Visitamos o museu, fizemos um lanche na lanchonete que ali havia e ficamos amigos da guia, uma negra simpática, como todas as outras. Voltamos à portaria. Uma mocinha de uns vinte anos estava ali. Branca, sorridente, cabelos compridos. Nos aproximamos e ela:  - Eu sou Sharo! Me abraçou e beijou nas faces.

                               - E eu sou o amigo do Marcelo.

                               - Quem é Marcelo?

                               - O brasileiro que corresponde com você pela internet.

                               - Não me lembro!

                               - Você não me ligou hoje cedo no hotel?

                                - Não.

                               A Sharo que eu procurava era outra. E esta havia nos recebido com beijos e abraços. Como são amáveis estes cubanos!

                               A guia localizou a Sharo que queríamos. Levou-nos à sua sala. Quinto andar. Surge uma moça branca, toda sorridente, também nos recebendo com abraços e beijos. Passa a falar do Marcelo. Conhece ele melhor do que eu, que sou seu amigo.

                               - O Marcelo é uma pessoa inteligentíssima... 

                               Eu não sabia que era tanto.          

                               - Ele é do partido dos trabalhadores. Você também é?

                               Respondi que não. Que era social democrata.

                               - Como na Suécia? 

-          Talvez. Eu não conheço a Suécia.  

-          Eu conheço. Conheço bem a Europa. Estudei na União Soviética.

-          É? Que curso você fez?

-          Sou engenheira de aeronaves. Mas não é este o seu trabalho, certo?

-          Certo. Eu trabalho com computadores. Faço pesquisas na área turismo.  Isso, pelo que vi, é comum em Cuba. Estuda-se uma coisa e trabalha em outra.

-          A gente trabalha aonde pode ser mais útil para o Estado.

Estava diante de uma revolucionária.

- Você gosta do seu trabalho?

- Claro, entrem para ver.

 Apertou algumas teclas do micro e passou a mostrar as suas pesquisas.

Depois acrescentou: - e tem outras vantagens, que ninguém pode saber. Eu aqui comunico com muita gente. Tenho amigos no mundo inteiro.

Apertou outras teclas e lá estava uma mensagem do Marcelo.

                        Me colocou diante do teclado: - vamos! Responda para ele.

                        E, ali de Havana, dentro de uma repartição pública, passei a bater papo com o Marcelo,  escondido do Fidel.

                        Me mostrou um livro encadernado, escrito em inglês, com várias fotos.

-          É um livro muito raro. Muito valioso!

Era “A História Me Absolverá”, do camarada Fidel.

                        - É um presente para o Marcelo. Por favor, leve para ele, mais esta caixa de charutos e esta garrafa de rum.

                        E o Marcelo não tinha mandado nenhum presente para ela!

                        Saímos com ela pela portaria de serviço. Ali ela abriu a bolsa para mostrar que não estava levando nada. Nos levou até uma fábrica de charutos e logo nos despedimos. Infelizmente ela não poderia ficar com a gente. Tinha um filho de cinco anos e não tinha com quem deixá-lo à noite.

                        Eu tinha levado alguns livros meus para poder presentear pessoas que ficasse conhecendo. No dia seguinte levei para ela três exemplares. Um para ela, com dedicatória e pedi que desse os outros dois a pessoas que gostassem de leitura. Ela ficou encantada. Até hoje continua a falar sobre isso com o Marcelo. Antes de me despedir, perguntou-me se estava gostando do país. Respondi que sim, que estava gostando principalmente do povo. Ela, orgulhosa, disse: - aqui nós repartimos tudo. Aqui somos todos iguais.

                        Fui maldoso: - infelizmente estão repartindo a pobreza. Seria bom que repartissem a riqueza.

                        Ela se fez séria. Disse: - ainda vamos conseguir! Um dia ainda vamos ser iguais à Suécia. Está havendo uma abertura. Esta abertura tem que ser lenta e gradual.

                        Mais uma vez a mesma conversa que já tivemos por aqui.

 

 

ANDANDO PELAS RUAS DE HAVANA.

                        Dá gosto. A capital da ilha de Fidel é limpa e arborizada. O trânsito é pequeno. Todo mundo é atencioso. Basta perguntar onde fica determinado local, que o cubano está disposto a levar até ele.

                        O transporte coletivo é precário. Operários são transportados em carrocerias abertas de caminhões. O camelo, uma estrutura de lata, maior do que três ônibus, montada sobre o chassi de um caminhão, chega a transportar trezentas pessoas. Os cubanos apontam para essa monstruosidade e dão risadas. Acham gozado o próprio desconforto.

                        Os automóveis velhos trazem a placa “PARTICULAR”. Os mais novos “TURISMO” ou “OFICIAL”.

                        Estávamos indo para a cidade velha, quando notamos uma Mercedes novinha, cor vinho. A placa informando: “PARTICULAR”. Curioso, indaguei ao nosso motorista:

-          Quem pode em Cuba ter um carro como esse?

-          É um grande jogador de basquete. Já teve ofertas milionárias para jogar

Em outros países. Prefere ficar em Havana.

                        A prostituição é como uma praga. Por todos os lugares mocinhas enfeitadas se oferecendo, pedindo carona. Dizem os cubanos que o governo poderia reprimir esse comércio sexual com muita presteza, usando da repressão, mas estaria perdendo muitos dólares do turismo. No entanto, a propaganda oficial, inclusive o próprio Fidel, insiste em dizer na televisão estatal, que não existe em Cuba turismo sexual, mas apenas um turismo sadio, familiar, destinado a pessoas de bem. Pura balela.

                        A Bodeguita Del Médio é parada obrigatória para um mojito e a Floridita para um daiquiri. Experimentamos ambos, seguindo a cinqüentenária recomendação de Hemingway. Na primeira, não conseguimos distinguir qualquer diferença entre o mojito ali servido e os de outros locais. Na segunda, constatei que o daiquiri que tinha tomado no hotel era melhor.

                        Muitos prédios antigos sendo restaurados. Mas o trabalho é bem lento.

                        Museus pequenos por todos os lados. É museu de armas, museu de carros, museu da cultura árabe, museu da revolução, museu do carnaval, museu do rum, museu de ciências e por aí afora. Todos cobrando ingresso em dólar. Para fotografar, quando permitido, mais um pagamento. Realmente os cubanos gostam de preservar a história. E, em todos os museus, muita gente empregada para pouco trabalho.

                        A feira de artesanato é bastante pobre em ofertas. Apenas bonecas de pano, vestidas de baianas, esculturas rudimentares em madeira, instrumentos musicais também rudimentares, camisetas com estampa do “Che” , nada realmente que merecesse ser adquirido.

                        As melhores mercadorias estão nas tiendas. São produtos estrangeiros, em geral. Existe até mesmo a Coca-Cola, fabricada no México. No passado, quando era proibido o ingresso de cubanos, no tempo da União Soviética, dizem que eram melhores. Havia inclusive caviar russo. Há também produtos cubanos, principalmente frios, bebidas e charutos. Ali uma constatação que me causou pena do povo cubano: ovos são vendidos por unidade (dez centavos de dólar).

                        O comércio destinado ao povo não é pobre, é paupérrimo. Pouquíssimos produtos e todos de péssima qualidade, sem qualquer embalagem. Lojas escuras, balconistas que atendem mal, que sequer sabem direito qual o preço, menos ainda dar uma informação. Não existe estímulo para o trabalho.

                        Enfim, em Cuba nada existe para comprar, além de charutos e garrafas de rum.

                        O que salva mesmo é o povo. Que gente bonita! Que gente alegre! Que povo musical! Que povo bom e atencioso!

                        Nas ruas, além de charutos e rum, os cubanos oferecem – dizem que são excelentes – remédios afrodisíacos. Me recusei a comprar. Ainda não estou precisando.

                        Em quase todos os bares, música ao vivo.

                        À noite, fugimos dos programas preparados para turistas. Sou vacinado contra os mesmos. Descobrimos o “Dos Gardenias”, realmente a melhor casa de boleros de Havana. Vale a pena conhecer.

                        Apesar de poucos carros, é elevado o número de acidentes. O próprio Órgão Oficial do Comitê Central do Partido Comunista de Cuba – O Granma – noticia: “Nada mais parecido do que uma guerra: Entre primeiro de janeiro e 30 de setembro deste ano (2.000) ocorreram 7.214 acidentes de trânsito no país,  com 768 falecimentos, o que significa 27 acidentes e três mortes diárias”. O artigo comunista culpa o excesso de velocidade, a desatenção, a imprudência, a ingestão de bebias alcoólicas e convoca a todos para semana nacional do trânsito, principalmente os sindicatos e os núcleos do partidos para discutirem esta grave situação. Mas pouco fala dos veículos que estão se desintegrando e continuam a rodar.

 

IMPRENSA:

                        Chega a ser ridícula na propaganda oficial. A revolução é elogiada o tempo todo. E o tempo todo a lenha desce no capitalismo, principalmente nos Estados Unidos. É interessante o posicionamento dos socialistas quando não conseguem se justificar, simplesmente partem para o ataque.

                        Fernando Morais, no seu “A Ilha”, ao dialogar com um jornalista cubano, indagando sobre a liberdade de imprensa, recebe a seguinte resposta: “ Liberdade de imprensa para atacar um governo voltado para o proletariado? Isso nós não temos. E nos orgulhamos muito de não ter”.

                        O próprio Fidel Castro, por não ter como justificar o tema, assim se explica:

“ ... se numa região do mundo onde a imensa maioria dos cidadãos são analfabetas totais ou funcionais, pode se falar de liberdade de expressão e pensamento? Pareceria uma zombaria desapiedada. Há algo ainda pior. Muitas pessoas no mundo nem só carecem de liberdade para pensar; tem-se lhes destruído o aparelho pensador. Para milhares de milhões de seres humanos, incluída parte importante dos que habitam em sociedades desenvolvidas, é lhes dito qual o refrigerante devem de consumir, qual cigarro fumar, quais roupas vestir, que sapatos usar, com que e com qual marca de produto deve se alimentar. As suas idéias políticas são fornecidas da mesma forma. Um milhão de milhões de dólares são gastos cada ano em publicidade. Essa chuva cai sobre camadas indefesas às quais se lhes priva totalmente de elementos de juízo e de conhecimentos para meditar e discernir. Jamais tinha acontecido isso antes na história da humanidade. O homem primitivo tinha mais liberdade para pensar. José Martí disse: “Ser cultos para ser livres”. Haveria que acrescentar um ditado: sem cultura não há liberdade possível. Instrução e cultura é o que tem oferecido a revolução para o nosso povo, muito mais do que em grande parte dos países cultos. Às vezes aterra a superficialidade e fraqueza dos seus conhecimentos. Cuba tem elevado até a 9 graus a média de conhecimento da sua população. Isto é apenas uma base. Em mais dez anos a sua cultura estará ao nível de graduado universitário e será integral e não parcelada. Todas as condições foram criadas. Ninguém já poderá impedir atingirmos a condição de ser o povo mais culto da terra e além disso, possuir uma profunda cultura política, não dogmática nem sectária; cultura política de que tanto carecem muitas das nações mais ricas do planeta. Ao serviço de tão elevado objetivo colocaremos as fabulosas tecnologias que tem sido criadas pelo homem e sem publicidade comercial. Seria melhor esperar um pouco para falar em liberdade de expressão e pensamento, algo que não poderá se conciliar jamais com um brutal sistema econômico e social capitalista que é a negação da cultura, da solidariedade e da ética”.

                        Em resumo, o supremo comandante não explica nada. Apenas despeja sua verborréia e pede para esperar um pouco. Mais quarenta anos?

                        O que vimos na TV cubana perde para nossos programas mais populares. E é tudo propaganda oficial. É de pasmar. O problema eleitoral americano - Bush ou Gore – é atribuído à máfia cubana de Miami. Acredite quem quiser.

                        Mas, enquanto estive em Havana, quem dominou a telinha estatal foi a dupla Hugo Chavez/Fidel. O dia todo sendo transmitido o programa “Los Presidentes”.

                        Fidel, precisando de petróleo, visita a Venezuela. Foi uma festa. Vinte e quatro horas por dia de transmissão direta.

                        Bolaram um programa digno do nosso Ratinho. Os dois chefes de Estado vão para o interior da Venezuela e, em um povoado pobre, passam a ouvir o povo. Uma senhora, com o filho no colo, grita pedindo a palavra:

                        - Senhor Presidente! Por favor! Meu filho tem problemas nos olhos! Está para perder a visão! Me ajude, por favor!

                        O Chavez toma a palavra: - os médicos da Venezuela comercializaram a profissão. Fidel estará mandando cem médicos de Cuba para percorrer o nosso país. A senhora não se preocupe. Arrume suas malas e as malas de seu filho e, amanhã mesmo estarão em Caracas. Meu avião – meu não – o avião do Presidente da República está à sua disposição!

                         Desfila a fila de pedintes. Muitos problemas de saúde. Muita gente pedindo casa. Verdadeiro pátio dos milagres. Chavez atendendo a todos. Pelo menos fazendo promessas. No fim, ambos os presidentes conseguiram o que queriam. Chavez foi destaque na imprensa internacional e Fidel conseguiu o petróleo a preços mais baixos e subsidiados, jogou beisebol e ainda foi condecorado com o Colar da Ordem do Libertador.

 

NOTÍCIAS DO PT

                        Milionário vai para Miami. Intelectual para Paris. Petista vai para Varadero.

                        A gente aqui pensava que o PT que estava ganhando as eleições municipais era cor de rosa. Pelo menos era o que a grande imprensa noticiava. A revista Veja, por exemplo, traz na capa de seu número 41 a foto da candidata à Prefeitura de São Paulo, com a estrela do PT e o destaque “O PT COR-DE-ROSA” e a reportagem informa: “ ...Os petistas de agora dizem que não são xiitas, não estão interessados em fazer a revolução ou promover disputas de ideologias políticas. Em vez disso, querem dialogar, governar, tratar dos problemas reais das comunidades. (....) Sai das urnas, portanto, um PT social-democrata, talvez o único partido verdadeiramente social-democrata do país, (...) Com a consagração nas urnas dessa linha moderada, novos apelidos do PT proliferam: “PT Rosa”, “PT chanel”, PT burguês”. São epítetos que, ao contrário do que acontecia num passado recente, não parecem constranger o PT, pois nada é mais rosa, chanel ou burguês que o fenômeno eleitoral Marta Suplicy em São Paulo...” .

                                   Em Cuba, a vitória petista teve grandes destaques na TV. A todo momento a informação que a estrela vermelha do socialismo estava sendo vitoriosa no Brasil. O semanário Granma Internacional assim noticia:

“BRASIL – Esquerda triunfa nas eleições municipais.

  .A maioria das cidades brasileiras que elegeram novos prefeitos, nas eleições de Domingo 29 de outubro, ficaram povoadas de bandeiras vermelha, e houve multitudinários folguedos populares, até as primeiras horas da segunda-feira, para celebrar o triunfo esmagador da esquerda, segundo noticiou a PL.

  No segundo turno das eleições municipais, o Partido dos Trabalhadores (PT) venceu em 13 das 16 cidades em que disputou a prefeitura, incluindo cinco capitais: São Paulo, Porto Alegre, Recife, Goiânia e Belém...

   A vitória esmagadora do PT em São Paulo, onde a candidata Marta Suplicy obteve 58,51% dos votos, enfrentando Paulo Maluf, que aglutinou o voto conservador direitista, levou milhares de simpatizantes com bandeiras vermelhas a lotarem a avenida central da maior cidade da América do Sul.

   Este PT, o das lutas sociais, que emerge hoje com a vitória – disse, tremendo de orgulho, a carismática psicanalista, de 55 anos de idade – é o PT vermelho, o da estrela da esperança.

   Sem experiência administrativa, mas com uma imagem respeitável de mulher digna e honesta, Dona Marta, como é chamada pelos seus parceiros, contou com apoio maciço de uma ampla coligação de forças políticas paulistas, que desejam restabelecer a honradez na administração pública.

   Por isso, nas suas primeiras palavras de agradecimento aos mais de três milhões que a elegeram, indicou que o seu triunfo ia mais para além das forças do Partido dos Trabalhadores.

   A noção geral de honradez e administração eficiente consagrou o sucesso de Tarso Genro, com 63,51% dos votos em Porto Alegre, onde o PT inicia o seu quarto período de governo sucessivo.

  O partido da estrela vermelha conquistou pela primeira vez a prefeitura nordestina Recife, capital de Pernambuco, retomou o controle de Goiânia, capital de Goiás, onde se encontra o Distrito Federal, e Belém, no nortenho estado do Pará, com o qual agora vem marcando presença nos quatro cantos do país.

   As eleições municipais de domingo,  segundo analistas locais, estão definindo o palco político em que decorrerão as eleições presidenciais de 2002.

   As urnas ficaram pintadas de vermelho do PT e do Partido Comunista do Brasil, o vermelho das esquerdas, disse o comentarista Teodomiro Braga, no influente Jornal do Brasil.

   Segundo os observadores, estes resultados deixam transparecer o sentimento de insatisfação que hoje paira nas megacidades do país, onde abunda o desemprego, a pobreza e a violência.

   Após um trabalho árduo e pormenorizado na constituição de governos locais caracterizados pela eficiência, e qualificado de  a força política mais ética do país, o Partido dos Trabalhadores recebeu uma mensagem de aprovação que justifica a celebração, sem medo de exibir as suas bandeiras vermelhas”  (5 de novembro de 2000 – ano 35, nº 45);

                                   E não é que os nossos petístas, após as eleições, foram mesmo descansar em Cuba. Segundo a imprensa tupiniquim, houve até um sorteio “Vá a Cuba Com Lula”, que foi feito para angariar fundos para a campanha eleitoral em São Paulo. O líder petista seria um atrativo da empreitada. Êta gente idealista! A viagem reuniu 203 pessoas, sendo 10 da cúpula do partido, 3 ganhadores do concurso, com seus acompanhantes, petistas, simpatizantes e jornalistas que pagaram R$1.090,00 pelo pacote. O grupo ficou dois dias em Varadero e quatro em Havana, onde foi recebido por Fidel para uma conversa e um banquete. Este deve ter sido ótimo, pois consta que Fidel, ao contrário de seus compatriotas, é excelente cozinheiro. Outrossim, para efeitos políticos, parece que o líder máximo do partido dos trabalhadores ficou de saias justas. Diante da insistência do Comandante Supremo de que a situação brasileira teria semelhanças com a de Cuba antes da revolução (1959), Lula foi firme em responder que ao Brasil os exemplos cubanos eram apenas os dos projetos sociais nas áreas de saúde, educação, esportes e cultura. Nada de se comprometer. Tá certo o homem.

A MOEDA CUBANA.

                                   A moeda oficial cubana, o peso, é motivo de piada. Só serve para adquirir a cesta básica e produtos que ninguém quer. O que o povo quer mesmo é o dólar. Também serve o peso conversível, que tem o mesmo valor que a moeda americana. Não me atrevo a falar sobre a política econômica e monetária da ilha. Seria necessário ser gênio para entendê-la. Pode-se dizer que, oficialmente, 1 dólar compra 27 pesos. Mas ninguém quer os pesos. Em alguns bares, no caminho de Varadero, vimos anúncios: “ aceitamos moeda nacional”. Pode?

                                   E como adquirir o dólar? Vale tudo. É conto do vigário por todo lado. Todo mundo rouba. Mas de forma simpática. Também não tem outro jeito, pois o cubano recebe seu salário em pesos, mas tem que comprar em dólares. Daí a merda. Sorte que os refugiados de Miami ajudam enviando a moeda forte. Os turistas, principalmente aqueles que buscam sexo, esparramam suas gorjetas pela ilha.  Fidel sempre condenou a prostituição nos seus intermináveis discursos. Chegou a dizer que somente eram bem vindos a Cuba turistas que queriam diversão sadia, praias paradisíacas e uma porção de balela. A gente é obrigado a dizer: - cala a boca Comandante! A putada tá salvando Cuba. São um bilhão de dólares por ano que os turistas trazem. Se acabar com as putas, esta renda cai para menos da metade. Daí vai ser o colapso. Portanto, puta tem que ser elevada à categoria de instituição nacional. Merece estátua em praça pública. 

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                                   Mas o que é que o cubano pode comprar com o seu salário em pesos?

Apenas uma cesta básica, que dura uma semana. As lojas que vendem produtos nacionais são poucas e sem mercadorias. Vimos em suas prateleiras rolos de papel higiênico, palhas de aço, pregos enferrujados, recipientes de plásticos, panos de chão, roupas usadas, bolsas de papelão, enfim, um monte de porcarias. Tudo  cheirando a velho e sem embalagem. Dá pena. Pode-se adquirir nos mercados públicos, em quantidade limitada por pessoa, o mínimo do básico: arroz, feijão, fósforo, cigarro, sal, café, legumes horríveis, açúcar e mais nada. Carne? Nem pensar. Sabonetes, xampus, dentifrícios? Só nas tiendas, em dólar, ou no mercado negro, onde o cubano tem um “jeito” de arrumar a mercadoria. Leite? Só para crianças.

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                                   Desde 1993, o governo permitiu ao povo o acesso ao dólar. Ele que se vire para buscá-lo. Aquele que consegue, passa a viver melhor. Tá virando burguês. Êpa! Será que vai ter mudança? Parece que está surgindo uma classe diferenciada, privilegiando aqueles que conseguem autorização do governo para iniciar um pequeno negócio próprio. É o caso dos paladares e de outros que exploram sua casa como pensão. Cobram em dólares dos fregueses e pagam seus empregados em pesos cubanos. Exploração capitalista com a complacência do Estado, que também se aproveita. O novel empresário tem que pagar um imposto, em dólares, mais dez por cento do lucro que auferir, ao governo.

                                   Há ofertas de parcerias para estrangeiros. Mas cuidado! Por trás das propostas pode haver conto do vigário. Quem me contou foi um nosso deputado federal, cujo nome vou omitir. Ele, entusiasmado com o socialismo, visitou várias vezes a ilha. Ficou amigo de um artesão que produzia instrumentos musicais de percussão e cordas pulsadas,  que também era músico. Tomaram juntos muitos daiquiris. Logo veio a proposta: - por que não nos associar-mos? Em Cuba temos mão de obra especializada e barata. Nossos instrumentos são famosos no mundo todo. Podemos exportar. Basta um pequeno capital. Pouca coisa. Negócio de futuro.

                                   Levou o parlamentar tupiniquim para conhecer sua oficina. Um barracão modesto, na periferia de Havana. Fez demonstração de seu trabalho. Convenceu. Para a empreitada bastaria que fossem adquiridos poucos equipamentos. O investimento seria pequeno, não mais que vinte mil dólares. Tentadora a proposta. Aceitou. Antes de voltar para o brasil, para arrumar o dinheiro, o futuro sócio cubano solicitou: - poderia me emprestar mil dólares? É para ir cuidando da papelada.

                                   Como negar atender?

                                   Antes de voltar para o Brasil, deixou lá a grana pedida.

                                   Um mês depois, retorna a Havana para iniciar a empresa. Cadê o cubano? Nem o barracão existia mais. 

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CRIMINALIDADE:

                                   Todo mundo furta. A corrupção é endêmica. O rufianismo e a prostituição são formas de “bico”. Em compensação não existe a criminalidade pesada na ilha. A receita é muito simples: um Código Penal muito rígido e a proibição do uso de arma de fogo. Nem no mercado negro é possível encontrar um revólver.

                                   Também não vimos pessoas drogadas, a despeito do consumo não ser penalizado. O que se penaliza é o tráfico e a posse. O Ministro da Justiça, Roberto Diaz Sotolongo, no Granma International de 4 de abril de 2001, afirmou que no ano de 2000 houve 280 casos de envolvendo drogas no país, deles 66  eram jovens, o que representa 0,0035 da matrícula total do ensino secundário, pré-universitário e tecnológico do país. Afirmou: “ Para Cuba, esta é uma cifra preocupante, embora insignificante se for comparada com a realidade de outros países”.

CRIANÇAS:

                                   A gente fica entusiasmado de ver as crianças cubanas. Não é verdade absoluta que estas não são exploradas, que inexiste mão-de-obra infantil, pois presenciamos, embora poucas, pedindo esmolas, oferecendo charutos, laborando como flanelinhas, ajudando a família nas atividades ilegais. Mas isto é exceção. Na verdade, uma infração à lei.

                                   A regra é  todas nas escolas. Vestidas e calçadas decentemente. Limpas. O estudo é obrigatório e os pais que desobedecem levam multa.

                                   Também divertem-se muito. Os esportes e as artes incentivados.

                                   Quanto à educação, é inegável a vitória da revolução cubana. O binômio revolução-educação é inseparável. Para se ter uma idéia, em 1959, ano da revolução, 37,5% da população acima de sete anos era analfabeta. O novo governo realizou uma gigantesca campanha para combater este mal.  Atualmente quase não existem analfabetos em Cuba.

                                   Mas, ao contrário do que se pode pensar, a escola não é totalmente gratuita. O ensino primário custa quarenta pesos mensais, o que corresponde a vinte por cento do salário médio.

                                   As universidades não têm vagas para todos. Há uma espécie de vestibular selecionando os candidatos. É justo. O ensino superior deve ser privilégio dos melhores.

                                   Em Cayo Largo tive oportunidade de ficar amigo de um cubanito de 8 anos. Não entendi bem a sua história. Contou que a mãe tinha morrido e que ele estava com seu outro pai e que iria para a Alemanha. A avó tinha morrido por ter comido macarronada. O pai dele estava em Havana. A Sandra e eu ficamos brincando com ele na piscina. Demonstrou ser hábil nadador e arremessador de bola de basquete. Falava um pouco de inglês e francês. Misturava muita imaginação com realidade. Nós não entendendo nada de estar ele ali com outro pai. Descobrimos depois: estava sendo levado para a Alemanha por um “pai” alemão, simpatizante do regime castrista, para estudar. Passaria uns anos por lá e depois voltaria para ajudar na ilha.

                                   Em Havana, andando sozinho nas ruas, conheci uma moçoila, uniformizada, indo para a escola. Estava cursando fisioterapia. Não conseguiu ingressar na medicina. Disse que era de Trinidad. Muito simpática. Provavelmente com dezessete ou dezoito anos. Acabou se oferecendo para um programa. Apenas para ajudar nas despesas.

Não era profissional. É claro que recusei. Se a Sandra fica sabendo...

                                   Sobre esta questão Fidel já disse: as universitárias não se prostituiram. As prostitutas é que se tornaram universitárias. Êta homem bom em criar sofismas!

 

PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR:

                                   A corrupção e o desestímulo ao trabalho, como já dito, é uma constante. Neste tópico reproduzo, na íntegra, um artigo da jornalista Raisa Pagés, do Granma Internacional, que é o órgão oficial do partido comunista cubano. É esclarecedor.

                                   “ – Veja só! Que problema houve no mercado, roubaram um quilo de carne de porco a uma jornalista e provocou um grande alvoroço! – ouvi de soslaio, ao atravessar a rua.

                                   Se a palavra proteção tem sido empregada com freqüência na imprensa para defender a natureza, para evitar a propagação da Aids ou para apelar por inúmeros direitos dos cidadãos, agora é a vez do consumidor.

                                   A cultura do bom serviço sumiu da Ilha nos tempos em que todos os alimentos, a roupa e os artigos básicos vendiam-se de forma controlada, a preços subsidiados.

                                   O surgimento de um mercado paralelo agropecuário, industrial e de uma rede de lojas em divisas, trouxe à tona o tema das violações e irregularidades nesses centros.

                                   Coincido com o colega Félix López, do jornal Granma, em que não acabamos de controlar devidamente os máximos culpados. E até pensamos que tudo vai se resolver ensinando à população como reclamar os seus direitos.

                                    O problema não só se resolve com a ação da pessoa enganada, quem, às vezes é a primeira a iniciar a desordem ao subornar o empregado para não fazer fila, açambarcando os produtos ou obstaculizando o trabalho dos inspetores.

                                   Para outros, a questão assenta em educar as vítimas nas ações de reclamação, e sancionar ou disciplinar esses que nos enganam.

                                   Na maioria dos casos, as vítimas do mau serviço tiveram experiências tão amargas na tentativa de fazer valer os seus direitos que abrem mão do empenho. Ou sabem que devem dedicar a essas diligências um bom tempo.

                                   Por ocasiões, as multas aplicadas não são suficientes com relação aos lucros obtidos pelo roubo no peso. E noutras, os sancionados vão embora desse lugar para depois aparecer em outro onde têm maiores possibilidades de continuar enganando os consumidores.

                                   Eu penso que todas essas ações devem ser complementadas com outros mecanismos que influam na remuneração das administrações e dos empregados, se as diligências destes forem insuficientes.

                                   Segundo uma reportagem do semanário TRABAJADORES, na Empresa Provincial de Mercados Agropecuários existe um sistema de controle para que empregados expulsos definitivamente não possam trabalhar mais em unidades dessa entidade.

                                   No Mercado Único ou Mercado de Quatro Caminhos, um dos mais conhecidos e visitados na capital, tramitaram-se, no ano passado, 302 queixas e sugestões. A administração reconheceu que 90% tinha a razão. Em conseqüência disto, foram expulsos definitivamente 48 vendedores e outros tiveram cassada a licença de venda, temporariamente.

                                   Se esses medidas acabam com as violações, por que a administração do centro teve de conhecer dos problemas mediante as queixas dos consumidores, quando o seu dever é a prevenção?

                                   Porém, o incrível foi que os administradores de dois mercados de capital expressaram a um jornalista que estavam ansiosos de que os clientes apresentassem queixas, quando a questão é tudo ao avesso: são eles os que devem se aproximar dos clientes pra que estes não tenham queixas.

                                   A subversão de valores no setor comercial veio a dar cabo do significado da palavra cliente para identificá-lo com a de usuário (alguma coisa semelhante a ter direito a um serviço, graças à bondade do vendedor).

                                   Enquanto os administradores do comércio não tenham associados os seus salários pessoais a seu desempenho, o controle continuará sendo pobre e os problemas continuarão.

                                   A maioria dos que trabalham nas cafeterias recebem o mesmo salário se vendem alguma coisa ou não. portanto, não estão interessados em melhorar o serviço. Ainda, sabe-se que o salário desses trabalhadores é baixo, portanto continua a tendência a roubar, prejudicando o cliente. Se um sanduíche devia levar tantas gramas de presunto, eles colocam um pouco menos. Ao fim do horário de expediente, têm vários quilos a seu favor.

                                   NA REDE DE LOJAS EM DIVISAS?

                                   Quando se tornou oficial a posse de divisas e surgiu a rede de lojas que vendem com esse tipo de moeda, muitos pensaram que lá encontrariam então um tratamento adequado.

                                   Contudo, nesses centros também existem irregularidades que vão de atendimento deficiente ao cliente, até a adulteração de preços e talões.

                                   Muitas vezes aconteceu- me que fico estacada diante de um balcão dessas lojas, esperando que as empregadas terminem de mexericar.

                                   Um funcionário da Corporação Cimex, a mais adiantada segundo a ministra do Comércio Interior no item da proteção ao consumidor, declarou em uma entrevista pela rádio que os problemas fundamentais estavam nos próprios trabalhadores do lugar, mas o artigo do jornal Granma pergunta se a administração do centro é tão culpada quanto a balconista.

                                   A corporação Cimex criou o posto de trabalho do supervisor, cuja missão não só é receber as queixas, mas também tentar evitá-las, segundo explicou um funcionário da entidade à imprensa local. O supervisor é a pessoa que deve zelar porque não falte o trocado na caixa, que os preços dos produtos estejam visíveis e que os balconistas ofereçam tratamento adequado aos clientes.

                                   Mas, foi  reconhecido que o supervisor é desconhecido pela maioria dos consumidores e que ainda não faz um trabalho ativo nas lojas.

                                   O público conhece das vantagens destes trabalhadores, que recebem gratificações e alguns artigos pessoais. Porque não lhes é retirado uma parte desses benefícios quando cometerem indisciplinas, incluindo as administrações.

                                   Se aplicarmos a dialética do sistema capitalista deveríamos implementar a cultura de atendimento ao cliente, sob o prisma do nosso modelo social

                                   Jovens garçons do centro histórico da capital comentavam-me – em um breve inquérito realizado por este jornal – que é pena que muitos não compreendam que quando os clientes ficam satisfeitos, abrimos a porta para que regressem, o qual faz aumentar o dinheiro no bolso e as receitas do País.”

                                   Desnecessário que este escriba de aldeia faça qualquer comentário.