Em 22 de agosto de 1979, após uma longa luta que começara em 1968 pelo então deputado Paulo Maccarini (MDB-SC), o Congresso Nacional, em tumultuada sessão, aprovava a Lei de Anistia (nº 6683/79).

Naquela ocasião as galerias do Congresso foram totalmente tomadas pelo público e, como queria o governo, foi aprovada a anistia – geral, porque abarcava todos os episódios ocorridos até aquele ano, e recíproca, pois aplicava-se tanto aos opositores do regime quanto aos militares e outros servidores públicos.

Passados 30 anos desde a sua entrada em vigor, a lei de anistia ainda provoca divergências no que tange, principalmente, à sua aplicabilidade e abrangência. Nesta breve análise tratar-se-á da questão da tortura cometida por agentes militares no período da ditadura militar, questionando se esta poderia ser ou não alcançada pela Lei de Anistia.

Primeiramente, faz-se necessário definir o significado de anistia. A palavra "anistia" deriva do grego amnestía que significa esquecimento. Cesar Roberto Bittencourt define anistia como "a forma mais antiga de extinção da punibilidade, conhecida no passado como a clemência soberana – indugencia principis". Fernando Capez define anistia como sendo a "lei penal de efeito retroativo que retira as conseqüências de alguns crimes já praticados, promovendo o seu esquecimento jurídico". Nas palavras de Alberto Silva Franco "é o ato legislativo com que o Estado renuncia ao jus puniendi".

A polêmica existente em relação à Lei de Anistia reside no disposto no artigo 1º e parágrafo 1º dessa lei, que assim versam:

"Art. 1º: É concedida a anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes, crimes eleitorais, os que tiverem seus direitos políticos suspensos e os servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares.

§1º: Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionadas com crimes políticos ou praticados por motivação política (...)".

A divergência é tanta que recentemente a Ordem dos Advogados do Brasil protocolou uma Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental no Supremo Tribunal Federal (ADPF/153), na qual questiona a concessão de anistia aos militares, que durante o regime militar, praticaram atos de tortura. Quanto a isto há dois posicionamentos, como se verá a seguir.

O primeiro posicionamento é o da Ordem dos Advogados do Brasil que entende ser impossível a aplicação da anistia aos militares que praticaram atos de tortura. Dentre os diversos argumentos suscitados pela OAB na ADPF, alega-se que os crimes cometidos pelos militares naquela época não eram crimes políticos e sim crimes comuns. De forma que a tortura jamais poderia ter conexão com crimes políticos ou ser considerada como tal. Argumentam, ainda, que embora não expresso explicitamente na Lei 6683/79, a tortura, homicídio e estupro configurariam um terrorismo de Estado, de modo que por ser uma lei recíproca – concedida a todos – o disposto no parágrafo 2º do artigo 1º ("Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal") aplicar-se-ia também aos agentes da repressão e não somente aos opositores do regime.

Entendem, também, que o artigo 1º e parágrafo 1º da lei em questão ofende vários preceitos fundamentais consagrados na constituição Federal tais como o princípio do Estado Democrático de Direito, o princípio republicano, a isonomia social, a dignidade da pessoa humana e o inciso XLIII do artigo 5º da constituição Federal, que considera o crime de tortura como sendo inafiançável e insuscetível de anistia ou graça.

O segundo posicionamento é defendido pela Advocacia Geral da União e, inclusive, pelo Presidente do STF Gilmar Mendes que disse publicamente que a anistia política concedida no final do regime militar teve caráter amplo, geral e irrestrito, abrangendo também os acusados de crimes contra os direitos humanos, como a tortura.

Em parecer enviado ao STF, a Advocacia Geral da União manifestou-se no sentido de que a anistia geral ou absoluta "não conhece exceção de crimes ou de pessoas nem se subordina a limitações de qualquer espécie". Admite que, em regra, a anistia é dirigida aos chamados crimes políticos, no entanto, nada impede que seja concedida a crimes comuns.

A AGU cita ainda pareceres elaborados pela Ordem dos Advogados do Brasil e Instituto dos Advogados Brasileiros, divulgados na época da promulgação da lei, em que estes consignam que a "anistia representa a conciliação da nação consigo mesma, devendo ser ampla, geral e irrestrita". E que, embora a tortura mereça repulsa, isso não impede seu reconhecimento pela Lei de Anistia, pois não seria "admissível manter no cárcere umas poucas dezenas de moços a quem a insensatez da luta armada pareceu, em anos de desespero, a única alternativa para a alienação".

Justifica a Advocacia Geral da União que a Constituição Federal é posterior a Lei de Anistia e em virtude do princípio da anterioridade e o princípio da irretroatividade da lei penal mais severa, não poderia o disposto no inciso XLIII do artigo 5º da CF atingir os militares, até mesmo porque este dispositivo não tem eficácia retroativa. Afirmam, por fim, que não há o que se falar quanto a imprescritibilidade da tortura pretendida por alguns, haja vista que esta é prescritível sendo somente crimes imprescritíveis os crimes de racismo e de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (art. 5º, incisos XLII e XLIV, da Carta Magna).

Concernente ao abordado em relação ao primeiro posicionamento é essencial definir crime político. Na definição de Delmanto os crimes políticos podem ser: "próprios – que somente lesam ou põem em risco a organização política – ou impróprios – que também ofendem outros interesses, além da organização política". Por esta definição observa-se que, realmente, a tortura não é crime político e sim crime contra a humanidade.

Com efeito, embora não aludido anteriormente, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, em seu artigo V já instituía que ninguém seria submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel desumano ou degradante. Tem-se o entendimento que os direitos humanos são os direitos inerentes à própria pessoa humana de modo que estes não precisariam estar expressos numa Constituição. Assim, a tortura, mesmo que implícita na legislação brasileira da época, essa seria tida como crime.

Importante destacar também que, como bem lembrado pela AGU, a Ordem dos Advogados do Brasil já teve entendimento diverso do agora pretendido perante o STF.

Contudo, embora convincentes os argumentos formulados pela OAB, parece que o segundo posicionamento é o mais acertado. A Lei de Anistia não fala de tortura, fala somente de terrorismo. Uma interpretação extensiva do termo "terrorismo" jamais poderia incluir crimes não especificados na lei, porque sequer há regulamentação legal que defina o que é de fato terrorismo.

Fantasioso seria, ainda, acreditar que os militares capturados pelos opositores ao regime não seriam vítima de nenhum tipo de violência ou agressão. Se todos são iguais perante a lei, porque esta parece pesar mais aos militares do que às pessoas comuns?

É bem verdade que o legislador foi infeliz ao utilizar-se da expressão "conexos" ao relacioná-los aos crimes políticos. Porém percebe-se que a expressão "conexos" pode abranger o crime de tortura ao dispor no parágrafo 1º que para efeito do artigo 1º da Lei de anistia "consideram-se conexos os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou pro motivação política" (grifei). Observa-se neste dispositivo que a lei de anistia é irrestrita, isso se verifica também no artigo 1º que concede a anistia a todos quantos.

Se mesmo assim persistir o posicionamento de que os militares que praticaram atos de tortura não foram alcançados pela Lei 6683/79 e supondo que tais crimes não estivessem prescritos, dois institutos do Direito Penal poderiam amenizar ou até excluir a culpa de tais agentes.

A história revela que na época do regime militar o nacionalismo e o patriotismo eram fortemente inculcados na população brasileira. Tanto que a própria legislação militar, em seu estatuto, sempre consagrou como valor o patriotismo, traduzido pela vontade inabalável de cumprir o dever militar e solene juramento de fidelidade à Pátria, até com o sacrifício da própria vida (por exemplo: artigo 31, I, da Lei 5774/71).

Este patriotismo constantemente difundido na população e principalmente nas academias militares, além de incentivar e propagar a prática de determinadas atitudes, mesmo que incorretas, pareciam aos alienados por essa idéia serem absolutamente corretas uma vez que visava a proteção da Pátria e a manutenção do Poder Público vigente.

Sabe-se que a forte emoção não exclui a imputabilidade penal, entretanto essa, em determinadas circunstâncias, pode ser considerada como atenuante do crime. Assim, poder-se-ia dizer que a forte emoção ocasionada pela propaganda do patriotismo que, no caso dos militares, sempre foi valor essencial, já seria uma atenuante aos crimes por ele praticados. Contudo, para aqueles que estão respondendo a um processo, a mera atenuação da pena não seria algo de grande valia.

Assim, não é absurdo sustentar que grande parte militares que praticaram atos de tortura durante o regime militar não cometeram crimes. Dentre os deveres e obrigações dos militares estão, e sempre estiveram, a necessidade ética militar de cumprir e fazer cumprir as leis, os regulamentos, as instruções e as ordens das autoridades competentes, sendo essencial a disciplina e o respeito à hierarquia. Se o país era governado por militares, ditadores e regulamentado por Atos Institucionais abusivos, como poderia o militar recusar-se a praticar determinado ato? Além da pressão exercida pelo governo, existia também a disposição penal militar que considerava crime o descumprimento de qualquer dever ou obrigação instituída do estatuto militar.

Portanto, se considerarmos crime como fato típico, antijurídico e culpável, na questão dos militares, não há o que se falar em crime por faltar um dos elementos da culpabilidade, qual seja, a exigibilidade de conduta diversa.

A doutrina corrobora no sentido de que a coação moral irresistível e a obediência hierárquica são causas de inexigibilidade de conduta diversa. Esta inexigibilidade é a impossibilidade do agente agir de maneira diversa daquela praticada.Como dito alhures, a maioria dos militares poderiam utilizar-se de ambas as hipóteses (coação moral irresistível e obediência hierárquica) para justificarem suas ações.

É certo que o artigo 22 do Código Penal delega a responsabilidade do fato criminoso ao autor da coação ou da ordem.Difícil seria encontrar o autor da ordem, visto que a opressão era regulamentada em lei através de Atos Institucionais e realizada com a aprovação dos Presidentes.

Pessimista, porém realista, é concluir que os reais responsáveis pelas torturas e atrocidades praticadas na época da ditadura jamais seriam devidamente responsabilizados. Cabendo às vítimas de tais torturas a mera indenização civil pelo Estado.

Pelo exposto, a Lei de Anistia parece ter alcançado também os militares que praticaram atos de tortura, porém efetivamente, esta questão só será resolvida quando o Supremo Tribunal Federal julgar a ADPF nº 153.

Bibliografia:

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·COMPARATO, Fabio Konder, 1936. A afirmação histórica dos direitos humanos/ Fabio Konder Comparato -3ed.rev.eampl.- São Paulo: Saraiva, 2003

  • DELMANTO, Celso..[et.al]. Código Penal Comentado – 6ed.atual.eampl.- Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
  • GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Legislação penal especial/ Victor Eduardo Rios Gonçalves. – 5ed.reveatual. – São Paulo: Saraiva, 2007
  • NOSSO TEMPO- A cobertura jornalística do século. São Paulo: Klick Editora:1995