ANÁLISE COMPARATIVA DE “O HORLA” DE GUY DE MAUPASSANT E “O ESPELHO” DE MACHADO DE ASSIS

 

O que entendemos por conto trata-se de uma obra literária em prosa, de narrativa breve, gênero abrangente e em constante renovação, onde se estabelece um princípio de causalidade do comportamento humano, a partir de suas memórias e experiências.

Segundo Ricardo Piglia (2001), o conto tem caráter duplo, pois sempre narra duas histórias e “cada uma [delas] é contada de maneira diferente”.

Temos a ele empregado, também, o efeito de surpresa que se produz quando à superfície nos é apresentado o fim de um relato secreto. No texto existem duas explicações para os acontecimentos, uma natural e outra sobrenatural. Sabendo que a situação no decorrer da leitura tem essa ambigüidade, como leitores reais, optamos por desvendar esse mistério. De acordo com Todorov (1992), a possibilidade de falhas entre as opções apresentadas cria o elemento o qual chamamos fantástico.

Bons exemplos são as narrativas que analisaremos a seguir.

O conto O Horla, do francês Guy de Maupassant, apresenta relatos de um homem em progressivo estado de insanidade e insinua uma ameaça invisível com relativo grau de realismo psicológico e verossimilhança.

Quanto à última, podemos verificá-la nos favorecendo da narração em primeira pessoa, além de sua estrutura diferenciada, uma vez que o texto foi construído em forma de diário. A partir desse formato, o autor nos permite acompanhar de perto o drama do protagonista, sua lenta e gradual descida à loucura e, essa proximidade com o real, nos liga ao gênero literário de igual teor, o dramático.

A história inicia-se em um acontecimento, a princípio, sem importância, mas que contrasta absurdamente com os que virão.

Certo dia, após prestigiar a vista ao redor de sua casa e tomado pela alegria da manhã, um homem acena para um navio brasileiro o qual admira através de seu portão. Dias depois, sentindo-se mal e febril, indaga sobre possíveis causas. Procura ajuda médica, segue à risca o receituário, mas nada adianta; é como se o seu ser fosse invadido pelo desconhecido, como se fosse possível, através de um simples gesto cortês, ter atraído por si algo invisível que começa a atormentá-lo durante o sono e a encher seu peito de uma angústia inexplicável.

O ser sobrenatural, a quem chama de O Horla, é uma criatura mística que, assemelhando-se ao vampiro, suga progressivamente a vitalidade daqueles que ataca. Costuma aparecer no período noturno e se alimenta de leite e água.

Fatigado físico e emocionalmente, viaja para Paris e presencia uma poderosa sugestão hipnótica, experiência que o faz associá-la à criatura e enfermidade. De volta à sua casa e aparentemente recuperado, a entidade se faz gradualmente mais intensa e dominadora e, por fim, ele sucumbe à sua influência.

Esse mal que tanto o assombra está dentro da sua própria casa, pois a cada viagem que faz à procura de se livrar do tormento, ao regressar tudo volta. O homem tenta aprisionar o fantasma na casa e livrar-se dele ateando fogo na mesma, contudo sem sucesso. Como última tentativa, sugere o suicídio.

O outro exemplar é de autoria do escritor brasileiro Machado de Assis, O Espelho, esboço de uma nova teoria da alma humana, que nos apresenta uma história de cunho social, baseada no relato de um homem, agora com quarenta anos, sobre quando se deixou levar pela aparência e acabou eliminando sua verdadeira identidade. À época moço e influenciado pelo que julgava ser apenas um ofício, viveu atormentado por não se reconhecer quando não havia ao seu redor alguém que desse merecido crédito às suas vestimentas. A verossimilhança do conto se faz através da tentativa de provar aos companheiros sua teoria de que o homem tem ao menos duas almas.

A trama se faz a cerca de uma conversa entre amigos sobre discursos metafísicos.

Desafiado pelos companheiros a provar sua tese sobre a natureza da alma humana, Jacobina, homem capitalista, inteligente e sarcástico, exemplifica-a através de um episódio de sua vida, quando, por volta dos seus vinte e cinco anos, foi nomeado alferes da guarda nacional. O homem, segundo os amigos, evitava discussões e, por vezes, se explicava através de paradoxos. Ele inicia sua versão dos fatos.

O rapaz, pobre na época, era o orgulho da família e desafeto de alguns da vizinhança pelo fato da titulação; era por todos alcunhado Sr. Alferes. Sua tia Marcolina, também orgulhosa pela distinção do sobrinho, o convidou a passar alguns dias em seu sítio. O jovem vivia a receber elogios dos moradores da casa. Certo dia, a senhora o presenteou com um grande e velho espelho que herdara da mãe.

A partir desse ponto, a história se aprofunda através do insólito. Logo após a tia receber notícias da enfermidade da filha, incumbiu o moço a cuidar da chácara enquanto esta viajava. Durante a noite aconteceu uma fuga de escravos.

Estava só. Não havia gente para alimentar seu ego, sua “situação moral”. O rapaz sentia-se perturbado pelo dia e apenas acalmava-se com o cair da noite, quando imperava o sono: era o momento de viver as aventuras e glórias de sua alma interior, o alferes. Temos no elemento onírico a redenção de todos os seus males.

Lembremos aqui que o próprio homem, antes de explicar sua teoria, nos revela que "o alferes eliminou o homem".

O mal se instalava no período diurno: o tic tac incessante do relógio nos permite vivenciar de seu desespero, seu tormento pelo fato de sua alma estar "perdida". Mas há o espelho, cujo símbolo ainda não fora explorado.

Nesse período solitário na chácara, o rapaz ainda não se olhara no espelho. Porém, quando o fez e viu sua figura distorcida, decomposta de contornos e feições, teve a idéia de vestir novamente a farda. Então seu reflexo se produziu integralmente como militar. A explicação foi que sua alma foi recolhida no espelho. Depois, de tempos em tempos, fardava-se e se reconhecia outra vez.

O conto se encerra com Jacobina indo embora, a fim de evitar motivos de réplica, reforçando a idéia de que o personagem despreza discussões e, também, ilustrando um ser humano inacabado, dotado de aparências:

“Quando os outros voltaram a si, o narrador tinha descido as escadas”. (ASSIS, 2005)

Maupassant discorre acerca da transformação psicológica de seu personagem. A narração ocorre com o mesmo tempo da história contada, já que o homem nos relata como foi seu dia através do diário. Percebemos que durante o período diurno, ele se comporta calmamente, contrastando seu estado com os elementos da natureza ao seu redor, como observamos já no primeiro parágrafo:

“Que dia admirável! Passei toda a manhã deitado na relva, diante da minha casa, sob o enorme plátano que a cobre, a abriga e lhe dá sombra”. (MAUPASSANT, 2010)

O tempo em Assis é remissivo, uma vez que o protagonista retoma um fato já ocorrido na juventude. Quanto ao comparativo de clima, para Jacobina o dia era motivo de desconsolo, uma vez que o jovem ficava perturbado com a idéia de não encontrar sua alma interior, seu verdadeiro eu:

“(...) quando acordava, dia claro, esvaía-me com o sono, a consciência do meu ser novo e único (...). Não tornava. Eu saía fora, a um lado e outro, a ver se descobria algum sinal de regresso”. (ASSIS, 2005)

Com base na leitura comparada dos textos, pode-se afirmar que o elemento fantástico se faz presente em ambos, porém de formas diferentes. Ambos o estabelecem através de elementos oníricos, visto que o contista francês o faz em pesadelos, enquanto Machado nos sonhos:

Durmo – por muito tempo – duas ou três horas – depois, um sonho – não – um pesadelo me assalta. Bem sei que estou deitado e que durmo... Eu o sinto e o vejo... e sinto também que alguém se aproxima de mim, me olha, me apalpa, sobe na minha cama, ajoelha-se sobre o meu peito, põe as mãos no meu pescoço e aperta... aperta... com toda a força para me estrangular. (MAUPASSANT, 2010)

Nos sonhos, fardava-me, orgulhosamente, no meio da família e dos amigos, que me elogiavam o garbo, que me chamavam de alferes; vinha um amigo de nossa casa, e prometia-me o posto de tenente, outro o de capitão ou major; e tudo isso fazia-me viver. (ASSIS, 2005)

Seguindo a definição de fantástico por Todorov (1992), esse critério só é validado através da experiência particular do leitor, sua impressão sobre os fatos narrados, a intensidade emocional provocada por eles.

Observando-se atentamente os capítulos do conto francês, percebe-se que o ser invisível não passa de um produto da mente, o que nos leva crer através da maneira como o autor insinua a sua existência e como ela afeta o protagonista, suas constantes alusões a uma nova raça e seu poder de domínio sobre os humanos, como o parágrafo final que não nos sai da mente:

“Não... não... sem dúvida alguma, sem dúvida alguma... ele não morreu... Então... então... vai ser preciso agora que eu me mate!”. (MAUPASSANT, 2010)

Assis nos leva a analisar as pressões sociais de que somos vítimas, criticando e alertando o leitor para os riscos de desestruturação de personalidade que o ser humano enfrenta ao se desligar de sua existência interior. O espelho é usado em seu significado literal e figurativo, expondo os dois lados do homem: sua imagem real e seu comportamento. Contudo, o simples ato de “vestir a farda”, ou seja, de aderir integralmente ao papel social, possui seu caráter exótico.

Conforme comparativo dos textos, notamos que cada autor adotou um olhar diferente do ser humano. Enquanto Maupassant percorreu sobre os males internos, psicológicos, Machado se viu diante de um homem mascarado, à procura da identidade.

O terror recorrente do francês nos afigura um homem à beira da loucura, titubeando entre uma explicação plausível aos acontecimentos e o tormento de estar preso a algo que sente, mas que não sabe se existe; seu título nos encaminha ao desconhecido com desfecho surpreendente. Por outro lado, há o ser que esboça uma tese sobre interiorizar a imagem que as outras pessoas fazem de nós, tornando-a seu experimento científico: uma vez que nos sentimos parte do que não somos em essência, corremos o risco de atraí-la conosco e construir uma personalidade falsa.

 

Referências

ASSIS, Machado de. “O espelho – esboço de uma nova teoria da alma humana”. In: Papéis avulsos. São Paulo: Martins Fontes, 2005. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=1948. Acesso em 13 ago 2011.

MAUPASSANT, Guy de. “O Horla (segunda versão)”. In: Contos Fantásticos - O Horla e outras histórias. Prefácio, tradução e seleção de José Thomaz Brum. Porto Alegre: L&PM, 2010.

PIGLIA, Ricardo. Teses sobre o conto. Caderno Mais, Folha de São Paulo, 30 de dezembro de 2001, p.24.

TODOROV, Tzvetan. “Definição do fantástico”. In: Introdução à literatura fantástica. Tradução de Maria Clara Castello. São Paulo: Perspectiva, 1992.