A Primavera de Praga e a Invasão da Tchecoslováquia

Por Leôncio de Aguiar Vasconcellos Filho 

*Artigo escrito e publicado em 2022

Quem faz parte da última geração a crescer sob a égide da Guerra Fria, como este que vos escreve, tem na figura de Mikhail Gorbachev uma referência quando as discussões são as reformas políticas e econômicas objetivadoras da salvação dos regimes marxistas na URSS e seus respectivos países-satélites (e não a consequente demolição dos sistemas, que acabou ocorrendo entre 1989 e 1991). Só que, bem antes de Gorbachev, um reformista subiu ao poder na Tchecoslováquia: Alexander Dubcek.

Homem de visão, Dubcek se tornou primeiro secretário do Partido Comunista da Tchecoslováquia, em 1968. Naquele mesmo ano, percebendo o caráter ditatorial e autocrático então em vigor, propôs o que se convencionou chamar de “socialismo de face humana”, ou seja, reformas que, preservando os cânones ideológicos da doutrina, tentariam desestalinizá-la por meio de abertura política, simultaneamente a uma maior liberdade econômica - a aclamada “Primavera de Praga”. Suas ideias tiveram amplo apoio da população tchecoslovaca, mas não da superpotência estrangeira que, de facto e desde o final da Segunda Guerra Mundial, dominava a Tchecoslováquia e as outras nações da Cortina de Ferro (com exceção da Iugoslávia, como mais abaixo se argumenta): a própria URSS.

Na época, a URSS era comandada por Leonid Brejnev, que, invocando uma doutrina de cunho próprio (a “Doutrina Brejnev”, de soberania limitada aos países da órbita soviética), convocou os demais membros do Pacto de Varsóvia - Alemanha Oriental, Romênia, Albânia, Hungria, Polônia e Bulgária - a, junto com a URSS, invadirem a Tchecoslováquia para derrubar Dubcek e impedir suas reformas, preservando o sistema totalitário com a manutenção do status quo via substituição daquele pelo linha-dura Gustáv Husák, que permaneceu no comando do país até o final da década de 1980.

Mas é interessante notar a posição de cada um dos países membros do Pacto de Varsóvia à convocação da superpotência dominadora para que invadissem.

Todos sabiam, e sabem, o passado sombrio da Alemanha na Segunda Guerra Mundial, no que se refere aos países vizinhos, incluindo a Tchecoslováquia. Tal estigma foi, por óbvio, herdado pela Alemanha Oriental. Walter Ulbritch, ditador leste-germânico e, junto a Nikita Kruschev, construtor do Muro de Berlim, ficou tão reticente e temeroso das eventuais catarses e lembranças que tomariam as almas dos tchecoslovacos em caso de uma nova agressão, fazendo-os reagir de forma bem mais abrupta que outrora, que apenas posicionou suas tropas na fronteira até a URSS consolidar definitivamente a invasão (só depois Ulbritch deu apoio explícito). Vejam, senhores, o que as terríveis memórias do nazismo fizeram ao homem que, comandando a economia mais avançada da Cortina de Ferro, deve ter sentido medo real pela primeira vez desde que assumiu o poder.

Medo também sentiu Nicolae Ceaucescu, ditador da Romênia. Mas, pelo menos, foi mais corajoso que Ulbricth, pois, tendo ciência da pretérita aliança de seu país com a Alemanha Nazista - invasora da Tchecoslováquia - se recusou a participar da covardia em face daquele povo. A Romênia, junto à Albânia, foram os únicos países do Pacto de Varsóvia a recusarem veementemente a coautoria na invasão. Aliás, a Albânia simplesmente se retirou do referido Pacto logo após a intervenção, aliando-se e se blindando em eventual proteção da China, adversária de longa data da URSS, em especial no início da década de 1960.

Além do mais, o único país da Cortina de Ferro com que a Albânia fazia fronteira era a Iugoslávia, que, por férrea oposição ao marechal Josip Broz Tito, não ingressou no Pacto de Varsóvia. Para se chegar ao território da Albânia por terra haveria de se passar pela Grécia (membro da OTAN, que reagiria prontamente) ou da própria Iugoslávia - país que não se alinhou a Moscou, ainda que com a também adoção do regime marxista (ao contrário, mais tarde e juntamente a Gamal Abdel Nasser, do Egito, Jawaharial Nehru, da Índia, e outros, conferiu enorme relevância ao Movimento dos Países Não-Alinhados, chamados de “Terceiro Mundo”), tendo, em virtude da não submissão, sofrido sua expulsão do COMINFORM em 1948: o que não impediu que Iugoslávia e URSS desfrutassem de um relacionamento siamês nas décadas seguintes, principalmente se levarmos em conta as similaridades entre as Igrejas Ortodoxa Russa e Sérvia, bem como os respectivos idiomas. Por isso os soviéticos jamais atravessariam o território Iugoslavo a fim de promover a capitulação da Albânia, até mesmo porque as Forças Armadas Iugoslavas eram fortíssimas. E a mais demonstração dessa lealdade russa aos iugoslavos foi a ferrenha defesa dos mesmos no conflito com a OTAN em 1999, chegando a ameaçar os países da OTAN com armas nucleares.

Quanto à Hungria e à Bulgária (que também foram aliadas dos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial), capitularam às ordens soviéticas, e tomaram parte na intervenção. A Hungria, de certo, para não sofrer, novamente, um banho de sangue semelhante ao perpetrado por Nikita Kruschev em 1956, quando dissidentes húngaros iniciaram uma severa rebelião contra o domínio soviético e a superpotência dominadora também a invadiu. Foi algo tão terrível, ou até pior, que a ocupação da Tchecoslováquia em 1968.

Agora, chegamos à Polônia. A Segunda Guerra Mundial começou lá, com uma dupla invasão: da Alemanha Nazista pelo oeste e da URSS via leste. Sim, nazistas e soviéticos eram inicialmente aliados naquele conflito, até Hitler desencadear a Operação Barbarrosa, de invasão da URSS em 1941. Naquele interregno, os nazistas construíram vários campos de concentração e extermínio na Polônia ocupada: Auscwhitz-Birkenau, Sobibor, Maidanek, Treblinka e outros. A fúria soviética se abateu sobre as forças de Hitler, principalmente na maior batalha militar da História, a de Stalingrado. A partir daí, a URSS, e um dos fatores que desencadearam a superpotência marxista como real vencedora do conflito foram a marchas rumo a oeste, com a libertação dos prisioneiros judeus em muitos desses campos da morte, onde um altíssimo número de cidadãos poloneses, incluindo 03 milhões de seus judeus (cerca de 50% do total de hebreus mortos pelos nazistas), foram covarde e industrialmente exterminados.

Por este histórico - de liberação dos prisioneiros dos campos, apesar das históricas a fratricidas guerras entre os dois países, anteriormente ao maior conflito militar até hoje já travado, e da implantação de uma nova tirania, a soviética - a Polônia pode ter se sentido coagida a colaborar na captura da Tchecoslováquia. Polônia, onde, diga-se, haveria rebelião contra esse mesmo sistema em 1981, fazendo com que fosse declarada lei marcial em seu território, bem como o protagonismo do Sindicato Solidariedade, de Lech Walesa, e, é claro, o conclave de um papa polonês no Vaticano em 1978.

A Guerra Fria talvez seja o período mais ricamente conturbado da História, por todas as suas idas e vindas, alianças forçadas, remorsos assombrosos e, até mesmo, mudança de posturas ideológicas em favor de uma segunda tutora (a China). Mas uma coisa é certa: estamos a ponto de sucumbir num novo conflito bastante semelhante, dada a atual cobiça da Rússia pela Ucrânia.

Que o sábio destino e o bom senso dominem as decisões dos atuais líderes, americanos e europeus, algo que, infelizmente, parece não ser o que está acontecendo.