RESUMO

Apresenta algumas reflexões sobre a mudança de paradigma social acorrida na passagem da Idade Média para a Idade Moderna. Aborda-se com ênfase o desenvolvimento do direito nesses períodos e a transformação do mesmo enquanto ciência. Resgata-se o sentido da inquietação e da dúvida como método mais eficaz de transformação e alteração de uma realidade. Destaca-se o grande conflito existente entre o dogmatismo e o ceticismo, sendo que esse último foi o principal responsável pela variação de valores e conceitos jurídicos.

   INTRODUÇÃO

 Analisar o processo histórico da Idade Média à modernidade significa compreender a transformação das diversas sociedades em muitos aspectos, principalmente no que diz respeito ao direito. A era medieval é marcada pela imposição de verdades absolutas defendidas pela Igreja Católica, logo eram essas que regulavam a vida na comunidade da época. Assim as pessoas deviam viver de acordo com os ordenamentos que provinham da Igreja.

Logo, o “direito natural” da Idade Média reproduz uma história repleta de violência, injustiça e intolerância por parte da Igreja. O medo estava disseminado e diante dessa situação crítica as pessoas começaram a contestar o Direito imposto pela Igreja Católica.

O Renascimento surge como uma corrente humanista, que foi um marco de extrema importância para esse processo de mudança na mentalidade social. Porém, como se deu o questionamento dos valores do período medieval que culminou na transformação do direito em ciência?

 

2 ÉTICA E DOGMÁTICA JURÍDICO-CANÔNICA NA SOCIEDADE MEDIEVAL

 

Para que se compreenda o processo de mudanças históricas é necessário que se entenda as características essenciais da sociedade antiga. A consideração da ética ancestral é indispensável à compreensão do mundo moderno, pois todo processo de conhecimento desdobra-se na operação conjunta de distinguir e relacionar. [1]

A sociedade medieval foi marcada pelo feudalismo, ou seja, a organização social era fragmentada e dividida em feudos, logo cada grupo social, ou melhor, cada feudo apresentava seus valores e modos organizacionais. A igreja surge com o intuito de solidificar novamente toda essa sociedade desestruturada e desorganizada, usando estratégias para sedimentar o poder em suas mãos através de fundamentações “racionais” na interpretação da verdade.[2]  

A igreja passou a monopolizar a produção intelectual jurídica na idade média. Defini-se a função dogmática dos doutores universitários, doutores não pelo conhecimento, mas pela autorização divina de revelar, ou melhor, dizer a verdade da lei, legitimando o discurso oficial do papa e da igreja, de forma extremamente regrada.[3]

 

Essa legitimação acarretou à igreja o domínio de todas as estruturas sociais, tornando-a a instituição mais sólida e organizada de todo esse período. Com isso Pierre Legendre conclui que o texto sistematizado e glosado na Idade Média se apresenta como discurso dogmático que busca construir o mito da verdade instaurando-se como censura da realidade.[4]

O monoteísmo marcou profundamente os valores desse povo, a igreja com a sua maneira de agir impunha a todos a verdade de que “Deus era o único criador do universo e indisputavelmente a única fonte legitima da justiça e do direito” [5]. Esse pensamento é denominado jus divinum, que por sua vez dá origem a dogmática jurídico-canônica, que no entanto, torna-se um direito inquestionável e absoluto. “O direito canônico nasce como discurso que exclui a cultura e o diferente quando se autodenomina único e natural através do processo de “canonização” das interpretações “[6].

A “reforma religiosa medieval” apresentou dois aspectos interligados: A mudança institucional e o surgimento de uma nova mentalidade e de novos modos de vida[7]. Será que pode essa organização ser caracterizada uma escolha? Até que ponto essa nova mentalidade pode ser vista como algo natural, ou fruto de um interesse coletivo?

 1.1O RENASCIMENTO E A NOVA PERSPECTIVA JURÍDICA

 Mediante tal situação de subordinação a igreja, o homem mediévico começa a indagar-se sobre o motivo de sua existência, caracterizando uma posição cética diante das coisas já que tem como característica a desconfiança[8] de toda a organização na qual estava inserido. Esse processo de transição ficou conhecido como Renascimento, ou seja, um renascer das trevas e das opressões.

 A filosofia renascentista defende uma nova organização que teria como pressuposto a desenvoltura social e não mais a organização estabelecida por Deus. Essa nova visão de mundo tornou o homem como à medida de todo o plano material, social, político e econômico. Com o direito não poderia ser diferente, as condições teóricas do conhecimento jurídico devem estar subordinadas às condições sociais do poder jurídico[9] e não ser impostas por uma instituição, que diz que existe apenas uma verdade. O “conhecimento crítico, move-se, assim entre a ontologia (a interpretação da crise) e a epistemologia (a crise da interpretação)” [10], essa nova perspectiva de conhecimento marca o período renascentista, já que a realidade é interpretada e a adequada à teoria cientifica, ou melhor, a união entre ambas torna o conhecimento sólido e firme.

A dogmática com suas verdades absolutas característica da Idade Média, é na Idade Moderna pressionada e derrubada pela mudança do paradigma social, ou seja, esse novo senso comum é fruto da dúvida do homem em saber e afirmar que verdades absolutas não existem e principalmente que não podem ser tidas como instrumentos de organização social. Logo na modernidade todas as ciências inclusive o Direito devem ser produzidas mediante a realidade fática e não mais sobre hipóteses de existência de um ser supremo, que dita regras “justas e absolutas”.

Essa nova idéia de direito terá seu desenvolvimento no decorrer a Idade Moderna, tendo na razão o instrumento único de produção jurídica, que por sua vez culminará na transformação do direito em ciência, evidenciando toda a progressão jurídica.

 2 CONCEPÇÃO DO DIREITO ENQUANTO CIÊNCIA

        A idéia de direito sempre esteve presente na mentalidade humana. Ainda que de maneira primitiva, o homem, como ser social, sempre possuiu o discernimento para entender que para se ter uma convivência pacífica, seria necessário o estabelecimento de regras. A partir do momento que o homem cria um direito comum a todos, faz-se uma espécie de pacto coletivo, nascendo com isso uma primeira concepção de direito.

Muitos cientistas e filósofos ousaram compreender a ciência, almejando o progresso intelectual em detrimento de uma transformação da sociedade para melhor. Como resultados têm-se vários estudos que tentam quebrar a barreira existente entre a ciência e o senso comum. Para Aristóteles:

As leis da ciência moderna são um tipo de causa formal que privilegia o como se funciona das coisas em detrimento de qual o agente ou qual o fim das coisas. É por esta via que o conhecimento científico rompe com o conhecimento do senso comum. É a causa formal que permite prever e, portanto, intervir no real e que, em última instância, permite a ciência moderna responder à pergunta sobre os fundamentos do seu rigor e da sua verdade com o elenco dos seus êxitos na manipulação e na transformação do real.” [11]

      Em seus estudos sociológicos, Durkheim foi de importância primordial a teoria de uma consciência coletiva irredutível e superior à consciência dos indivíduos componentes.[12] A idéia de coletividade pressupõe normas. Logo, com o surgimento do Estado, surge a lei.

“O impulso para a legislação nasce da dupla exigência de pôr ordem no caos do direito primitivo e de fornecer ao Estado um instrumento eficaz para intervenção na vida social. O impulso para a legislação não é um fato limitado e contingente, mas um movimento histórico universal e irreversível, indissoluvelmente ligado à formação do Estado Moderno. Nem todos os países formularam a codificação, mas em todos os países ocorreu a supremacia da lei sobre as demais fontes de direito.”[13]

 

Com o surgimento da lei, o homem passa a ter direitos e deveres que garantem uma convivência social pacífica. O Estado detém o controle do poder sobre os homens. E assim, surge o Direito como a lei fundamental da sociedade. As várias formas de direito têm em comum o fato de serem mapas sociais[14] ou seja, de maneira sistemática conduzem o caminho correto que deve ser seguido. O direito positivo defende o dever-ser, segundo a visão Kelseniana[15].

 Há uma grande diferença entre o direito positivo e Ciência do Direito. O primeiro se refere ao conjunto de normas jurídicas válidas num dado país. Já a Ciência do Direito cabe descrever esse enredo normativo, ordenando-o, declarando sua hierarquia, exibindo as formas lógicas que governam o entrelaçamento das várias unidades do sistema e oferecendo seus conteúdos de significação. [16]

Diante do controle estatal, muitos estudiosos passam a analisar de forma mais profunda o Direito. Logo, nasce a postura crítica, que vê na ciência jurídica uma força transformadora da sociedade. Em seus estudos, o filósofo Jean-Jacques Rousseau, se questiona a respeito da contribuição da ciência para diminuir o fosso crescente na sociedade sobre o que se é e o que se aparenta ser, entre a teoria e a prática, tenta-se descobrir se há relação entre a ciência e a virtude.  As perguntas da contemporaneidade continuam a ser as mesmas de Rousseau, as pessoas já não sabem se o papel do conhecimento científico acumulado contribui para o enriquecimento ou empobrecimento prático de suas vidas, ou seja, já não se sabe se a ciência contribuiu positiva ou negativamente para a felicidade dos homens.[17]

Para garantir a felicidade e a ordem social, a Ciência do Direito estuda o universo das normas jurídicas, observando-as, investigando-as, interpretando-as, e descrevendo-as segundo a lógica do bem comum. Quanto aos enunciados da ciência usamos os valores de verdade e falsidade. Já ao se tratar do direito positivo, fala-se em normas válidas ou não-válidas. Logo, entende-se que a Ciência do Direito possui caráter descritivo, enquanto o direito positivo é de cunho prescritivo.[18]

Deve-se interpretar a Ciência do direito de acordo com a união de duas correntes que são fundamentais para o seu entendimento. Trata-se da zetética e da dogmática jurídica. Ambas são indissociáveis para a compreensão do caráter científico do direito.

A zetética jurídica possui o campo de investigações, que pertence aos estudiosos críticos do direito. Possui questões infinitas, tratando campo das investigações e questionamentos. As pesquisas da área política, sociológica, filosófica, histórica, dentre outras, fazem parte da análise zetética do direito. O caráter zetético do direito é descompromissado com os dogmas socialmente vinculantes.[19]

Por dogmática jurídica entende-se o estudo de questões finitas de caráter dogmático da sociedade. Trabalhar com a dogmática jurídica, não quer dizer que os dogmas são certezas absolutas, ao contrário, tratam-se de incertezas que foram eliminadas pelos dogmas.[20]

Assim, estudar a Ciência do Direito significa fazer uma reflexão sobre a dogmática, norteada pela zetética jurídica. Para que se compreenda o caráter científico do direito, não há como separar tais conceitos.

 CONCLUSÃO

O Direito medieval possui uma história impregnada pela violência e intolerância. As pessoas que viveram nessa época sentiam a necessidade de um Direito comum a todos, e que fosse independente da Igreja Católica, uma vez que, de acordo com a visão moderna, ninguém é obrigado a acreditar na lei divina e ser punido pela mesma. A punição aplicada na Idade Média custou a vida de diversas pessoas, a fogueira do Tribunal da Inquisição foi uma das práticas mais violentas que já existiu na história humana.

Com o Renascimento, as pessoas passaram a contestar o Direito Canônico. Defendiam a interpretação filosófica e histórica das fontes do direito. Assim, surgiu a Ciência do Direito, pois nesse momento as pessoas chegaram a um comum acordo a respeito da necessidade de normas sociais que regulassem os homens de maneira igualitária, independente de crença religiosa. Logo, ocorreu a cientifização do direito. Trata-se da mudança da concepção de moral coletiva, ou seja, da ética social.

Com a Ciência do Direito se fez necessária a criação da lei. Portanto, surgiu o Direito Positivo, que é o Direito posto pela autoridade competente. São as necessidades sociais, voltadas para uma convivência pacífica, que formam o direito positivo. A Ciência do Direito é o domínio da segurança e da justiça.

A fé dogmática de período medieval foi substituída pela dogmática jurídica que garante direitos e deveres positivados na era moderna. Com o surgimento das leis, a sociedade passou a ser regulada de maneira mais justa, embora seja um fato a perpetuação dos preconceitos na história humana. Diante da análise da passagem do mundo medieval para o moderno sob a perspectiva jurídica, nota-se a extrema importância da Ciência do Direito, oriunda de um processo histórico, social e acima de tudo filosófico.

 REFERÊNCIAS

 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. Compiladas por Nello Morra; tradução e notas Márcio Pugliesi, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone,2006.

CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 17. Ed. São Paulo. Saraiva, 2005.

COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo. Companhia das letras, 2006.

FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 5.ed. 2. reimp. São Paulo. Atlas, 2007.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. trad. João Baptista Machado. ed.6ª. São Paulo. Martins fontes, 1988.

REALE, Miguel. Filosofia do direito. 19. ed. São Paulo. Saraiva, 1999.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática. 6. Ed. São Paulo. Cortez, 2007.

WOLKMER, Antonio Carlos. Fundamentos de História do direito. 4. ed. 2. Tir. Belo Horizonte. Del Rey, 2008.



[1] COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo. Companhia das letras, 2006. p.49.

[2] WOLKMER, Antonio Carlos. Fundamentos de História do direito. 4. ed. 2. Tir. Belo Horizonte. Del Rey, 2008. p.217.

[3] Ibid. p.224.

[4] Ibid. p.227

[5] COMPARATO, Fábio Konder. op.cit. p. 68.

[6] WOLKMER, Antonio Carlos. op.cit. p. 229.

[7] COMPARATO, Fábio Konder. op.cit. p.125.

[8] REALE, Miguel. Filosofia do direito. 19. ed. São Paulo. Saraiva, 1999. p. 162.

[9] SANTOS, Boaventura de Sousa. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática. 6. Ed. São Paulo. Cortez, 2007. p.165.

[10] Ibid. p. 55.

[11] SANTOS, Boaventura de Sousa.op.cit. p.64

[12] REALE, Miguel.p.198.

[13] BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. Compiladas por Nello Morra; tradução e notas Márcio Pugliesi, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone,2006.p.120.

[14] SANTOS, Boaventura de Sousa.op.cit. p.206.

[15] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. trad. João Baptista Machado. ed.6ª. São Paulo. Martins fontes, 1988. p.82.

[16]CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 17. Ed. São Paulo. Saraiva, 2005. p.2.

[17]SANTOS, Boaventura de Sousa. op.cit. p.60.

[18]CARVALHO, Paulo de Barros. op.cit. p.3.

[19] FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 5.ed. 2. reimp. São Paulo. Atlas, 2007.p. 44 - 46.

[20] Ibid. p.47- 49.