A vulnerabilidade do art.217-A
a relativização do conceito para afastar a responsabilização penal objetiva*


Karolinne França Mendes
Sergianny Pereira da Silva



Sumário: 1 Introdução. 2 O estupro de vulnerável à luz da Lei n° 12015/09. 3 Uma reflexão sobre a vulnerabilidade do menor de 14 anos . 4 E como ficam os Princípios e os meios de defesa? 5 Relatividade ou Responsabilidade penal objetiva. Conclusão. Referências


RESUMO

Apresentar-se-á uma reflexão acerca da vulnerabilidade retratada no art. 217-A, a partir da nova redação do Código Penal ocasionada pelas alterações provocadas pela Lei n° 12.015/09. Pretende-se analisar a vulnerabilidade do menor de 14 anos, considerando-se seus conceitos absoluto e relativo. Analisar-se-á as conseqüências oriundas da consideração da vulnerabilidade como absoluta no que diz respeito aos princípios e meios de defesa constitucionais atingidos se considerados esta ótica, além dos reflexos que a não relativização da vulnerabilidade pode ser capaz de provocar no que concerne à responsabilização penal objetiva.


PALAVRAS-CHAVES

Estupro de vulnerável. Relativização. Responsabilidade penal objetiva.


1 INTRODUÇÃO

Um estudo acerca dos crimes sexuais é sempre instigante a todo aquele que pretenda desenvolver um olhar sobre o tema, por mais superficial que seja a análise, e quando se alia a esta discussão um tema tão polêmico e controverso quanto à tutela sexual legal dos menores de 14 anos, sem dúvida expande-se o interesse acerca de um dos bens jurídicos mais íntimos tutelados pelo Direito Penal: a liberdade sexual.
É neste sentido que pretende o presente trabalho desenvolver todo o seu cerne


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*Paper apresentado à disciplina de Direito Penal Especial II, ministrada pela professora Socorro, no Curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco, para fim de obtenção da segunda nota.
lógico, desenvolvendo um traço racional que vislumbre o novo tipo penal, incluso no ordenamento jurídico pela Lei n° 12.015/09, intitulado de "Estupro de Vulnerável", analisando a hediondez que engloba tal crime, bem como as conseqüências que a não relativização pode ocasionar, em especial, no que diz respeito à responsabilidade penal objetiva. Para este fim, pretende-se utilizar a base bibliográfica disponível que debruce, de alguma forma, um olhar sobre o referido tema e que para tanto possa somar para a concretização desta exposição.
Assim, cabe analisar o referido tipo penal que tenta enfrentar a questão da vulnerabilidade do menor de 14 anos. E, é neste vulnerável, o menor de 14 anos, e apenas nele, que se busca focar este trabalho, apesar do tipo considerar também como vulnerável o portador de deficiência mental ou enfermidade incapacitado de discernir a prática de seu ato ou o que por qualquer outra causa não pode oferecer resistência.

2 O ESTUPRO DE VULNERÁVEL À LUZ DA LEI N° 12015/09

A Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009, trouxe significativas alterações ao Código Penal brasileiro, principalmente ao que se refere ao Título VI, que atualmente é intitulado Dos Crimes contra a Dignidade Sexual e engloba os chamados crimes sexuais.
O art. 217-A veio, então, tipificar o Estupro de Vulneráveis, substituindo a antiga e polêmica presunção de violência contra o menor de 14 anos, anteriormente tratada no art. 224, do Código Penal. Porém, a nova redação não foi suficiente para calar a discussão a respeito do caráter absoluto ou relativo da presunção de violência, que apenas teve seu alvo deslocado para a questão de vulnerabilidade. Neste sentido, brilhante se faz a menção de Nucci:

O nascimento do tipo penal inédito não tornará sepulta a discussão acerca do caráter relativo ou absoluto da anterior presunção de violência. Agora, submetida na figura da vulnerabilidade, pode-se considerar o menor, com 13 anos, absolutamente vulnerável, a ponto de seu consentimento para a prática sexual ser completamente inoperante, ainda que tenha experiência sexual comprovada? Ou será possível considerar relativa a vulnerabilidade em alguns casos especiais, avaliando-se o grau de conscientização do menor para a prática do ato sexual? Essa é a posição que nos parece mais acertada. A lei não poderá, jamais, modificar a realidade do mundo e muito menos afastar a aplicação do princípio da intervenção mínima e seu correlato princípio da ofensividade.1

É, justamente, neste ponto sensível que se pretende tocar, a vulnerabilidade do
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1 NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual: comentários à lei 12.015, de 7 de agosto de 2009. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 37
menor de 14 anos deve ser tomada em seu caráter absoluto? Isto não corresponderia a uma responsabilização penal objetiva do sujeito ativo deste crime? Deve-se relativizar a depender do caso concreto? Todas estas questões receberão breve análise, uma vez que sua discussão divide a própria doutrina brasileira que já começa a manifestar-se a este respeito, mesmo apesar do pouco tempo de vigência da Lei n° 12.015/09.
O art. 217-A não deixa de apresentar condutas semelhantes às descritas no artigo 213 do Código Penal (referente ao crime de Estupro cuja redação também fora alterada pela referida Lei), acrescentando que a vítima deve apresentar, como característica obrigatória, a idade menor de 14 anos, fato que resultou na penalização de 8 a 15 anos de reclusão. 2
Nítido se faz, então, que o legislador ao transcrever este dispositivo intentava com o mesmo ser capaz de mais severamente punir os crimes que atinjam a criança e o adolescente, vítimas de uma crescente atuação de doentis pedófilos. Talvez, nem mesmo tenha tido como motivação suscitar discussões a respeito do tratamento que se estenderia a vulnerabilidade tipificada.
A tentativa de oferecer maior rigor a este crime pode ser observado na própria inclusão do referido tipo penal no rol de Crimes Hediondos, previsto na Lei n° 8072/90, mais especificamente, em seu art. 1°, inciso VI.
Sem dúvida, a violência que obriga o menor de 14 anos a ato sexual é merecedor de reprovação social e penal. Mas, e nos casos onde há o consentimento do menor ou o mesmo este já se revela prostituído, desempenhado sua vida sexual precocemente? Não comportaria, pois, cada caso, uma análise mais minuciosa?
A respeito da vulnerabilidade estaria a doutrina dividida. Há autores, a exemplo de Greco, que defende o seu caráter absoluto, não comportando qualquer prova em contrário, pois tão objetivo já se revela o critério da idade. 3 Mas, há defensores da relativização da vulnerabilidade, devendo-se considerar o caso em suas particularidades.
Chega, pois, o momento de melhor compreender a questão da vulnerabilidade tratada pelo art. 217-A no que concerne o menor de 14 anos, como assim segue.

3 UMA REFLEXÃO SOBRE A VULNERABILIDADE DO MENOR DE 14 ANOS

Embora, a presunção de violência, apenas com os Códigos Penais de 1890 e 1940,
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2 GRECO, Rogério. Código Penal: comentado. 3. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2009. p. 615
3 Id Ibidem


tenha se vinculado com a idade da vítima, a questão do limite etário como marco para a aquisição da capacidade de autodeterminação sexual do indivíduo não é recente. O próprio Direito Romano remontava ao princípio Qui velle non potuit, ergo noluit, que significa quem não pode querer, não quer, quem não pode consentir, dissente. Tal princípio baseou várias legislações que adotaram critérios mínimos quanto a idade para validar o consentimento de prática sexual pelo menor.4
Porém, inegável se faz observar uma atual revolução sexual, que resultou em profundas e visíveis alterações nos padrões sexuais apresentados pelos adolescentes, fato que, de forma indubitável, influenciou para o alcance de uma maturidade sexual precoce por parte de muitos adolescentes. Desta forma, negar a capacidade de autodeterminação sexual de forma irrestrita, em muitos casos se mostra inconveniente, dado o momento histórico-cultural atual.5
Como já mencionado anteriormente, há defensores em nossa doutrina de que a vulnerabilidade deste tipo deve ser encarada de forma absoluta, afastando-se qualquer tipo de prova em contrário. Porém, assim considerar é ferir princípios e meios de defesa garantidos na própria Constituição.
A subtração ao adolescente que tenha consciência ética do ato sexual do direito de exercer sua sexualidade, por não ter ainda alcançado a idade fixada por lei para tanto, por imposição de concepções morais dominantes na sociedade, é meio de cerceamento do direito constitucional de liberdade. 6

Mas, muito mais que cercear o direto de liberdade do menor consciente de seus atos, outros princípios, agora referentes ao considerado sujeito ativo do art. 217-A, serão atingidos, em casos onde a suposta vítima menor além de consentir conscientemente para o ato sexual, já apresenta uma vida sexual ativa, uma vez que se tome o conceito absoluto da vulnerabilidade.

4 E COMO FICAM OS PRINCÍPIOS E OS MEIOS DE DEFESA?

Considerar o conceito da vulnerabilidade do art. 217- A como absoluto, pode trazer uma série de complicações a princípios, por hora, indispensáveis ao Direito Penal.
Neste sentido, logo se pode remeter ao aclamado Princípio do Contraditório e da

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4 CARVALHO, Adelina de Cássia Bastos Oliveira. Violência sexual presumida: uma análise em face do princípio constitucional da presunção de inocência e da capacidade de autodeterminação sexual do menor. Curitiba: Juruá, 2006. p. 23-24
5 Id Ibidem. p. 17
6 Id Ibidem.

ampla defesa, previsto no art. 5°, LV, da Constituição Federal, duramente ferido, pois entender desta forma é defender que não caberá prova em contrário por parte do acusado no sentido de demonstrar que a realidade objetiva diverge da presumida pelo legislador, principalmente quando se está diante do consentimento do menor ou, mesmo, se este já for prostituído.
Mais além se vai, ainda, pois também é afrontado o Princípio da presunção do estado de inocência que deve limitar o próprio poder punitivo do Estado ao exigir a comprovação comprobatória da efetiva acusação. Acrescenta-se, ainda, que interferir de tal forma, o Estado viola o Princípio da Intervenção Mínima, que deve orientar a sua atuação ao tutelar bens jurídicos tão íntimos quanto relativo, como se revela a questão da autodeterminação sexual.7
Parece-nos, inclusive, estar em jogo até a não culpabilidade antecipada, prevista no art. 5°, LVII, da Constituição Federal, que disserta não poder ser considerado culpado ninguém até que transite em julgado a sentença penal condenatório. Considerar a vulnerabilidade absoluta em todos os casos, sem exceção, é gerar espécie de culpabilidade antecipada do acusado e, cercear deste qualquer possibilidade de demonstrar inocência quando atingido o critério objetivo da idade da vítima.8
Demonstrado fica, então, que, sob esta perspectiva, os meios de defesa são atingidos. Não haverá, pois, meios e nem será ampla a defesa, uma vez que provada a autoria e excluindo-se os casos de erro de tipo (desconhecimento da idade real da vítima), estar-se-ia diante de uma culpabilidade antecipada comprovada. 9 Fato que sem dúvida coloca em risco o justo andamento que deve imperar em todo e qualquer processo, principalmente na seara penal.
Cabe ressaltar que tais princípios são imprescindíveis a todo o ordenamento jurídico, baseando não apenas o Direito Penal, mas todo o sistema jurídico brasileiro, a fim de preservar o Estado Democrático de Direito. Presumir a vulnerabilidade como absoluta opõe-se aos princípios já mencionados, o que, sem dúvida, é inaceitável.

Na época atual, estaríamos hipocritamente abstraindo a moderna realidade ao negarmos, de forma absoluta, que uma pessoa com idade inferior a 14 anos seja absolutamente vulnerável e não tenha, repito, de forma absoluta, a mínima ideia do que seja uma relação sexual.10

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7 Id Ibidem. p. 131-133
8 BARROS, Francisco Dirceu. Vulnerabilidade nos novos delitos sexuais. Disponível em:<<HTTP://www.cartaforense.com.br>>. Acesso em: <<10. maio. 2010>>
9 Id Ibidem
10 Id Ibidem
Como já acima mencionado, a realidade sexual dos adolescentes, hoje, já não se mostra a mesma de anos atrás, falar que todo e qualquer menor de 14 anos é completamente vulnerável é ignorar a atual situação da sexualidade das crianças e adolescente cada vez mais precocemente despertada, fato inegável diante da própria acessibilidade de muitas delas à meios midiáticos e de entretenimento que explora e despertam, com freqüência, um afloramento da sexualidade. Sem dúvida este fato suscita debates, inclusive, a respeito da Adequação Social deste tipo penal à realidade, mas esta é uma discussão a parte que, por vez, apenas merece ser mencionada e não aprofundada nesta exposição.


5 RELATIVIDADE OU RESPONSABILIDADE PENAL OBJETIVA

A atitude do legislador ao tentar punir a prática de crimes sexuais que tenham como vítima os indivíduos tidos como vulneráveis, é louvável, principalmente diante dos escandalizadores casos de pedofilia descobertos em escala mundial.
Porém, atribuir à vulnerabilidade do menor de 14 anos caráter absoluto em todo e qualquer caso, traz ao ordenamento conseqüências gravosas e incompatíveis com a própria base principiológica que baseia a responsabilização penal no Direito Brasileiro.
Estar-se-ia, pois, aplicando a impetuosa responsabilidade penal objetiva em nosso Direito Penal, segundo a qual o sujeito ativo responderia pelo delito independente de sua conduta ter sido praticada com dolo ou culpa.11
Ora, nosso ordenamento adota a responsabilidade penal subjetiva, devendo culpa e dolo serem provados, não se admitindo a presunção de culpabilidade. O entendimento do próprio STF está no sentido de que "o sistema jurídico penal brasileiro não admite imputação por responsabilidade penal objetiva."12 Assim, parece nítido que incorreto se faz ao considerar o conceito absoluto de vulnerabilidade, não admitindo a sua relativização a depender do caso concreto em análise.
A vulnerabilidade absoluta ignora qualquer discussão a respeito da culpa ou dolo do agente, presumidamente será considerado culpado todo aquele que mantiver relações sexuais (e estas englobam conjunção carnal e atos libidinosos) com um vulnerável. Parece-nos viável, a fim de evitar a responsabilização penal objetiva, considerar-se a circunstância da vulnerável que cerca o caso concreto. Do contrário, estar-se-ia diante de uma punição rigorosa
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11 Id Ibidem
12 STF. Inquérito n° 1578-4. São Paulo


(visto a hediondez atribuída ao crime de estupro de vulnerável), cerceando o acusado de meios de defesa constitucionais essenciais em todo e qualquer processo, pois haveria uma espécie de culpabilidade presumida e antecipada, que desconsideraria circunstância e outros critérios fundamentais, que variam a depender do caso, para determinar a culpabilidade do indivíduo.
Muito mais sensato, parece-nos, então, considerar a natureza mista da vulnerabilidade, como bem sustenta Nucci. Assim, atribui-se o caráter absoluto, como regra, a maioria dos casos, como o objetivo de coibir a ação de pedófilos, que tanto mal ocasionam a sociedade, em especial às crianças e adolescentes. Mas a presunção deve ser admitida de forma relativa em situações excepcionais. A presunção de vulnerabilidade é, pois, importante e necessária, porém esta não pode violar princípios e meios de defesa processuais garantidos constitucionalmente, devendo a relativização ser observada, a considerar provas em contrário cedendo às hipóteses do caso concreto a ser considerado.13
A relativização não apenas evitaria agressões à Constituição Federal e aos princípios que norteiam o processo, como afastaria a responsabilização penal objetiva, não aceita pelo nosso ordenamento. Além de evitar problemas intrinsecamente associados ao crime de "Estupro de Vulnerável", a exemplo da questão do aborto (admitido em casos de estupro que resulte gravidez), em casos que se esteja diante de uma relação sexual praticada com um menor de 14 anos com o seu consentimento, não deixando de configura-se como estupro; ou, ainda, questões envolvendo a paternidade responsável e harmonia familiar, pois como ficaria o reconhecimento do filho oriundo de relação com menor de 14 anos, uma vez que isto representaria prova contra o possível pai, acarretando a este penalização que varia entre 8 e 15 anos?

CONCLUSÃO

Diante do acima exposto, espera-se ter demonstrado a necessidade da relativização da vulnerabilidade do menor de 14 anos a depender das circunstâncias que o caso concreto apresenta e das quais decorreram as condutas previstas no tipo em análise, a fim de evitar que princípios e meios de defesa constitucionais sejam violados, bem como que se configure uma responsabilização penal objetiva do acusado de "estupro de vulnerável". Vale ressaltar, que o presente trabalho não se opõe a punição de crimes sexuais contra vulneráveis,
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13 BARROS, Francisco Dirceu. Vulnerabilidade nos novos delitos sexuais. Disponível em:<<HTTP://www.cartaforense.com.br>>. Acesso em: <<10. maio. 2010>>
pelo contrário, tal intenção do legislador é, por deveras importantíssima para regular a harmonia social esperada e guardar o respeito que deve ser verificado aos indivíduos tido como vulneráveis. Contudo, atribuir caráter absoluta à vulnerabilidade do art. 217- A é permitir uma culpabilidade antecipada do acusado, excluindo-o de exercer direitos de ampla defesa, além de consubstanciar, como acima mencionado uma forma de responsabilidade penal objetiva. Esta situação deve, sem sombras de dúvida, se repelida para que se verifique a consolidação de um verdadeiro Estado Democrático de Direito.



























REFERÊNCIAS



BARROS, Francisco Dirceu. Vulnerabilidade nos novos delitos sexuais. Disponível em:<<HTTP://www.cartaforense.com.br>>. Acesso em: <<10. maio. 2010>>

CARVALHO, Adelina de Cássia Bastos Oliveira. Violência sexual presumida: uma análise em face do princípio constitucional da presunção de inocência e da capacidade de autodeterminação sexual do menor. Curitiba: Juruá, 2006.

GRECO, Rogério. Código Penal: comentado. 3. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2009.

NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual: comentários à lei 12.015, de 7 de agosto de 2009. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

BRASIL. LEI N° 8072/90. Disponível em << Http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8072.htm>>. Acesso em: 19 mar. 2010.