1 ESCUTA CLÍNICA

Pensando na conversa em seu sentido etimológico – cum, com; versare, dar voltas; "dar voltas com" – logo remetemos à importância da escuta como via a compreensão e auxilio daquele que procura a clínica psicológica. Neste sentido é de suma importância compreender, não apenas a escuta clínica, como também, o ato de escutar em seu sentido mais amplo, para que se possa delinear o papel e o lugar de quem escuta.

1.1Escuta

Segundo o Dicionário Aurélio da Língua portuguesa, a palavra escuta vem do latim escutare, que significa: "tornar-se ou estar atento para ouvir; dar ouvidos a; aplicar o ouvido com atenção para perceber ou ouvir" (AURÉLIO, 1986, p.693). É importante perceber neste sentido que a atitude de quem se coloca na postura de ouvinte é ativa, que não está como um mero espectador, receptor de informações. Ele é quem está atento; voltado para ouvir o que o outro traz de experiência de vida, de sua existência.

A atitude do escutar não pode ser confundida como algo passivo, ela é transformadora. Diz Luiz Cláudio Figueiredo que a clínica é o lugar onde pode acontecer o "fazer sentido". Este fazer sentido consiste nas atividades de discriminar e articular que são próprios a todos os seres vivos. Diz-nos que quando o fazer sentido é estancado, rompem-se as vias de trânsito e o que acontece em um dado plano não pode ser acolhido em outro, criando-se assim realidades paralelas e incomunicáveis. Seria o adoecer humano – este não poder se conscientizar e re-significar suas experiências.

A Bíblia já nos fala desta ação transformadora do ouvir, do escutar o outro. No livro do Ex. 3, 7-8, Deus diz: "Eu vi muito bem a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi o seu clamor contra seus opressores, e conheço os seus sofrimentos. Por isso desci para libertá-lo do poder dos egípcios e para fazê-lo subir dessa terra para uma terra fértil...", ou seja, o escutar transforma a realidade. Ainda a Bíblia nos apresenta a importância do falar como sendo a possibilidade do acontecer, forma de apresentar-se, do contrário, será o não acontecer, do privar-se, da impossibilidade; do não transformar. Diz "Moisés insistiu com Jave: "Meu Senhor, eu não tenho facilidade para falar, nem ontem, nem anteontem, nem depois que falaste ao teu servo, minha boca e minha língua são pesadas".(Idem. 4, 10) logo não posso, sou incapaz.

Leloup (2004) comenta: "A escuta atenta daquilo que é leva o terapeuta à presença de 'Aquele que É', o Ser, Ho on. Filon de Alexandria, neste texto, não fala de Deus, fala do Ser, e é deste Ser que importa cuidar". (p. 98). Para este mesmo autor, este escutar é um olhar cuidadoso do outro: "O olhar do terapeuta não está voltado em primeiro lugar para a doença ou para o doente, mas para aquilo que se acha fora do alcance da doença e da morte nele" (p. 99).

1.2 Os Primeiros "Terapeutas" e sua Escuta

Quem nos falou primeiro sobre o termo "terapeuta" foi o filósofo judeu Fílon de Alexandria. Sabe-se pouca coisa de concreto a respeito da vida deste autor. Não se sabe exatamente o período em que ele viveu. Para Leloup (2004) provavelmente pode-se situar seu nascimento entre os anos 20 e 10 a.C. Diz Leloup: "Devemos portanto, contentar-nos com uma larga margem de imperfeição e situar seu nascimento entre 20 e 10 a.C. A vida de Fílon termina depois dos anos 39 e 40 da era cristã, data da deputatio (deportação) a Calígula. Fílon é, portanto, contemporâneo de Cristo, mas em seus escritos não se encontra nenhum eco do que passava então na Galiléia". (LELOUP, 2004, p. 18).

Para este mesmo autor os terapeutas eram homens e mulheres que sabiam interpretar as Escrituras, a palavra de Deus. Significa que a fonte de inspiração dos primeiros terapeutas era a escritura. Comentando os trabalhos de Gilberto Durand e de Henry Corbin, diz:

A Bíblia, para eles, é um livro onde o inconsciente vem se "recarregar", alimentar-se de imagens e símbolos que podem ajudá-los a viver, a dar sentido a acontecimentos pessoais e coletivos que nenhuma aproximação puramente racional consegue justificar. Tratar-se-ia, pois, de ler a bíblia e os textos sagrados como textos do inconsciente, e não pedir a eles razões ou explicações, mas uma orientação e um sentido (LELOUP, 2004, p. 16).

Inconsciente aqui está no sentido junguiano, ou seja, imagens e símbolos que se tornam modelos, "arquétipos", para serem imitados, seguidos. Exemplo: Abraão, símbolo e arquétipo do homem de fé; aquele que acredita; que caminha por que Deus prometeu.

O Termo terapeuta no tempo de Fílon tinha muitos sentidos; é o que nos diz Leloup:

Therapeutes pode apresentar os dois sentidos principais do verbo do qual provém: ' servir, cuidar, render culto' e ' tratar, sarar'. Em Platão, autor de referência para Fílon, therapeutes tem estes dois sentidos. Em Górgias, no inicio de sua carreira, Platão qualifica um cozinheiro, um tecelão, como therapeutes somatos: 'que cuida do corpo'. Mas quando em Leis, na avançada velhice do filosofo, ele qualifica o filho como 'servidor dos deuses, da família e da cidade (LELOUP, 2004, p. 24)

Portanto, no tempo de Fílon, o terapeuta é um cozinheiro, ele cuida do corpo, cuida da alma, cuida dos deuses, aquele que sabe orar pela saúde dos outros, pois ele não cura, ele ora e cuida. Mas este orar não é como se ver hoje em dia, como uma simples recitação de palavras e preces "Para o terapeuta, portanto, orar não é tanto recitar preces e invocações, mas ter seu ser no Ser a fim de que sua Presença se difunda ou se interiorize através dele na pessoa mal-aventurada" (LELOUP, 2004, p. 34). Dessa forma, quando se afirma que os terapeutas não "curam", mas cuidam é uma maneira mais ampla de se entender a saúde. Muitos entendem saúde quando o nosso corpo pode exercer suas funções fisiológicas, suas atividades do cotidiano: fazer a comida, trabalhar, praticar esportes e a doença como aquilo que nos impossibilita realizar estas atividades. Na Gestalt-Terapia, a saúde é vista de forma mais ampla. Diz Rodrigues: "Na Gestalt-Terapia, a saúde implica em um reconhecimento da capacidade do individuo em manter-se em contato com seu contexto, podendo – dentro de um processo de escolha espontâneo – optar sobre a melhor forma e o momento de efetuar suas trocas com seu mundo [...] Saúde implica em um movimento para a vida – não para o consumo, uso ou desperdício – mas para o contato, para as trocas [...]" (Rodrigues, 2000, p. 47). Esta forma de entender a saúde de maneira ampla, também é partilhada na cultura hebraica, no tempo em que Jesus fazia parte. A cura não era só de um sintoma corporal, era de toda a pessoa, era uma maneira de integrar o "doente" no contato com o mundo, com a vida. No Evangelho narrado por S. Lucas, temos a cura de um paralítico onde ele é colocado no "meio" significando a sua integração com o mundo, com a sociedade. Diz: "Chegaram, então, algumas pessoas levando, numa cama, um homem que estava paralítico; [...]. Subiram então ao terraço e, através das telhas, desceram o homem com a cama, no meio, diante de Jesus". (Lc. 5,18-19). Quando também nos fala que cuida da alma, que se entenda "alma" no sentido mais amplo, ou seja, da dimensão da psique humana; e não na forma dualista de corpo alma, espírito e matéria, mas no sentido dado pelos orientais, isto é, o que é a pessoa, seu ser, sua maneira de existir, do fazer contato com seu mundo.

Fílon define os terapeutas em primeiro lugar como aqueles que amam a sabedoria, são filósofos que sua forma de cuidar é superior, pois cuida da alma, do psiquismo. "O próprio nome desses filósofos, que chamamos de terapeutas, revela o seu projeto, em primeiro lugar porque a medicina (iatriké) que professam é superior àquela que vem sendo exercida em nossas cidades; esta só cuida do corpo, mas a outra cuida também do psiquismo, atormentado por essas doenças dolorosas e difíceis de curar (...)" (FÍLON, apud in, LELOUP, 2004, p. 69).

Para Fílon caberá ao terapeuta a função de 'desatar' os nós da alma, esses obstáculos à vida e a inteligência criadora, o grande terapeuta seria aquele que domina perfeitamente o mundo das paixões e dos atrativos desordenados do prazer. Fílon considera Moisés o grande terapeuta. "O legislador (Moisés), que é um médico perfeito das paixões e das afeições mórbidas da alma, teve na vida uma única tarefa, um único fim: extirpar as doenças do pensamento, com suas próprias raízes, a fim de que não restasse mais nada para produzir uma semente de doença incurável" (FÍLON, apud in, LELOUP, 2004, p. 78).

Os terapeutas buscavam viver em harmonia. A harmonia para eles era sinônimo de saúde; vivem em harmonia se assim podemos chamar entre o fundo e a forma; entre a palavra e o pensamento; entre o essencial e o existencial. Por isso eles nos convidam a orientar nossos desejos, não excluí-los, extirpá-los, pois somos seres do desejo, mas dá a eles seu lugar, viver com eles de forma harmoniosa.

1.3Escuta clínica: considerações

Falando-nos sobre a Clínica como sendo o lugar desta escuta; que dá a possibilidade de sentido, de ser acolhido nos seus sofrimentos, conflitos. A clínica pode ser vista assim como sendo o espaço onde se pode escutar de uma forma mais sistemática e profissional aqueles que nos procuram. Ela não deve ser entendida como uma simples posição de status, como se entende e se propaga por aí; também é para fazer deste espaço um meio para se ter uma clientela de aplicação de teorias, técnicas ou aprendizagem, seja indivíduos ou grupos; e nem fugir de responsabilidades sociais, pois como psicólogos e de modo particular com uma abordagem fenomenológico-existencial que busca ver a pessoa como este ser ai, na sua existência no mundo, dentro deste mundo real, entenda-se econômico-político-cultural, devemos olhar os sujeitos dentro deste contexto maior, mais amplo. Por isso, a clínica torna-se o lugar onde aquele que não é venha a ser. Para Figueiredo, Luis "A clínica se define como: Por um dado ethos: em outras palavras o que define a clinica psicológica como clinica é a sua ética: ela está comprometida com a escuta do interditado e com a sustentação das tensões e dos conflitos" (FIGUEREDO, LUIS, 2004, p. 63). Ou seja, a clínica torna-se este espaço em que o ser humano pode ser ele mesmo; o espaço para aqueles que não tem vez e nem voz; as minorias discriminadas venham a ser, ocupar um lugar. Dessa forma a Clínica seria caracterizada como lugar do cuidado, que estabelece as condições necessárias para o acontecer humano. Assim não seria correto reduzir ou limitar a clínica a procedimentos técnicos. A técnica pode reduzir o paciente à direção do simples conceituar, impedindo-o de poder dar sentido, significar suas experiências.

Pode-se ainda perceber que na clínica não se dá apenas o encontro entre duas pessoas de forma solitária; com destinos ímpares. Ela não seria apenas o encontro de um sujeito que traz seu sofrimento de maneira individual. Este sujeito é um ser de relações e história, é um ser comunitário; a comunidade dos humanos. Ele esta aí com todos aqueles com os quais partilhamos um destino; o destino do humano; o destino de sermos todos seres do desejo, da necessidade, da solidão existencial, da ignorância frente ao futuro, de seres para a morte. Safra (2004) assim nos diz: "Na situação clínica, estamos em comunidade de destino com alguém quando nos posicionamos solidariamente com nosso paciente frente às grandes questões existenciais peculiares ao destino humano: instabilidade, necessidade do outro, a ignorância frente ao futuro, o sofrimento decorrente do viver, a incompletude da condição humana" (SAFRA, 2004, p. 73). Pode-se perceber nestas palavras que, mesmo sendo sujeitos singulares, com nossa maneira de ser, com nossa subjetividade, há em nós os que nos constituíram. A solidariedade apessoa, é a solidariedade a humanidade. Seria assim a clínica: acolher o outro é acolher a humanidade. Para este mesmo autor, na clínica estamos frente a uma família, a gerações, à comunidade e humanidade.

A clínica como lugar do encontro com as singularidades, não teria lugar para discursos universalizantes no sentido de uma linguagem com conceitos, leis, condutas, normas e doutrinação. Isso acontece quando a ciência, a religião, a política quer impor suas verdades de forma absoluta e autoritária, negando a singularidade dos indivíduos; esse é outro lugar, não o fazer clínica. Dessa forma, na clinica se evita o achatamento do singular, que traz na sua história as marcas do universal. Neste espaço não há lugar para negação da singularidade, da linguagem pessoal; do contrário haveria o abuso de poder. Safra nos diz: "Um dos problemas de nosso tempo é a utilização de discursos que são veiculados como universais. Onde há o achatamento do dizer singular, do gesto e do idioma pessoal do Outro há abuso de poder. Assim o papel do terapeuta não é dar códigos de condutas, ensinar o que é certo ou errado, permitido ou proibido, mas é aquele que se coloca junto à demanda do paciente para com ele nomear na medida do possível, com seu idioma pessoal, sua história de vida, sua dor existencial, seu destino humano.

A história nos mostra em seu movimento, que ela é construída através das singularidades. Pode-se dizer que as grandes teorias, doutrinas e conquistas, sempre têm algo muito singular. As próprias religiões têm o seu fundador; mesmo que se saiba que foi todo um movimento, uma história para se chegar aonde se chegou. Como exemplo se pode constatar: O Islã também tem seu fundador, Maomé. O budismo com Buda, o cristianismo temos Jesus Cristo. Quem pode negar que Ele foi a grande singularidade da história da humanidade. Talvez possamos dizer que foi por causa da própria singularidade? É possível, pois sua história de vida aponta nesta direção. Vejamos: no tempo de Jesus havia vários grupos: Essênios, Fariseus, Zelotas, grupo de João Batista. Distanciou-se até da própria família, foi muitas vezes tachado de blasfemador, de agir por meio de "belzebu", de infligir a lei do sábado, de perdoar pecados onde só Deus era quem podia; só para ilustrar. Mas ele não seguiu nenhum grupo; pelo contrário chamou novos seguidores e fundou a sua comunidade. O resultado já se sabe; não foi muito bem visto, foi morto e crucificado. A sua singularidade se transformou em universalidade. Com o seu nascimento, o humano se tornou Divino e o Divino se tornou humano. Que singularidade, que universalidade! Assim, diante de cada singularidade, de cada pessoa, estamos diante deste universal, do divino. Hoje se tornou uma verdade universal para muitos de seus seguidores.

O que queremos dizer é que o respeito às singularidades, é respeitar o universal, ou seja, o respeito a uma pessoa, é respeitar a humanidade, o respeito a um animal, a uma árvore, é respeitar a fauna, a flora.

A clínica é o espaço do Simbólico. Dimensão tão fundamental para o ser humano. Esta capacidade de simbolizar é o que também o distingue de outros animais. A possibilidade de simbolizar lhe dá as condições de compreensão de suas experiências e vivências. Sem essa possibilidade o homem não seria capaz de colocar as questões fundamentais num devir, num desejar, num sonhar. Diz Safra: "Pois o registro simbólico dá ao homem a possibilidade de colocar sob o domínio de seu gesto os aspectos paradoxais de seu ser. Sem essa possibilidade o homem vive duas agonias insuportáveis: a claustrofobia da finitude, que o joga para o lado dos entes naturais e a agorafobia, que o lança para o abismo do sem fim" (SAFRA, p. 63).

Na clínica se dá o encontro com o mistério, o sagrado, aquilo que todos somos; que muitas culturas e povos expressam. Há na relação terapeuta e cliente este terceiro. Para muitos terapeutas isso não soa bem; pois muitos ainda têm preconceitos com a dimensão de fé, da religião, ranço antigo dos preconceitos entre a psicologia e a religião. Fé no sentido do transcender as condições do presente, do agora, de um olhar para o futuro, para o que será. O Apóstolo S. Paulo nos diz o que seria esta fé quando define em Carta aos Hebreus. Diz: "A fé é um modo de já possuir aquilo que se espera, é um meio de conhecer realidades que não se vêem" (Hb, 11, 1). Nestas palavras se ver que a fé é esse dinamismo do homem; a convicção da realidade que ainda não aconteceu, mas que é possível e que já se está experimentando no agora; que aquilo que se vive no presente, não é a verdade nem a realidade absoluta, ou seja, nada está concluído, fechada, mas sempre aberto às possibilidades do acontecer, de ser transformado. É assim que nos fala S. Paulo; que mesmo vivendo os sofrimentos, as tribulações do presente, devemos nos manter alegres na esperança da transformação. Diz ele: "Sejam alegres na esperança, pacientes na tribulação e perseverantes na oração" (Rm, 12, 12). Isto se vê e se vivência na clinica: temos um sujeito que traz seus sofrimentos, angústias, dúvidas

Rodrigues, (2000) nos diz: "Aqui considero a frustração como um exercício de fé: acreditar na pessoa e na sua capacidade de fazer o que precisa para si mesma e por si mesma; levar fé que uma vez ela encontrando o que a impede ou dificulta, ela pode compreender a si mesma, livrar-se dos obstáculos" (RODRIGUES, 2000, p. 115). Sente-se cada vez mais a necessidade do viver, buscam aquilo que somos como humanos: seres para a transcendência. Somos seres da busca, da superação. Pavel Florensky nos diz: "A sacralidade de uma pessoa encontra-se em sua viva liberdade, em ser para além de qualquer esquema. Uma pessoa pode e deve corrigir-se, mas não de acordo com uma norma, que seja externa a si mesma, mesmo que seja a mais perfeita das normas. Ela deve corrigir-se somente em sintonia com a maneira que ela é em si mesma..." (PAVEL, apud in, SAFRA, 2004, p. 125).

Pensando em estabelecer uma conceituação inicial sobre o que seria a "escuta clínica", acredita-se ser válido utilizar um contraponto entre o que ela é e o que não é, nesta tarefa utilizar-se-á alguns conceitos de André Levy (2001), que ao defini-la diz:

Este trabalho (escuta clínica) não tem, pois, nada em comum com um cerco, que consistiria em "fazer dizer" ou fazer "confessar" fatos ocultos ou esquecidos, cuja colocação em evidência permitiria ao clínicodesvendar o sentido e "fazê-lo entender";Com uma interpretação que seria fundada segundo a fórmula de Ricoeur, sobre a"suspeita", sobre a convicção que, atrazdo dito, um outro saber estaria pedindopara ser descoberto (LEVY, 2001, p.24) (grifos nossos).

Destaca-se, na citação deste autor, que não estaria a escuta clínica a serviço de interpretações pré-estabelecidas, nem tão pouco de tentativas de enquadre. Percebe-se a clínica enquanto lugar de exposição e conseqüente compreensão dos fenômenos narrados tal como se apresentam, afastando-a assim de outras modalidades de escuta:

Se clínica pode se definir como uma clínica do sentido, seu escopo, entretanto, não é restaurá-lo ou restabelecê-lo. Desse ponto de vista,deve-se ressaltar que ela não tem, nem de longe, o monopólio da questão do sentido, que partilha com a religião, a polícia, a educação, o político, dos quais se pode afirma que se dão, também eles,por tarefa, dar um sentido, restaurá-lo ou corrigi-lo: que se trate de fins últimos, de desenhar "um projeto para França", de "devolver a esperança aos jovens", ou de lhes ensinar boas maneiras ou, simplesmente, assegurar o transito, instalando contra-mãos, vias de sentido único ou rótulas – resumo, assegurando a ordem (ibidem, p.26).

Pode-se dizer dessa forma que na clínica prevalece o discurso e fala de sujeitos livres, desejantes, que serão "ouvidos" nos seus sofrimentos e angústias; e não para serem meros "ouvintes" de conceitos, preceitos e explicações, mas dar sentido aos desejos, as suas emoções. É assim que podemos entender no dizer de Levy:

A abordagem clínica é, principalmente, a abordagem de um sujeito, ou um conjunto de sujeitos reunidos em um grupo ou organização, às voltas com um sofrimento, uma crise que os toca por inteiro; o clinico supõe sujeitos vivos, desejantes e pensantes, falando igualmente, tanto para nada dizer quanto para se fazer conhecer, ou para se encontrar um sentido para suas emoções, para suas lembranças ou para sua história, que eles constroem a cada instante. (ibid, 20)

Ainda ressaltando os aspectos singulares da escuta na clínica, Levy fala que:

A abordagem clínica só tem sentido numa relação mutuamente aceita, com todos os acasos, as dúvidas e incertezas que comporta. Ela só se justifica e é possível porque o clínico é, de certa maneira, desejado, aguardado, esperado; em outras palavras, ele ´´e o objeto de um "demanda", por parte de pessoas ou de grupos lidando com processos, conscientes e inconscientes, que neles geram fases, ora de esperança, de estabilidade, ou de relativo equilíbrio, ora de ruptura, de desencorajamento e de desequilíbrio (LEVY, 2001, p.21)

Para a Gestalt-Terapia, a clínica é o espaço de possibilidades onde o outro pode ser aquilo que de fato é. É o resgate do que está oculto, do negado, do excluído. ZinKer nos diz: "Este jogo de falar e ouvir, ver e ser visto, tocar e ser tocado, conhecer e ser conhecido, nos leva a esclarecer nossas semelhanças e diferenças. Esta consciência crescente do outro estimula a energia necessária para o surgimento claro de vontades e desejos; o surgimento de um figura a partir do fundo" (ZINKER, 2001, p. 91), assim é possível o desvelar do ser, pelo acolhimento e compreensão do fenômeno tal como se apresenta.

Na escuta clínica podemos encontrar a chave para a compreensão de determinadas e eventuais identificações e quadros diagnósticos "No desejo de encontrar meios de acesso ao mundo próprio do indivíduo, a investigação da fala pode ser uma chave para a compreensão de determinadas estruturas e a eventual identificação de certos quadros diagnósticos (...) A análise e observação da fala abre, portanto um caminho privilegiado à investigação clinica" (AUGRAS,2004; p 78).

Na escuta clínica a fala é fundamental para que o psicólogo possa compreender e intervir no sentido de facilitar o cliente a dar novas significações a experiências carreadas de sofrimento. É através da fala do cliente que o psicólogo poderá conhecer melhor o fenômeno tal como se apresenta:

Na situação do encontro em psicologia clinica, o elemento de informação para fins de diagnostico é precisamente a fala do cliente, em suas manifestações. A situação da fala supõe duas vertentes: fala-se e ouve-se. Em ambos os casos, testemunham-se. O registro feito pelo psicólogo da fala do cliente quer seja o relato razoavelmente espontâneo obtido na entrevista, ou o conjunto das respostas a determinados estímulos que constituem o aparato instrumental próprio da sua profissão, é o material básico que fundamenta a compreensão do "caso" (AUGRAS, 2004, p. 82).

Ainda segundo esta autora, é através da língua e da fala que cada indivíduo e cultura exprimem seu mundo, exprimem seus conteúdos, experiências e significados "Para cada cultura, a língua exprime o mundo próprio, nos seus conteúdos, nos seus significados e na sua estrutura. Da mesma maneira, a fala do indivíduo exprime a organização do seu mundo, constantemente criado, questionado, ameaçado e reconstruído". (AUGRAS, 2004, p. 78).

Na escuta clínica o psicólogo debruça-se sobre o cliente e não ouve apenas signos e sons, mas como este cliente vive, experimenta sua realidade, seu mundo particular, subjetivo. A fala lhe proporciona esta descoberta, dessa forma ele pode junto com o cliente dar sentido e transformar a sua relação com o mundo. Não que o mundo será transformado, mas o seu mundo.

Mas que linguagem é essa que se encontra nas psicoterapias? Qual a sua via? Seria uma via intelectual? Pompéia (2004) diz que esta linguagem não é racional, intelectual. Para ele, o cliente em geral não precisa de explicações racionais, pois o próprio cliente é crítico quanto aos seus sintomas, e que a verdade racional é importante diante das dificuldades psicológicas, a linguagem da clínica se daria pela via da poesia. Diz: "A verdade racional é importante diante das dificuldades psicológicas, que se divertem em ridicularizar a razão. Não é pela via da razão que caminha a terapia. A linguagem própria do diálogo entre terapeuta e paciente tem uma outra via para cuja compreensão é importante introduzirmos aqui uma palavra grega, poiesis" (POMPÉIA, 2004, p.157). Esta linguagem conhecida como linguagem do conhecimento, das ciências, utiliza-se de explicações para desocultar o oculto, no entanto, não tem responsabilidade com os elementos singulares de cada experiência. A linguagem terapêutica é diferente, é através da poesia, que não precisa de explicações.

A linguagem da razão, chamada em geral de linguagem do conhecimento, também desoculta, mas desoculta de modo diferente, de um modo que dá explicações. Ela é própria das ciências, das teorias e mesmo de certas argumentações do cotidiano; ela, de certa forma, garante ou "obriga" que alguém entenda o que dizemos. Com a linguagem poética é diferente. Esta pode aparecer na poesia propriamente dita, num texto em prosa, num diálogo ou mesmo numa piada engraçada. A piada não é para ser explicada (POMPÉIA, 2004, p.158).

Safra (2004) nos diz que no falar poético a palavra não se fecha, ela é aberta; e se abre para o não dito. O viver humano não pode ser totalmente manifesto, ele é também ser do mistério, do desvelar-se. O falar poético seria abertura: "No fluir da situação clinica testemunha-se o aparecimento da possibilidade desse falar poético, em que a palavra não se fecha, mas se abre para o não-dito".(SAFRA, 2004, p. 25)

Na linguagem da poesia, ou seja, linguagem usada na psicoterapia corre-se riscos, não é fácil, pois não sabemos se o outro vai nos compreender:

Quando o outro nos compreende, vivemos uma experiência extremamente significativa. Quanto mais delicada é a situação e mais pessoal o enunciado, maior é a nossa necessidade de compreensão e mais difícil se torna qualquer tentativa de explicação. Talvez isso nos permita compreender por que, às vezes, a terapia pode ser tão difícil. A linguagem poética, no dizer de Heidegger, faz com que nos sintamos "indigentes", mas pela própria natureza da linguagem (POMPÉIA, 2004, p.159-160).

Na escuta clínica busca-se encontrar a verdade, não só no sentido do puro conhecimento, na forma das ciências naturais, mas a verdade do coração, nosso modo de sentir, viver. Assim nos falam os mesmos autores:

Na terapia, o que fazemos é reencontrar a expressão do nosso modo de sentir, o re-cordado, principalmente aquelas coisas que já nos foram caras, que ja foram coisas do coração, mas que perderam esse vínculo em virtude de dificuldades de comunicação, tornaram-se desgastadas. Foram esquecidas, mas num esforço de procura, através da linguagem poética, podemos reencontrá-las. Quando isto acontece, encontramos a verdade (POMPÉIA, 2004, p.161)

Esta verdade e não qualquer verdade, não uma verdade relativa, mas uma verdade que liberta; que foi e é buscada por todos os homens e mulheres. O próprio Jesus Cristo diz que "A verdade vos libertará...". (JOÃO, 8, 32), ou seja, a verdade aqui significa libertação.

Na bíblia, nos mitos em geral e mesmo no mundo da ciência, encontramos: a verdade liberta. Nos mitos, a verdade revelada pela divindade tinha o caráter de libertar o homem do julgo de sua identidade com o restante da criação...quando a psicoterapia começa a nascer, reencontramos a idéia de verdade libertadora: a descoberta da verdade liberta o paciente do jugo do sintoma (POMPÉIA, 2004, p.164).

A escuta clínica, é o espaço onde se busca encontrar, dar sentido, novos significados à vida, nossas esperanças, dificuldades e sofrimentos. Sentido na sua forma mais primária, ou seja, quando perguntamos: qual o sentido de nossas vidas? Qual o sentido de estarmos aqui? Muitas vezes passamos por situações na vida em que o sentido se perde. Isso acontece quando perdemos algo que queríamos muito que acontecesse, quando perdemos sonhos.

Victor Frank nos fala da importância do Sentido, dar sentido à nossa vida. Ele diz:

A busca de sentido na vida da pessoa é a principal força motivadora no ser humano. Por esta razão costumo falar de uma vontade de sentido, a contrastar com o princípio do prazer. (...) A busca do individuo por um sentido é a motivação primeira em sua vida, e não uma racionalização secundária de impulsos instintivos. A logoterapia, sua tarefa é ajudar o paciente a encontrar sentido em sua vida. A logoterapia diverge da psicanálise na medida em que considera o ser humano um ente cuja preocupação principal consiste em realizar um sentido, e não na mera gratificação e satisfação de impulsos e instintos, ou na mera reconciliação das exigências conflitantes do id, ego e superego (FRANK, 1991, P.92-95).

Frank nos ensina assim como é importante termos um sentido, ou darmos sentido à nossa existência. O ser humano vive para dar sentido a sua existência. Pompéia ressalta:

O fim de um sonho é uma das formas de perda de sentido. Essa traz não apenas dor. A pessoa pode sentir que perdeu também exatamente o que fazia sua existência ser digna de ser vivida. É como se ela se sentisse ferida em sua dignidade. Desaparece o que tinha importância, e, nessas horas em que um sentido muito importante da vida se desarticula, o perigo é que isso arraste tudo mais, num movimento que tende a esvaziar todas as coisas de qualquer significado que ainda possam ter. Na ausência de sentido, fica difícil viver. Mas se a pessoa compreender que, embora sonhos se acabem, a possibilidade de sonhar permanece, ela poderá restabelecer um sentido. (...) Podemos nos perder: podemos perde nossa morada no sentido, não saber o que fazer com a liberdade, sentir dificuldade para prosseguir em uma direção. Nesses momentos é preciso Cuidado (...) Talvez isso justifique termos dito, no início, que terapia é procura, é pró-cura, é para cuidar (...) Estamos chegando a poder dizer que terapia é a procura, via poiesis, pela verdade que liberta para a dedicação ao sentido. (POMPÉIA, 2004, p.167-169).

Muitas vezes a escuta clínica, as psicoterapias são mal entendidas, pois as mesmas provocam sofrimento, dor. Elas nos deixam frente a frente com o que somos; com os nossos conteúdos inconscientes. Não o inconsciente da abordagem freudiana, mas fenomenológico como nos diz Augras: "Ora, se todo elemento psíquico é ao mesmo tempo consciente e inconsciente [...] não será melhor dizer que acontece um fenômeno, do qual uma parte é imediatamente desvendável para o indivíduo, enquanto outra parte lhe parece obscura" (AUGRAS, 2004, p. 61). Inconsciente aqui não tem como definição ser inacessível, mas que ainda não esta na consciência.

Toda intervenção representa um certo grau de violência com o paciente...A psicoterapia mexe em algumas estruturas, e isso pode assustar o paciente, pode lhe causar sofrimento. Em todo tratamento médico, há alguma forma de violência. Não existe medicamento, por mais suave que seja, que não tenha algum efeito colateral (...) Na medicina, o valor referencial é a vida (...) o compromisso do médico é a vida por todos os meios possíveis (...) Qual é a questão central para a psicoterapia? qual é o valor de referência que esta em seu fundamento? A referência para a psicoterapia é o sentido da vida, é o significado. (POMPÉIA, 2001, p.173,174,175).

Feijoo (2000) comenta que a psicoterapia no pensamento de Heidegger é vista como modalidade de desvelamento do sentido do Ser; ou seja, somos seres ai, sem nenhum lugar ou destino determinado Diz "A psicoterapia, na forma aqui compreendida, constitui-se como modalidade de desvelamento do sentido do ser do ente. Para tanto, propõe-se a lançar mão da fenomenologia, da hermenêutica e da técnica tais como entendidas por Heidegger para desvelar o sentido do ser" (FEIJOO, 2000, p.99). Mostra-nos ainda a autora comentando Heidegger, a importância da fala; é nela que o cliente expressa as evidências do sentido; diz:

Heidegger propõe que na investigação do ser se porta daquilo que é evidente, rumo à fundamentação. Assim procede o psicoterapeuta quando tenta elucidar o dito do cliente. Este, em sua fala, traz evidências do seu sentido e, somente quando tais evidências são aceitas por ele próprio, o psicoterapeuta pode proceder as suposições, à fundamentação (FEIJOO, 2000, p.101).

 

Para Heidegger a fala é muito importante para compreensão do outro, é ela que dá voz à hermenêutica. Esta deve encontrar um espaço de liberdade onde possa se expressar de forma livre. O terapeuta é mensageiro do que escuta.

O psicoterapeuta, assim como Hermes na mitologia grega, atuará como mensageiro da palavra. Da mesma forma que Hermes, o psicoterapeuta não vai ocupar a casa do outro, morada do ser, mas vai habitá-la para, então, poder entender o que o outro entende. Acompanhará aquilo que o cliente revela na sua fala, mesmo quando silenciar. Direcionar-se-á de acordo com aquilo que lhe é dado, agindo em um espaço de expressão livre. O psicoterapeuta compreende o outro e isto consiste em captar a interpretação de mundo que o outro é. Abre, então, possibilidades para o próprio se questionar em seu ser mais próprio" (FEIJOO, 2000, p.103-104).

Na psicoterapia, o terapeuta buscará o sentido daquele que esta em estado de sofrimento, de queda, de inautenticidade. Na fala e na escuta, o cliente poderá encontrar o espaço para viver, caminhar em sua autenticidade, possibilitando aquele que deseja se conhecer, se reencontrar, se conhecer. A psicoterapia é este lugar da procura. Diz Feijoo (2000): "Em psicoterapia, busca-se o sentido daquele que se apresenta em estado de queda, em inautenticidade: o interrogado. Quanto ao questionado, ou seja, este ser que se perde de si mesmo, aí se dá a procura. Interroga-se o próprio ente em seu ser; aqui se dá a estrutura escuta e fala, assegurando-se um modo propício de acesso ao ser". (p. 102)

Na hermenêutica heideggeriana é na fala que se busca o sentido do ser, é aí que o ser se mostra. Ela é assim considerada o instrumento fundamental na tarefa do psicólogo, para aquele que escuta. "O psicólogo vai atuar como um facilitador, cuja produção vai consistir em deixar aparecer o que se oculta, tal como um escultor - no mármore – deixa aparecer uma forma, constituindo a arte de desvelar o oculto". (POMPÉIA, 2000, p. 104).

Numa perspectiva fenomenológica – existencial que tem suas reflexões em Kierkeggard - Feijoo, refletindo sobre a angustia, afirma que esta se constitui como aspecto psíquico do humano, como tal, deveria ser estudado, diagnosticado e tratado pelo psicólogo; como também o desespero. Diz:

Refletindo sobre a angústia, Kierkeggard afirma que esta constitui-se como o aspecto psíquico do homem e, como tal, deveria ser estudada, diagnosticada e tratada pelo psicólogo. Refere-se também ao desespero como sendo uma doença do eu que, assim também caberia ao psicólogo – como as doenças do corpo cabem ao médico. A psicoterapia caberia, então, a preocupação com a angústia e suas derivações, e também o desespero, como doença do eu. O processo psicoterapêutico vai se dar de forma a restabelecer a relação do eu consigo próprio e, ao mesmo tempo, a relação desta relação com o mundo. "Trata-se de resgatar a fluidez que constitui o eu, nas relações eu-eu, eu-eu-mundo, eu-mundo" (FEIJOO, 2000, p.113).

Kierkeggard refere-se ao eu, como se constituindo em movimento. A escassez deste movimento, ou seja, a paralisia seria a perda do eu. A psicoterapia teria o papel de tirar este homem de sua paralisia, libertá-lo de sua estagnação, levando-o a tomar consciência de sua ausência de movimento. Diz

A psicoterapia ora proposta consistirá em mobilizar os paradoxos da existência, uma vez que aquele que está em desespero, no sentido de lutar para resolver as ambigüidades da existência, encontra-se paralisado. Debate-se contra si mesmo. Cabe, então, ao psicoterapeuta reconhecer a estagnação do cliente e, através do desvelamento, facilitar o reconhecimento da ausência de movimento do eu (FEIJOO, 2000, p.113).

Segundo esta mesma autora, uma proposta psicoterapêutica pautada nas reflexões de Kierkeggard e Heidegger, cabe ao terapeuta a tarefa de trazer à tona a expressão inautêntica e autêntica do cliente. "A psicologia com fundamento na fenomenologia e no existencialismo, afirma que ao psicoterapeuta cabe a tarefa de trazer à tona a expressão inautêntica e autêntica do cliente mobilizando-o de forma a possibilitar o reconhecer-se, bem com uma vez lançado em uma liberdade e sua responsabilidade, escolher suas possibilidades" (FEIJOO, 2000, p. 30).

Nesta mesma perspectiva, Rollo May nos adverte para não cairmos na tentação de vermos a psicoterapia, a escuta clínica como aquela que faz correções e é removedora de dificuldades para levar o sujeito a um estado de equilíbrio perfeito, uma personalidade completa, ideal, que não mais sofrerá conflitos. Também nos chama a atenção para não pensarmos que a psicoterapia nos levará a viver no paraíso, no Éden, onde todas as necessidades são satisfeitas e onde viveriam num estado de felicidade perfeita que não seria mais perturbado.

Certas pessoas tendem a pensar que o objetivo da psicoterapia é colocar a todos num jardim do Éden, onde todas as necessidades são satisfeita e onde elas vagam num estado de felicidade perfeita que não pode ser perturbada por conflitos de ordem psicológica ou moral (...) Em vez de qualquer unidade definitiva, o que desejamos é um ajustamento novo e construtivo das tensões. Não desejamos extinguir totalmente o conflito, que seria a estagnação. Desejamos, sim, transformar os conflitos destrutivos em conflitos construtivos". (ROLLO MAY, 2007, p. 36-37).

A visão popular, comum do termo conflito, foi e é por muitos, entendido como algo ruim, doença. Na perspectiva da psicologia, nem sempre o conflito vai ser sinal de "doença", de patologia. "Nem todo conflito é necessariamente neurótico; certa dose de conflito é normal e sadio (...) A frustração existencial em si mesma não é patológica nem patogênica. A preocupação ou mesmo o desespero da pessoa sobre se a sua vida vale a pena ser vivida em uma angústia existencial" (FRANK, 2000, p 94).

Assim podemos dizer que o fim da psicoterapia não é livrar o sujeito totalmente de tensões – pois as tensões são o que mobiliza o humano; mas ajuda as pessoas a serem elas mesmas.

2 ACONSELHAMENTO

Dá-me a palavra certa, na hora certa
e do jeito certo e pra pessoa certa.
Dá-me a cantiga certa, na hora certa
e do jeito certo e pra pessoa certa.
Palavra é como pedra preciosa sim,
quem sabe o valor cuida bem do que diz!
Palavra é como brasa... Queima até o fim,
quem sabe o que diz há de ser mais feliz!
quem sabe o que diz... Vai levar a palavra!

(Pe. Zezinho)

Santos (1982) fazendo uma distinção entre aconselhamento e psicoterapia, nos diz que aconselhar refere-se ao processo de indicar ou prescrever caminhos, direções e procedimentos para que a pessoa possa fazer julgamentos e formular suas decisões e opções; e psicoterapia seria o tratamento de pertubções de personalidade ou da conduta através de métodos e técnicas psicológicas.

Ainda para o mesmo autor comentando Rogers diz que: "O aconselhamento é um método de assistência psicológica destinado a restaurar no individuo suas condições de crescimento e de atualização, habilitando-o a perceber, sem distorções, a realidade que o cerca". (SANTOS, 1982, p. 7) Pode-se então dizer que nas palavras deste autor,aconselhar é possibilitar ao outro o espaço que favoreça o bom discernimento, sabendo que o cliente tem o potencial necessário.

O aconselhamento é conceituado como educativo, preventivo, de apoio, situacional, voltado para a solução de problemas. Lida com material consciente e enfatiza a normalidade, enquanto a psicoterapia é remediativa e reconstrutiva, voltada para a exploração em profundidade, ("...) enfatizando o neurótico e outros problemas emocionais" (SHOSTROM e BRAMMER, apud in, RUTH SCHEEFFER, p. 15).nestas palavras se percebe que a finalidade do aconselhamento é proporcionar ao indivíduo as condições favoráveis para que possa fazer suas próprias escolhas.

Da corrente clássica do aconselhamento, os autores Hahn e Maclean (1955), dão ênfase ao processo de diagnóstico e falam do aconselhamento na forma de prestar aos clientes alternativas para que o cliente possa bem discernir. Para estes autores ha casos em que os clientes precisam mesmo ser instruídos sobre suas decisões.

Para Rollo May (1976), a prática de ajudar pelo conselho, aconselhamento, orientação, simpatia, encorajamento, tanto informalmente (de amigo para amigo), quanto profissionalmente (sacerdote para fiel, doutor para paciente, professor para aluno) é antiqüíssima. A prática contemporânea de aconselhamento consiste em uma tentativa de tornar o ato de acolher mais eficiente, baseando-o no conhecimento do caráter humano, a sua construção, destruição e reconstrução, de maneira que possa ser auxiliado pelas diferentes abordagens da psicologia.

Segundo Clarkson (1994) e Hillman (1985) aconselhamento e psicoterapia não são o mesmo processo. Para Clarkson a diferença entre eles é histórica. O Aconselhamento enfatiza o que pertence ao aqui e agora. Isto pode ser alcançado através de cuidado e cognição. A Psicoterapia por outro lado toma o agora como uma história de vida, onde as coisas aprendidas então, são acontecimentos de agora, mas em contexto diferente.

Quanto ao Aconselhamento e suas diferenças da Psicoterapia, Hillman diz que: "Quem procura o aconselhamento, o faz para livrar-se da opressão de incidentes, para encontrar o que é verdadeiro, desvencilhando-se de banalidades que ele próprio reconhece como tais, mas das quais não consegue libertar-se por estar obsessivamente preso numa armadilha interior" (Hillman,1985, p. 23). Percebe-se nestas palavras que o trabalho do conselheiro ou orientador difere do psicólogo. Entendamos que o "difere" não significa que eles encontram-se em situações opostas, antagônicas, mas que cada um tem sua especificidade, que tem formas diferentes de acolher aos que sofrem. Diz-nos Hillman: "A missão do orientador (conselheiro) difere fundamentalmente daquela do analista e dos psicólogos clínicos e acadêmicos. E sua tradição remonta a Jesus, que curava e cuidava das almas de muitas maneiras: pregando, andando por aí, fazendo visitas, contando histórias, tocando com a mão, orando, compartilhando, chorando, sofrendo, morrendo..." (Hillman,1985, p. 23).

2.1 Aconselhamento e Psicoterapia

Para Lewis (1970), havia uma tendência a identificar aconselhamento com psicoterapia até a década de 40. Isto vai mudar com as publicações de Carl Rogers. Podia-se constatar que psicoterapia estava ligada de forma plena à psicanálise e pertencia ao domínio da medicina e à psicologia clínica. A doutrina de Rogers vai acabar com essa diferença entre aconselhamento e psicoterapia oferecendo pela primeira vez aos aconselhadores uma técnica não-psicanalítica, que podia ser facilmente utilizada por eles. A contribuição de Rogers foi muito importante ao considerar sinônimos aconselhamento e psicoterapia, porém continua até hoje dificuldade para diferenciar aconselhamento e psicoterapia. Para Patterson (1966) confirmando o que diz Rogers; fala que aconselhamento e psicoterapia é fruto de mera conveniências profissionais. Admite, porém que o aconselhamento se refere ao trabalho com clientes menos perturbados, sem o comprometimento na estrutura da personalidade.

O aconselhamento pretende ajudar o individuo a lidar satisfatoriamente com problemas reais; a solução para conflitos profundos da personalidade pertence ao âmbito da psicoterapia.

Wolberg (1961) diz que: "Psicoterapia é conceituada como tratamento, por meios psicológicos, de problemas de natureza emocional, no qual uma pessoa treinada estabelece deliberadamente uma relação profissional com o paciente, objetivando remover, modificar ou retardar sintomas existentes de padrões de comportamento perturbado, e de promover crescimento e desenvolvimento positivo da personalidade" (WOLBERG, apud in, RUTH SCHEEFFER, 1986, p. 15). Percebe-se dessa forma, que a psicoterapia tem uma estrutura, um caminho a ser seguido, ou seja, tem uma técnica; uma teoria que a fundamenta e um certo tempo. O que não quer dizer que tanto no aconselhamento como na psicoterapia tem uma busca de "ajudar" a pessoa para ela desenvolver suas potencialidades.

2.2 Aconselhamento Pastoral

Queremos de início chamar a atenção para o que estamos denominando como sendo Aconselhamento Pastoral. Ele tem uma amplitude maior de como é visto na Igreja Católica. O termo pastoral não quer significar a presença do bispo, quando por, exemplo, se trata de Visita Pastoral onde o Bispo tem esse encargo. Aconselhamento Pastoral aqui quer ser apenas a presença de um conselheiro na comunidade, junto aos paroquianos, seja ele sacerdote ou um religioso.

O Aconselhamento Pastoral surge como um desdobramento da Teologia Pastoral que é responsável pela práxis. A Teologia Pastoral articula o pensamento teológico com a realização prática desta teologia e é a que oferece subsídios para o trabalho do padre e leigos engajados na vida da Igreja, dos quais o Aconselhamento Pastoral é parte da sua vivência.

Ronaldo Sathler-Rosa (1996), nos diz o que seria e o que não seria Aconselhamento Pastoral: O Aconselhamento Pastoral é um processo no qual as pessoas se encontram para repartir lutas e esperanças. Este processo é iluminado pela esperança do Reino de Deus que restabelece a dignidade humana. Utiliza, como instrumentais necessários para a compreensão da psique humana e de suas interações sociais os recursos das ciências que estudam e servem à promoção da pessoa em sua integridade, de todas as pessoas e da família humana (SATHLER-ROSA, 1996, p. 66).

Nesta definição vemos que o Aconselhamento Pastoral não consiste em "dar conselhos", no sentido usual do termo, que denota a idéia de aconselhar as pessoas a fazerem isto ou aquilo, ou a não tomarem uma ou outra decisão. Aconselhamento Pastoral não se destina a resolver "problemas dos outros". As diversas situações-problemas das pessoas devem ser vistas como oportunidades de avanços em termos de capacidade para enfrentar e superar condições adversas. No Aconselhamento Pastoral não deve haver espaço para julgamento moral a respeito de atitudes ou comportamentos das pessoas; Jesus diz: "Quem não tiver pecado, atire a primeira pedra...". Aconselhamento Pastoral não é "exortação", "pregação" ou censura.

Quem nos apresenta uma nova forma de ver o Aconselhamento Pastoral, numa tentativa de aproximação entre os princípios da Teologia e os da psicologia de uma forma saudável e relevante é Collins (1984). Este autor propõe um diálogo entre psicologia e Teologia. O mesmo nos fala que o Aconselhamento Pastoral deve levar em consideração os conflitos íntimos dos aconselhandos, buscando estimular o desenvolvimento da personalidade: "Ajudar as pessoas, o aconselhamento busca estimular o desenvolvimento da personalidade; ajudar os indivíduos a enfrentarem mais eficazmente os problemas da vida, os conflitos íntimos e as emoções prejudiciais; prover encorajamento e orientação para aqueles que tenham perdido alguém querido ou estejam sofrendo uma decepção; e para assistir às pessoas cujo padrão de vida lhes cause frustração e infelicidade. Além disso, o conselheiro cristão busca levar o indíviduo a uma relação pessoal com Jesus Cristo e seu alvo é ajudar outros a se tornarem, primeiramente, discípulos de Cristo e depois discipularem outros" (COLLINS, 1984, p.12).

Percebemos que os motivos que levam as pessoas, os paroquianos ao ministro, ao padre não são os mesmos que as fariam procurar um analista ou psicoterapeuta. Que, além disto, a tarefa do ministro não é médica. Assim nos fala Hillman: "Ele não está lá para curar, no sentido médico do termo. Não se trata também de uma tarefa paternal; não lhe compete dar amor materno. Nem espiritual, no sentido de precisar saber ser sempre um modelo de perfeição e sabedoria. Como um pastor que encaminha almas para Deus, sua missão central é a dedicação à alma, a começar pela sua própria. Só o homem convicto dessa realidade poderá transmiti-la aos outros" (HILMAN, 1985, p. 46).

Uma outra característica do aconselhamento é a relação que existe entre este e a dimensão do infinito, o transcendental. Rollo May nos mostra essa proximidade entre a psicoterapia e a teologia. Para este autor lidar com o sofrimento psíquico é também fazer teologia. Diz ele: "A psicoterapia começa com o problema de como o individuo neurótico pode viver de modo eficaz. Daí surge o problema de encontrar sentido na vida do neurótico e nesse ponto a psicoterapia se descobre lidando com assuntos teológicos" (MAY, ROLLO, 1996, p. 178). Nestas palavras podemos perceber a relação e proximidade entre teologia e psicoterapia.

2.3 Um Pouco da História do Aconselhamento na vida dos Cristãos

O Aconselhamento na vida dos cristãos surge com o monaquismo[1] no Séc. III. Começa no Egito, Síria, Palestina e chega ao Ocidente. Este foi um movimento de homens e mulheres que buscaram viver de forma plena a experiência de Deus; buscavam viver o seguimento de Cristo como "mártires" e como testemunhas da fé.

Anselm Grün (1998) nos diz que a origem do monaquismo dá-se em 270 d.C; quando o jovem Antão aos vinte anos de idade, participando de uma liturgia, ouviu as palavras de Jesus: "Vai, vende tudo que tens, distribui o dinheiro aos pobres e terás um tesouro duradouro no céu; então vem e segue-me" (Mc, 10, 21). Esta palavra atinge o jovem e ele vende sua herança e parte para o deserto. Aí ele fará a experiência de Deus que lhe dará condições de ajudar também a outras pessoas; será capaz de orientar aos outros a realizarem a experiência de Deus e serem curados e purificados dos males que lhes afligiam: "O Senhor curou por meio dele, muitos daqueles que estavam presentes ali e sofriam no corpo, e purificou outros tantos dos demônios. O senhor dava a Antão uma graça através de suas palavras de maneira que consolava muitos aflitos e reconciliava entre si muitos que estavam em conflitos" (GRUN, 1998, p. 14).

O movimento monástico tem raízes nos círculos dos primeiros cristãos. A Igreja primitiva estava toda ela desligada do mundo que se poderia dizer que todas as pessoas que faziam parte do grupo dos cristãos, tinham uma vida de oração e contemplação e todos se assemelhavam aos monges. Porém não há consenso entre os cientistas da origem do monaquismo – ou seja, que não existe somente origem cristã. Os monges cristãos perseguiam com muita ansiedade a vontade de unir a Deus. Buscavam na Bíblia a fundamentação e inspiração para o radical seguimento a Jesus Cristo. Porém o conhecimento dos monges não era só bíblico, era também da filosofia grega e de outras religiões não cristãs.

Muitos pensamentos e práticas dos monges assemelham-se aos pitagóricos [...] Os monges assimilaram a sabedoria e a experiência que os ascetas anteriormente tinham reunido das mais diversas religiões e dos círculos filosóficos [...] desse modo eles adquiriram um grande conhecimento sobre a impressão de Deus. Os padres monásticos tornaram-se os psicólogos dessa época. Pois é a solidão que eles observavam rigorosamente seus pensamentos e seus sentimentos (id, p. 16).

Os monges procuravam conversar sobre seus pensamentos e sentimentos, ou seja, buscavam compreender, dar sentido a tudo que pensavam, experimentavam. O mesmo autor nos diz que esta forma de conversa com o seu Abbas, seu pai espiritual é o que vai dar origem à confissão monástica que não era Confissão dos pecados, mas era o acompanhamento espiritual, um diálogo terapêutico:

Eles conversavam sobre seus pensamentos e seus sentimentos, sobre seus hábitos e seu caminho para Deus. Foi desse modo que surgiu a assim chamada confissão monástica, na qual não se tratava em primeiro lugar do perdão dos pecados, mas o que estava em jogo era o acompanhamento espiritual, a direção da alma. Era uma forma originária do diálogo terapêutico do modo como tem sido desenvolvido pela psicologia moderna (GRUN, 1998, p. 17).

A capacidade de escutar na forma terapêutica parece ter sido muito marcante na vida de alguns monges que se tornaram importantes conselheiros; o aconselhamento era uma prática procurada, especialmente, entre os próprios monges. Um dos monges famosos na capacidade de aconselhar, orientar era conhecido por Evágrio Pôntico (345-399 dC), era um teólogo formado: "Iniciado no monaquismo por um patriarca, torna-se imediatamente um pai espiritual muito preocupado. E apesar de sempre de novo combatido, tornou-se ele um perito no tratamento dos pensamentos e dos sentimentos, na luta com os demônios. Muitos irmãos procuram-no e lhe pedem conselhos para suas lutas espirituais". (id, p. 19).

A sabedoria dos monges era um saber que buscava levar pessoas ao auto-conhecimento, ir ao encontro da própria condição humana, viver a sua existência sem fugir da realidade, ou seja, os monges tinham uma grande sabedoria, e buscavam aconselhar para que cada pessoa pudesse viver o aqui e agora. Nos padres do deserto, vem ao nosso encontro uma forma de piedade totalmente diferente. Aí se questiona, antes de tudo, acerca da sinceridade e da autenticidade de cada um. Um exemplo disso é a história de um ilustre teólogo que desejava muito falar com o Patriarca Poimen sobre a vida espiritual, sobre as coisas do céu e sobre a trindade: Poimen, porém não responde a nada disso, ficando tão-somente a escutar. Já irritado, o teólogo se prepara para deixar o padre monástico. Aí, um de seus companheiros se dirige a Poimen e lhe diz: "Pai, foi por tua causa que veio este grande homem, tão conhecido em sua terra. Por que não conversaste com ele? Em resposta, disse-lhe o ancião: ele está nas nuvens e fala das coisas espirituais. Eu sou aqui de baixo e falo coisas terrenas. Se ele me tivesse falado das paixões da alma, ter-lhe-ia respondido. Mas como fala sobre coisas espirituais, não sou capaz de compreendê-las" (id, p. 27).

Os monges orientavam e aconselhavam as pessoas a não viverem de forma dispersa, mas viver uma interioridade, e encontrar-se consigo mesmo, o que levaria à maturidade. Eles estavam cientes dos perigos da dispersão. Aconselhavam desta forma que é necessário termos metas claras, objetivas, definidas para serem realizadas, e não se perder nas várias preocupações do mundo.

Pai Macário o Grande, disse certa vez: é necessário que o monge, que está em sua cela, concentre seu entendimento longe de todo tipo de preocupações do mundo, sem vagabundear por ai atrás de vaidades. É necessário também que ele esteja direcionado para uma única meta que é a seguinte: orientar sempre de novo seu pensamento unicamente para Deus, não dispersar-se de modo a permitir que entre em seu coração algum tipo de dispersão mundana, nem mesmo pensamentos carnais, nem preocupações com os pais ou a consolo de sua família (GRUN, 1998, p. 40).

Eles aconselham a viver a vida assumindo a realidade, com suas dores, sofrimentos e conflitos – a vida é marcada por conflitos; não se deve achar que em um momento podemos descansar em paz – o conflito nos acompanhará por toda a vida. As tentações são manifestamente uma condição indispensável para entrar no céu. Eles vêem desta forma as tentações, os conflitos como sendo algo positivo – assim eles aconselham a encará-los: "Quem não tiver sido tentado não poderá entrar no reino do céu. Se suprimires a tentação, ninguém se salvará (...) se a árvore não é agitada pelo vento, ela não cresce nem cria raízes. O mesmo acontece também com os monges: se ele não é tentado e não suporta a tentação, ele não se torna homem". (id, p. 46). As tentações nos levam a entrar em contato com nossa condição humana, com nossa existência, do ser aí.

2.4 A Passagem do Aconselhamento para o Sacramento da Confissão.

Desde o início da igreja, ou seja, na antiga igreja, os cristãos no Pai Nosso já pediam perdão; diziam: "Perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos os que nos ofenderam". (Mt. 6, 12). Esta foi uma prática ensinada por Jesus que devia ser vivida e rezada entre os discípulos: se reconhecer pecador e pedir perdão, e perdoar aos nossos devedores.

2.4.1 O Termo Confissão

Normalmente as pessoas falam de confissão. Os Teólogos se referem ao "Sacramento da Penitência". A confissão como reconhecimento de nossos pecados, de nossas faltas é uma prática de muitas religiões, e não uma criação dos cristãos e da igreja. Anselm Grun (2006) citando Asmussen comenta: "A confissão como reconhecimento dos pecados não é uma invenção do cristianismo. Em quase todas as religiões é habitual que as pessoas, depois de sobrecarregar sua relação com Deus por meio dos pecados, "normalizem" essa relação com um reconhecimento das próprias faltas. Muitas religiões adotam a confissão pública. Ali onde a ordem da vida foi perturbada, as pessoas precisam recuperá-la por meio de um reconhecimento oficial de seus pecados. Já no Séc. II, no budismo, os monges praticavam a confissão monástica para manter puro o caminho para redenção" (ASMUSSEN, apud in, GRUN, 2006, p. 12). Nestas palavras se ver como em muitos povos e culturas, a prática e a necessidade de se falar sobre os sofrimentos e angústias é antiga e que era presente entre as pessoas.

O novo testamento fala em reconhecer os pecados diante de Deus (João. 1,9) e o reconhecimento recíproco: "Revelem seus pecados uns aos outros e rezem uns pelos outro, para que fiquem curados" (Tiago. 5,16).

Neste caso, não se fala aqui de uma confissão diante de um sacerdote, mas expressão mútua dos pecados, e ligada a uma oração. Para Grun, desde o começo a celebração eucarística estava ligada a um rito de penitência. Isso vai mudar na passagem do segundo para o terceiro século.

2.4.2 Alguns dados da história sobre a Confissão

A passagem da penitência como parte integrante da celebração eucarística e de toda oração para tornar-se um sacramento, acontece na transição do segundo para o terceiro século por causa de situações de pecados graves; assim nos fala Grun: "(...) somente a partir da transição do segundo para o terceiro século desenvolveu-se um procedimento penitencial para os pecadores saídos da comunidade eclesiástica por terem, por exemplo, renunciado a fé ou cometido um pecado público como assassinato ou rompimento de rituais de penitência para essa reintegração de cristãos. Foi o início do sacramento da penitência" (GRUN, 1998, p. 17), ou seja, até então se tratava de um aconselhamento e orientação espiritual e não a absolvição de pecados quando a confissão ganha o caráter sacramental.

A história da confissão foi marcada por duas fontes: a confissão de reconciliação, quando os cristãos depois que eram batizados e cometiam um pecado grave, eram aceitos novamente na comunidade eclesiástica. A segunda, chamada confissão de direção espiritual, tem sua origem no monacato – suas raízes estão em Clemente de Alexandria (+ cerca de 215) e Orígenes (+253/54). Clemente recomenda aos cristãos que procurem um diretor espiritual experiente e contem a ele todos os seus pecados. Esse rezaria por eles e se colocaria a seu lado por compaixão. Orígenes se refere às pessoas dotadas espiritualmente, que possuem o poder de perdoar os pecados. Quando possuem estes dotes espirituais, também passam a ser sacerdotes, mesmo quando não têm nenhum cargo eclesiástico (GRUN, 1998, p. 20).

Observa-se dessa forma que o aconselhamento, orientação espiritual é antiga e tem sua origem no espaço religioso, no espaço sagrado. Surgiram desta feita estes homens e mulheres que foram capazes de escutar, de ouvir a dor e o sofrimento humano. Grun defende que no princípio a direção espiritual não era um sacramento e a considera como uma conversa, uma escuta terapêutica: "A direção espiritual não era considerada um sacramento, mas um acompanhamento espiritual de que todo monge precisava para progredir em seu caminho. Podemos comparar essa direção espiritual com a conversa terapêutica" (id, p. 21). Para este mesmo autor, a forma atual de confissão não corresponde à intenção original da igreja: "A história do sacramento da penitência mostra que nossa forma atual de confissão como reconhecimento dos pecados no confessionário, seguida de um breve incentivo, não reflete a verdadeira intenção da Igreja" (id, p. 22). Para este autor, acontece infelizmente que muitas pessoas ao invés de se sentirem acolhidas, escutadas, saem magoadas; outras até "abusadas". Confessando eram interrogados e muitas vezes condenados.

Messner Feiern (apud in, Grun, 1998), nos mostra que na antiga igreja, havia a confissão leiga e a confissão do sacerdote e do intercessor, era de ser aquele que ajuda o outro a carregar sua culpa, de ser solidário com o outro, ser apoio no seu sofrimento, e que dessa forma a confirmação do perdão podia ser dada por um leigo. Esta concepção permanece também na Idade Média: "Na antiga Igreja, o papel do sacerdote na confissão era sobretudo o de um intercessor, que carregava com o pecador a sua culpa, solidariamente. Por isso, confessavam os pecados a um sacerdote. A confirmação do perdão poderia acontecer também por um leigo" (GRUN, 1998, p. 24).

Grun ressalta ainda que a confissão é leiga até 1521, pois é só na escolástica com S. Tomas de Aquino que a confissão passou a ser atribuída exclusivamente ao sacerdote: "Até o século XVI, a confissão leiga ainda era usual [...] Alberto Magno também define a confissão leiga como sacramento. Tomás de Aquino de "no mínimo" de algum modo sacramental". Somente "na teologia escolástica é que o poder de ouvir a confissão passou a ser atribuída exclusivamente ao sacerdote" (id, p. 25). Mostra-nos assim que nem sempre a confissão ou a atitude de buscar uma ajuda através do aconselhar-se, teve este caráter exclusivo da absolvição do pecado, da culpa, mas uma ajuda psicoterapêutica.

3 CONTRIBUIÇÕES POSSÍVEIS DA ESCUTA CLÍNICA PARA O ACONSELHAMENTO PASTORAL

O bem não irá governar o mundo no dia em que vencer o mal, mas no dia em que nosso amor ao bem não pretenda mais realizar-se como triunfo sobre o mal. Quando a paz vier, ela não será criada pelos que de si fizeram santos, mas pelos que com humildade aceitaram sua condição de pecadores.

(ANDREW BARD SCHMOOKLER, apud in GRÜN, 2003, p. 12)

Iniciaremos este capítulo com a célebre afirmação do doutor e teólogo da Igreja Católica S. Tomaz de Aquino:"Gratia supponit naturam et perficit eam" "a graça não substitui a natureza, mas a supõe". O máximo que a graça pode fazer é aperfeiçoar o que já existe. A graça supõe a natureza e a aperfeiçoa. Neste sentido, é fundamental que os sujeitos tenham um espaço para o desenvolvimento de suas potencialidades, ou melhor, para que alguém possa experimentar o amor das pessoas, o amor de Deus é necessário que tenha vivido em sua história a experiência de ter sido amado. O que percebemos é que muitas organizações psíquicas estão comprometidas seriamente. A literatura da psicologia nos mostra que crianças que foram abusadas, violentadas ou negligenciadas de alguma forma, dificilmente não desenvolverão problemas na afetividade. Dessa forma queremos colocar para reflexão a importância para os conselheiros religiosos em se apropriando dos conhecimentos da psicologia, poderem ajudar pessoas que tiveram danos no desenvolvimento de sua personalidade, na sua organização psíquica à viverem plenamente sua relação com os outros e com Deus.

Buscaremos mostrar as contribuições possíveis da escuta clínica para o aconselhamento pastoral; e como tal modalidade ajudaria àqueles e aquelas que lidam com pessoas no papel de conselheiros.

Começamos por perceber que há uma convergência para o objeto de trabalho, ou seja, a pessoa humana; e quanto aos temas que estão voltados para o sofrimento, a dor, a culpa. Tanto a psicologia quanto a religião buscam ser suportes, apoio no sofrimento. O que parece que há é uma forma diferenciada de se lidar com cada uma. Rollo May nos mostra essa proximidade entre a psicoterapia e a teologia. Para este autor lidar com o sofrimento psíquico é também fazer teologia. Diz ele:

"A psicoterapia começa com o problema de como o individuo neurótico pode viver de modo eficaz. Daí surge o problema de encontrar sentido na vida do neurótico e nesse ponto a psicoterapia se descobre lidando com assuntos teológicos" (MAY, ROLLO, 1996, p. 178).

Nestas palavras podemos perceber a relação e proximidade entre teologia e psicoterapia. É importante para que aconteça essa contribuição, que nos desarmemos de nossos pré-julgamentos. Muitas vezes por não se fazer bem esta distinção na maneira da psicologia e da religião lidar com os sofrimentos e a dor humana, se formou certo antagonismo; de um lado alguns setores da Igreja criticam a psicologia e por outro alguns psicólogos condenam a religião. Percebe-se que o pré-conceito existente em ambas as partes e está calcado no desconhecimento de suas intervenções e intercessões. Comecemos com o tema da culpa.

3.1 Culpa; pecado ou conflito.

A culpa é um dos temas centrais das religiões. Para os cristãos culpa e pecado ocupam lugar central.

Jacob afirma que a pessoa se torna culpada quando se recusa a olhar a própria verdade. Mas, para ele existe uma culpa quase necessária, da qual não se pode esquivar-se. Ou seja, a psicologia não pode deixar de perceber a importância dessa temática do pecado para o crescimento da pessoa. Diz ele:

Só uma pessoa muito ingênua e inconsciente pode imaginar que é capaz de se esquivar do pecado. A psicologia não pode mais tolerar essas ilusões infantis; precisa ouvir a verdade e constatar que a inconsciência não é apenas uma desculpa, mas até um dos pecados mais graves. A justiça humana pode libertá-la do castigo, mas a natureza não se preocupa se a pessoa tem ou não consciência de sua culpa. (Jacob, apud in, Grun, 1998, p. 30).

Nestas palavras se vê que a culpa pode nos ajudar no crescimento psicológico e espiritual. Por outro lado, também a psicologia nos adverte para não entender o pecado como sendo algo exclusivamente como transgressão de mandamentos; ou por pura maldade, prazer em fazer o mal. Muitas vezes os conselheiros caem em julgamentos do tipo: "Que pessoa ruim, má..."[2]. Görres nos diz:

Geralmente, o mal não é uma maldade praticada alegremente de todo coração, não é um gozo sem arrependimento, mas uma reação sofrida, torturante, forçada e viciosa, estimulada pelo medo e pelo instinto, por causa de mágoas e privações insuportáveis (Görres, apud in, Grun, id, p. 32).

A psicologia nos alerta para esse tipo de julgamento contra as pessoas. Diz que para o desenvolvimento psíquico, o perdão é fundamental. Percebemos que hoje existe certa dificuldade das pessoas em confessar, contar seus segredos e sofrimentos. Talvez receiem em serem julgados e condenados por aqueles que poderiam lhes possibilitar serem escutados. Com relação aos sacerdotes, seja por causa das pregações de alguns que estão carregadas de moralismos, pré-conceitos. Neste sentido é difícil os penitentes encontrarem ali alguém que o possa acolher, lhe escutar sem julgamentos ou condenação.

Nesta perspectiva, Wachinger afirma que:

Nessa conversa posso ficar sabendo que nada mais me será do outro, porque não tenho mais nada a esconder. Percebo que o outro ou a outra olha para minha culpa e não se assusta, não é tomado pelo horror nem tenta agir em represália, mas coloca-se ao meu lado como ser humano, a quem nada do que é humano é alheio (WACHINGER, apud in, GRÜN, p. 35).

Nestas palavras percebe-se a importância de levar a sério os sentimentos e sofrimento do outro; ele nos confiou o que ele tem de mais particular e profundo.

Encontramos na clínica e, igualmente, no exercício pastoral pessoas com sentimentos de culpa. Quando na infância e no decorrer da vida; as feridas não são curadas, isto é, deixamos gestalts abertas; ficamos sujeitos a ferir os outros ou a nos ferir no momento presente. A psicologia nos ajudaria a olhar de frente estas mágoas do passado que estão no presente. A gestalt-terapia nos fala disso nas palavras de Hugo Rodrigues:

Na medida que ficamos fiéis à noção descritiva, é inevitável chegarmos à conclusão que todo passado e todo o futuro se redunda a um momento: o presente. Não temos como agir no passado – mas somente nos ressentir ou nos vangloriar no presente (RODRIGUES, 2000, p. 58).

Nestas palavras percebe-se que trazemos gestalts abertas que precisam ser cuidadas para assim poder compreender e sair dos nossos ressentimentos. Neste momento seria adequado para o aconselhador, neste caso os padres de maneira geral; ter conhecimento de algumas teorias da psicologia; pois muitas vezes por trás desses conflitos e dificuldade em perdoar existe uma historia de revolta na infância; e gestalts inacabadas, não fechadas resultantes de vivências e contatos pouco satisfatórios e mal sucedidos.

A psicologia nos ajuda a entender que muitas de nossas atitudes são partes de nossa história de infância. Para Freud, o mal surge da excessiva negação das necessidades instintivas. A criança que é tratada injustamente transfere para outras pessoas, quando adultas, o rancor e o desejo de vingança, que a rigor estão dirigidos contra seus pais. O adulto vinga-se destas pessoas fazendo-lhes mal. Para John Bradshaw (apud, GRUN, 1998) o mal nasce das feridas na infância. Assim fica mais difícil de superar estes sentimentos de ódio sem um trabalho mais profundo, ou melhor, até o caso de uma psicoterapia.

Existem pessoas também que são muito moralistas que, julgam sempre os outros, condenam. Acontece que estas podem ter sido formadas em ambientes que lhe deram uma educação que desenvolveram um superego muito rigoroso. Grün nos diz: "A tarefa da psicologia, e também de um bom conselheiro espiritual, consiste em distinguir os sentimentos de culpa da culpa verdadeira" (GRÜN, p. 28). Aqui se percebe a importância, a contribuição que a psicologia daria para ser suporte para uma boa distinção entre uma culpa patológica, no caso neurótica e uma culpa como a consciência dolorosa. É disso que nos fala Alejandro (2004), dizendo que existe esta culpa persecutória e neurótica que se encontra na terapia e a culpa como a dor de consciência que é o resultado de nossas contradições internas, nossos conflitos e tendências internas.

A psicologia constata hoje a existência de sentimentos de culpa e a culpa verdadeira. Muitos se sentem culpados por ter um superego que o acusa, por terem internalizado tantas regras e "valores" dos pais. A Igreja também teve responsabilidade para criar nas pessoas esses superegos; quando pregou e prega a religião do medo, quando esqueceu de pregar o reino de Deus, o céu e pregou o inferno onde "tudo" é pecado, e para onde vão todos que pequem. Muitos desses sentimentos não mostram uma culpa real. Um jovem que foi sempre responsabilizado para cuidar da família, quando não consegue, sentirá um grande sentimento de culpa; outro que aprendeu que não podemos sentir raiva de ninguém, quando tem esse sentimento fica se culpando e simplesmente não entra em contato com estes estados de agressão interior. Aqui não se está dizendo que algo é bom ou ruim, mas que precisamos desse contato com nossos sentimentos para saber o que está acontecendo conosco e então poder nos libertar ou cuidar desses estados agressivos sem entrarmos em julgamento de valor. Grün comentando C. G. Jung, diz que:

A culpa consiste numa dissociação: eu me recuso a me ver e a me aceitar como sou. O que é desagradável eu reprimo, separo. Para Jung, a culpa não é algo em que necessariamente a pessoa incorre; tem muito mais a ver com o livre arbítrio. (GRÜN, p. 29).

Os psicólogos não desejam negar, abolir o pecado; a culpa. Pelo contrário, ela nos ajudaria a não só ter consciência deles; mais ainda que esta consciência nos ajuda no crescimento psico-afetivo de nós humanos. Hoje se fala cada vez mais dessa falta da consciência de culpa, de que nada é pecado. A própria Igreja chama a atenção. Para a psicologia, a condição de pecador seria uma vida inautêntica. Alejandro nos fala que a função do pecado ou sua consciência, seria a de manter a relação entre o consciente e inconsciente, de forma dolorosa; ou seja, a consciência de ter errado me causa um sofrimento; em conflito interior.

Para que a culpa exista deve haver certo grau de reconhecimento de ter errado. Para isso teríamos que fazer um trabalho profundo sobre nossas motivações, nossas decisões. A maioria das pessoas não chega tão profundo. Permanecemos na superficialidade e, portanto, existe um certo grau de irresponsabilidade frente às nossas motivações mais profundas.

Uma grande contribuição daria a psicologia nesse sentido, pois ela nos possibilita entrar em contato com as nossas motivações mais profundas; ela teria essa função de ampliar nossa consciência de erro, de culpa. Alejandro nos diz que é nessa ampliação que podemos corrigir e repará-lo: "Quem reconhece seu erro não apenas pode – se é possível – corrigi-lo ou repará-lo, mas pode arrepender-se, ampliar sua consciência". (ALEJANDRO, 2004, p. 45).

Nestas palavras se percebe a importância desse sentimento de culpa; que ele é saudável e que não seria desejável eliminá-lo; pois é através dele que chegamos ao auto-conhecimento para que aconteça o arrependimento, o perdão. Para a gestalt-terapia, é através do contato, desse enfrentamento que podemos crescer; que apesar da dor psíquica e emocional, que provêm o crescimento e amadurecimento do individuo.

É através dessa consciência de pecadores que podemos também perdoar os outros, o próprio Jesus é quem adverte dessa condição quando diz: "Quem não tiver pecado atire a primeira pedra" (Jô. 8,7). Ainda: "Perdoa-nos os nossos pecados, pois nós também perdoamos a todos aqueles que nos devem" (Lc, 11, 4). Em outra passagem do evangelho sobre o perdão, Pedro pergunta quantas vezes devemos perdoar, sete vezes? Jesus respondeu: "Não lhe digo que até sete vezes, mas setenta vezes sete" (Mt, 18, 22). Mostrando assim que não existe ninguém sem pecado, e que não se tem limite em dar perdão, mas perdoar sempre. Reconhecendo-se pecador, seremos capazes de perdoar também os outros. Quando não temos esta capacidade de se ver pecador, de um ser finito, de carne e osso, então caímos na tentação do que a psicologia chama de onipotência; e a religião de soberba. Nossa soberba representa nossa infinita capacidade de julgar os outros, de nos colocarmos acima dos demais. Um bom exemplo dessa forma de comportamento foi o de Hitler que quis criar um mundo só de uma raça pura: a alemã. Ele ficou preso na imagem ideal de um super-homem e assim projetou nos outros esta imagem, e combateu todos aqueles que não tinham esta imagem idealizada. Os Judeus foram as vítimas.

Percebe-se diante do exposto o papel da terapia como possibilidade de nos conhecermos mais profundamente, podermos nos olhar de frente. Isso nos ajudaria a não exigir ou condenar nos demais aquilo que é nosso. Jesus sempre condenou, repudiou esse comportamento. Em sua época, era típico dos fariseus, grupo que se denominava raça pura; raça eleita e cumpridora das leis divinas, se considerarem os santos. Os outros eram considerados os pecadores, impuros. Jesus é taxativo com todo tipo de atitude puritana, com quem busca parecer santo, mas que vivem de aparência, com máscaras. Diz Jesus:

Ai de vocês, doutores da Lei e fariseus hipócritas! Vocês limpam o copo e o prato por fora, mas por dentro vocês estão cheios de desejos de roubo e cobiça [...] limpa primeiro o copo por dentro, e assim o lado de fora também ficará limpo [...] vocês são como sepulcros caiados: por fora parecem bonitos, mas por dentro estão cheios de ossos e podridão[...] (Mt, 23, 25-26). Por fora são como cordeiros, mas por dentro são lobos.

Nestas palavras de Jesus, vemos a importância de mergulhar de forma profunda nas nossas mazelas antes de termos atitudes de pré-conceitos, arrogância e de nos acharmos perfeitos e santos diante dos outros. Pode-se dizer dessa forma que, o reconhecimento de nossos pecados, fraquezas e erros realizam modificações de nosso comportamento, uma aprendizagem, um evolução para a humildade e a flexibilidade. Alejandro nos diz que para a gestalt-terapia, o crescimento acontece do contato que se produz na fronteira entre o ser e o não-ser, entre o ego e o não ego. A humildade de se reconhecer pecador, imperfeito é algo saudável para a psicologia; é o que Adler chama de coragem da imperfeição, isso quer dizer ser capaz de falhar. Esta talvez seja um dos grandes limites para os aconselhadores religiosos: aceitarem sua condição humana, da finitude.

3.2 Limites psicológicos para um Aconselhador Religioso.

Sabe-se que, para um profissional se tornar competente no seu trabalho, seja de qualquer área, é necessário que o mesmo tenha uma formação adequada naquilo que vai exercer; que se aproprie das teorias e técnicas que a profissão exige. Aqui talvez esteja um dos grandes desafios de nossos conselheiros religiosos: não disporem de formação adequada, ou seja, de terem uma formação básica para atuarem como conselheiros. Isso significa não só domínio de algumas teorias, mas também de estarem dispostos a se submeterem a uma psicoterapia – compreender a si mesmo é caminho essencial à compreensão do outro.

Por isso na Igreja antiga havia uma direção espiritual que estaria dentro dos padrões do que hoje conhecemos: a psicoterapia. Como já citamos no capítulo anterior quando Grün nos diz: "A direção espiritual não era considerada um sacramento, mas um acompanhamento espiritual de que todo monge precisava para progredir em seu caminho. Podemos comparar essa direção espiritual com a conversa terapêutica" (Grün, 2006 p. 21). Hoje não existe uma direção espiritual nos modos passados. A igreja se distanciou ao longo da história desse recurso da escuta. Luiz Cancello é também de mesma opinião; confirma e comunga com este pensamento quando nos diz:

Desde o início dos tempos um homem sentou-se em frente a outro para contar suas angustias, expor seus medos, seus problemas. Durante milênios a função de escuta foi assumida pelos diversos tipos de sacerdotes, que tinham no sagrado sua legitimidade. Com o advento dos tempos modernos e a dessacralização do mundo, tal posição transferiu-se para os médicos, que mais tarde compartilharam-na com os psicólogos" (CANCELLO, 2007. p. 11-12).

Talvez nesse contexto; a psicoterapia seria muito bem indicada em alguns casos. Existem por parte de uma grande maioria dos padres, receios de se submeterem a esse processo; receiam fazerem psicoterapia para se conhecerem; por possuírem certo preconceito com a psicologia ou orgulho. Também por estarem dentro de uma moral muitas vezes fechada, de enquadre.

A formação dos futuros sacerdotes que serão também os conselheiros de seus paroquianos; pelo que conhecemos e pelas experiências vividas e contadas por alguns dos que estudaram nos seminários do Brasil, a formação em ciências humanas, sociais e particularmente em psicologia, é pouco profunda e em alguns seminários é inexistentente. É verdade que a Igreja tem uma preocupação com a formação humano-afetiva, mas em muitas situações fica só na preocupação ou em diretrizes e regulamentos de seminários, ou seja, fica apenas no papel.

Existe uma grande dificuldade em tratar de assuntos que digam respeito à afetividade, e à sexualidade. Sexualidade aqui, no sentido da energia sexual; do desejo entre homem e mulher, ou seja, como trabalhar melhor a questão do celibato entre os seminaristas.No documento da CNBB (Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil), para a Formação dos Presbíteros da Igreja no Brasil, chama para esta preocupação com a formação psicológica. Diz o documento: "Os formadores a acompanhem diligentemente, em um clima de abertura e confiança mútua, valendo-se oportunamente da colaboração de pedagogos, psicólogos e outros especialistas de comprovada idoneidade, competência e orientação cristã" (Doc. 55 CNBB, No113).

Há uma boa vontade, isso não se pode negar, mas esbarra quando se busca definir concretamente os passos a serem dados. Começa-se só a titulo de ilustração quando se vai definir sobre o que vem a ser a idoneidade. Quem é idôneo? Mesmo com alguns critérios da orientação da Igreja, que são verdadeiros na prática não é fácil. Quem vai dizer quem é idôneo? Que critérios serão usados?. Talvez a título de sugestão, a via possível para não errarmos tanto, é a via do diálogo. Pode-se dizer que é um caminho difícil e árduo, pois temos que nos desfazer de nossas cartilhas, receitas e verdades; mas este tem sido o caminho que tem dado mais certo.

Seria cada bispo juntamente com um grupo de padres, escolhido pelo mesmo que formariam uma equipe para acompanhar na formação os seminaristas? Nesta equipe haveria espaço para leigos especializados? Sem esquecer sempre a dificuldade que alguns setores da Igreja têm para com as ciências; com seus pré-conceitos com a psicologia e outras ciências afins. Diz ainda o mesmo documento: "É tarefa da Equipe de Formação ajudar cada um a discernir não só se é chamado por Deus, mas se tem condições psicológicas para assumir o que o presbiterato supõe como base humana. Em certos casos, os formadores deverão ajudar o candidato a procurar orientação psicológica especializada" (Idem, No 120). Percebe-se aqui dois problemas: primeiro quem vai identificar a necessidade psicológica; segundo em que caso, que situação. Discernir se há um chamado de Deus, é importante. Isto significa que o seminarista dispõe de algumas qualidades fundamentais para o ser padre. A Igreja identifica este chamado nas ações dos candidatos: se ele é solidário com as pessoas mais pobres; gosta de rezar; gosta da Eucaristia; se é sinal de união com as pessoas; se tem integridade. Existem casos gritantes em que formandos precisam de ajuda psicológica especializada e não têm. Por algumas razões: econômicas; por não parecer sério aos olhos dos formadores; por formadores também despreparados; por o formando saber disfarçar muito bem; por um certo corporativismo entre formandos e formadores. Dentro de tudo isso está ainda o modelo de Igreja que prevalece: hierárquico, ministerial, missionária, profética.

Só a título de ilustração seria dizer que numa estrutura ou modelo hierárquico, alguém que seja crítico; que tenha uma postura mais aberta às questões sociais, que não esteja muito preocupado com a boa aparência ou vestir-se dentro das roupas eclesiásticas, este não teria vocação; do contrário, ser bonzinho, atender sempre as autoridades, ser subserviente, este sim tem vocação; mesmo que se perceba nele imaturidade, falta de identidade e de senso crítico. Usando uma analogia seria: um comunista no mundo capitalista seria tratado como desajustado, desequilibrado; da mesma forma um capitalista no mundo comunista.

Um outro limite seria certa resistência; ou a falta de condições para fazerem psicoterapia. Ora, isso é uma condição básica para todos aqueles que lidam com os sofrimentos psicológicos das pessoas que, têm como missão ouvir o outro. No caso de alguém querer se tornar um psicoterapeuta, é sugerido que faça também psicoterapia. Para ser padre, sabemos que isto não é condição, obrigação, norma. Mas pelo brilhante ministério que exercem, e se percebendo que, atualmente a formação nos Seminários não consegue mais suprir as lacunas com que chegam os futuros candidatos, ou seja, lacunas na dimensão afetiva, dificuldades nos relacionamento com pessoas do mesmo sexo ou sexo diferentes; com relação a autoridade; aos limites; com espírito de ambição; de consumismo; anti-sociais; pré-conceitos com as minorias. Não seria mal nenhum sugerir para os mesmo enriquecer sua escuta junto aos paroquianos, se beneficiar de uma psicoterapia? Mesmo que este já tenha uma pequena experiência na vida de seminários e no contato com o povo. Diria que a psicoterapia seria um bom suporte, pois a mesma ajudaria ainda mais o padre no seu auto-conhecimento e para o seu ministério. A escuta é um dos serviços do padre.

Em um dos documentos da Igreja do Brasil para a formação filosófica e teologia dos futuros padres diz: "Cultivem-se, em geral, nos alunos as convenientes aptidões com os homens, como são a capacidade de ouvir os outros e de abrir a própria alma em espírito de caridade aos vários aspectos das relações humanas" (OT, 19, apud in, CNBB No 83, p. 28). Vemos nestas palavras o convite a desenvolver-se a capacidade de escutar o outro, sem julgamentos, sem pré-conceitos, ou seja, abrir o coração e a alma. A confissão é um dos sacramentos da Igreja e obrigação para os padres. É recomendável ao futuro psicoterapeuta submeter-se à psicoterapia. Rollo May nos mostra a importância do aconselhador fazer psicoterapia. Diz ele:

Fora de qualquer questionamento, seria uma medida sábia se o aconselhador fosse analisado por um psicoterapeuta. Essa analise de sua personalidade frente a uma outra proporcionar-lhe-ia uma compreensão valiosíssima de si mesmo, o que o auxiliaria enormemente no aconselhamento dos outros com eficiência (May, 1996, p. 141).

Nestas palavras se mostra a importância e a necessidade de auto-conhecimento para podermos aconselhar os outros. Isto evitaria cair no perigo que Richard (1992), religioso Franciscano, nos fala que pessoas religiosas estão sempre prontas a acorrer com conclusões pré-fabricadas, citações bíblicas e dogmas, e se esquecem de olhar o momento presente. São pessoas que caem sempre no vício de controlar a vida a partir de uma torre imaginária que se encontra em sua cabeça. Querem que os outros vivam suas próprias neuroses e compulsões. O mesmo autor nos diz ainda:

Muitas pessoas de Igreja levantam-se levianamente em nome de Deus. Disso podemos inferir na maioria das vezes que delas não brota outra coisa a não ser seu temperamento, seus preconceitos e aquilo que já conhecem. É uma das razões porque o cristianismo perdeu tanta credibilidade. Muitos contemporâneos nossos já não conseguem levá-lo a sério. Convivem com pessoas religiosas que não são autênticas e que, ainda por cima, agem egoisticamente porque perseguem abertamente seus próprios objetivos, mas cultivando um jargão piedoso como se visassem unicamente a Deus e ao seu reino (RICHARD, 1992, p. 27).

Vemos nestas palavras a importância da psicoterapia que nos ajudaria a conhecer nossas motivações mais profundas; de nos conhecermos e saber que muito daquilo que fazemos, pensamos ser a vontade de Jesus ou de Deus, não passa da nossa própria vontade, desejo ou medos. A psicanálise aponta que a religião por si mesma intensifica a neurose; que é o meio pelo qual o homem busca proteção e segurança num mundo que o amedronta; recuando nas decepções da vida. Daí se coloca num estado de dependência e proteção nas mãos de Deus. Pode-se dizer que existe muito de verdade em tudo isso, muitas pessoas fazem da religião um meio para se apoiarem num estado intermediário de desenvolvimento, construindo para si um ninho de falsa segurança e proteção.

Um outro limite para o aconselhador religioso é que ele se encontra numa certa inclinação "profissional" de julgar. Como já falamos anteriormente, é o próprio Jesus que nos adverte para não julgarmos e nem condenar ninguém. Diz ele em outras passagens: "Não julgueis e não sereis julgados, não condeneis e não sereis condenados" (Mt 7,1). O Batismo de Jesus manifesta sua atitude de humildade e misericórdia. Mesmo diante da insistência de João Batista para não lhe batizar, Jesus insiste: "Jesus foi da Galiléia para o rio Jordão, a fim de se encontrar com João e ser batizado por ele. Mas João procurava impedi-lo, dizendo: "Sou eu que devo ser batizado por ti, e tu vens a mim"?" (Mt, 3, 13-14). Desta forma Ele se coloca na fila dos pecadores se tornando um com os outros e se faz solidário. Mas mesmo assim há uma tendência, uma inclinação nestes aconselhadores a julgar. Segundo Jung a razão que muitas pessoas têm receio para se confessarem, e vão em busca de um psicólogo ou psiquiatra, é o medo de serem condenadas pelo ministro. Diz ele: "Ao emitir o julgamento, ele nunca está em contato com o outro..., Somente obtemos contato com outra pessoa através de uma atitude de objetividade sem preconceitos" (JUNG, apud in, MAY, 1996, p. 150).

O que vai ajudar ao aconselhador a estimar e apreciar as outras pessoas, sem fazer julgamento e condenação – seria o caminho da empatia. A empatia seria a nossa capacidade de escutar o outro na sua própria língua, lugar; ou seja, um identificar-se sem se misturar com o mesmo. Adler aponta que: "A empatia ocorre no momento em que o ser humano fala com outro. É impossível compreender outro indivíduo se não for possível, ao mesmo tempo, identificar-se com ele [...] Capacidade de agir e sentir como se fossemos outra pessoa" (ADLER, apud in, ROLLO MAY, idem, p. 69). Nestas palavras vemos que a empatia nos ajuda a compreender o outro a partir de seu mundo; sem se misturar com ele.

Um outro limite é a ambição exagerada. Estes conselheiros religiosos no dizer de Rollo (1996), estão muito preocupados consigo mesmos. Muitas vezes sua preocupação com o corre-corre, não passa de simplesmente querer mostrar sua indispensabilidade e importância de que o mundo depende deles. Nos tempos de estudo e juventude nos seminários, tem-se estes sentimentos de que se pode salvar o mundo. Porém, isto é natural para a juventude, não para pessoas adultas. É importante que tenhamos um certo grau de ambição: querer ver algumas coisas acontecerem, porém quando exagerada, ou seja, quando percebemos que ele trabalha sob tensão constante, comecemos a suspeitar de que o motivo é a imposição de seu ego. Diz o mesmo autor: "Onde existe uma grande tensão, um medo de falhar em pequenas coisas e uma grande preocupação com detalhes, suspeitamos de que também exista uma forte ambição. De fato, os assistentes religiosos típicos possuem uma ambição exagerada" (ROLLO, 1996, p. 144). O autor nos ajuda nestas palavras a distinguirmos bem se o assistente religioso está levando Jesus ou ele mesmo, pregando reino de Deus ou levando ele mesmo e sua ambição.

O padre Zezinho adverte que muitos padres não apresentam mais Jesus, mas apresentam-se eles mesmos. Diz ele: "Em geral, aparece mais o pregador do que a pregação, porque estamos na era da afirmação do "eu" e na era do "apresentador". Nos programas de televisão, quem brilha é sempre o apresentador, raramente o apresentado" (OLIVEIRA, 2004, p.25). Rollo May nos adverte ainda para não usarmos de certas prerrogativas para nos intitularmos de "Homens Santos". Diz ele: "Aquele que se auto-intitula "homem Santo" está meramente utilizando sua vocação sagrada como um manto para encobrir os esforços de seu ego" (idem, p. 145). Nestas palavras percebemos a importância para todos os conselheiros religiosos, aqueles que têm o papel; o ministério de trabalhar com o sagrado, com o divino, deveriam buscar conhecer suas convicções mais profundas, suas motivações, ou seja, serem ajudados para poderem exercer melhor sua missão. Ora, para sermos bons conselheiros, se requer humildade, se colocar numa postura de empatia. Neste caso, uma postura de "santidade", impede que haja um diálogo onde se respeitam as partes envolvidas, a liberdade de escolha e o respeito pelo outro. Ambição é sinônimo de imposição – imponho ao outro o que trago como projeto ambicionado; que muitas vezes quando fala em "transformar" os outros e o mundo, ao Reino de Deus, é muitas vezes transforma os outros naquilo que acredito, naquilo que ambiciono.

Este autor nos convida a não utilizarmos o sagrado, Deus em benefício próprio, tirando proveito, ou para nos refugiarmos de nossa realidade, daquilo que somos. Ele ainda nos mostra que a ambição exagerada ou neurótica; estaria ligada a um sentimento de inferioridade. E esse tipo de sentimento encontra-se com muita freqüência em pessoas religiosas. Diz ele:

A ambição neurótica está ligada a algum sentimento profundo de inferioridade. E, na verdade encontramos provas desse sentimento de inferioridade em nosso assistente religioso típico [...] Seja qual for a origem da inferioridade, a ambição exagerada que dela advém tomará uma forma moral nesta pessoa religiosa. Apresentará um "impulso para estar por cima" moralmente, e sentirá uma culpa especial quando não estiver por cima. A atitude do tipo "mais-sagrado-que-vós" não é exceção. É simplesmente o complexo de superioridade, que é o reverso do sentimento de inferioridade" (idem, p. 148-149).

Nestas palavras o que se pode constatar é que muitas vezes estes conselheiros padres fazem pregações carregadas com tendência a moralismos, julgamentos e condenações; são as exigências do seu próprio eu, falam das suas próprias necessidades, e nos adverte para não nos deixarmos iludir. Há uma passagem interessante na Bíblia que nos diz um pouco disso. Diz: "O vosso pensamento não são os meus pensamentos [...]"(Is, 55, 8ss). Nesta citação, Deus nos convida através do profeta Isaias a não confundir seus pensamentos e vontades nossas com a Dele. Esta confusão já aconteceu na historia da Igreja católica no movimento denominado de Cruzadas; onde muitos inocentes foram queimados. Também em outras religiões quando seus líderes convocam em nome de Deus os fiéis para guerras "santas". Isto aconteceu recentemente quando Sadã e Bush, usaram o nome de Deus para justificar a guerra. Richard nos adverte para não nos deixarmos iludir quando nos diz:

Tomás de Aquino e muitos escolásticos disseram que as pessoas escolhem algo que lhes parece bom. Ninguém pratica voluntariamente o mal. Cada qual montou um sistema que explica por que é certo e bom o que fazemos [...] Precisamos de ajuda para desmascarar o nosso falso eu e nos distanciarmos das ilusões (RICHARD, 1992, p. 37).

Desta maneira, o autor nos convida para estarmos atentos em nossas atitudes e comportamentos para poder discernir o que é meu e o que realmente é de Deus ou dos outros.

Por último, pode-se dizer que existe, para estes conselheiros religiosos, o limite e o perigo de ao invés de aconselhar, darem conselhos. Isto por razões práticas, por terem uma moral para ser transmitida, eles estão quase sempre apresentando aquilo que têm como melhor maneira de ser e viver; por que os paroquianos lhe procuram para que digam o que devem fazer em determinada situação e por uma variada demanda, isto é, se pode rezar deitada, se coloca o filho para estudar nessa ou naquela escola, se os filhos podem ou não andar com fulano, se é pecado jogar baralho, dominó. São muitas situações que não se trata de estrutura de personalidade. Não é fácil para os mesmos não cair na tentação de darem conselhos em situações que se requer uma postura de aconselhador; fazer esta distinção entre aconselhar e dar conselhos. Muitas vezes se acham dando conselhos de como o outro, no caso o aconselhando deve fazer. Rollo May nos ajuda nesta distinção quando diz: "O Aconselhamento genuíno opera-se numa esfera muito mais profunda e suas conclusões são sempre o resultado do trabalho conjunto de duas personalidades num mesmo nível" (MAY, ROLLO, 1996, p. 125).

3.3 Que postura seria necessária para ser um "bom" Aconselhador?

Pode-se dizer que um das mais importantes posturas para acontecer um verdadeiro aconselhamento, é a empatia. Para Rollo May, a empatia significa "um estado de identificação mais profundo de personalidades em que uma pessoa se sente tão dentro da outra que chega a perder temporariamente a sua própria identidade" (MAY, ROLLO, 1996, p. 65). Nestas palavras percebe-se que é fundamental para haver aconselhamento, termos que está aí com o outro, junto a ele; fazendo-se presente com o outro; e não numa postura de quem se coloca à distância para não se contaminar com o que o outro é ou traz como angústia, sofrimento; nem se tornando igual ao outro. É nessa busca de aproximação eidentificação que um verdadeiro entendimento entre as pessoas pode ocorrer. Sem ela não é possível entendimento.

Um instrumento fundamental para o ser humano no estabelecimento de relações entre as pessoas é a linguagem. Esta se torna um critério para o aconselhador construir empatia quando se relaciona com o outro. O Apóstolo Paulo vai mais longe quando diz: "Sejam solidários com os cristãos em suas necessidades e se aperfeiçoem na prática da hospitalidade [...] Alegrem-se com os que se alegram, e chorem com os que choram" (Rm, 12, 13-14). Nestas palavras, São Paulo nos ensina a prática da empatia: sentir com o outro. Jesus também nos diz ainda: "Amarás ao teu próximo como a ti mesmo" (Mc, 12, 31). Em outra passagem nos fala o que seria a negação da empatia quando diz: "Com quem vou comparar esta geração? São como crianças sentadas nas praças, que se dirigem aos colegas, e dizem: tocamos flauta e vocês não dançaram, cantamos uma musica triste e vocês não bateram no peito" (Mt, 11, 16-17). Ou seja, precisei de sua atenção, compreensão, apoio, de sua solidariedade, que me ouvisse; e você não se deu conta, não se preocupou com a minha dor e meu sofrimento; nãome acolheu.

Pode-se dizer que uma das condições para ser capaz de criar empatia é o amor. Não se pode conhecer outra pessoa se não desenvolvemos também o dom do amor; amor no sentido amplo da palavra: amor[3] a Deus e ao próximo; amar a todos. No amor, ambas as pessoas envolvidas serão afetadas: aquele que ama e a pessoa amada; o amor realiza mudanças na personalidade do amante e do amado. O amor teria a força de torná-las mais semelhantes, como pode também levar a pessoa amada a seguir o ideal existente na mente daquele que ama. Essa é a força psicológica do amor; força transformadora da personalidade. Aqui queremos lembrar aos conselheiros religiosos as atitudes de amor que Jesus manifestou para com muitos pecadores e pecadoras, as transformações de suas vidas, e que também seguiram o ideal daquele que o amou.

Jesus mostrou amor ao cobrador de imposto Mateus, classe mais discriminada da época, mostrando atenção, confiança chamando Mateus para ser do seu grupo, fazer parte dos amigos mais íntimo. Este encontro é narrado pelo evangelho assim: "Saindo daí, Jesus viu um homem chamado Mateus, sentado na coletoria de impostos, e lhe disse: "Siga-me!". Ele se levantou, e seguiu a Jesus" (Mt, 9, 9). Nesta citação Jesus manifesta seu grande amor pelo pecador, capacidade de acolher; e aquele que se sente amado e acolhido passa a seguir o ideal existente na mente daquele que o ama.

Uma outra condição para empatia é a fé e a confiança que se deve estabelecer entre o aconselhando e aconselhador. A empatia acontece entre pessoas que se confiam. A hostilidade, a competição, o pré-conceito, a discriminação, as imposições, falta de diálogo onde as partes devem estar abertas para ganhos e perdas; são atitudes que impossibilitam a empatia, o amor. Estas atitudes continuamente negativas acabam tornando difícil a empatia e o simples entendimento entre as pessoas. Ninguém pode entender seu inimigo, enquanto ele continuar neste lugar.

Dessa forma podemos dizer que há uma necessidade de que aqueles que irão ser futuros conselheiros, os padres, devem ter uma boa formação intelectual; de auto-conhecimento; humano-afetiva para poderem desenvolver sua capacidade de escuta. E que atualmente a Igreja poderia oferecer aos seus conselheiros uma melhor formação na direção das ciências humanas em especial a psicologia e ciências a fins.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao término deste trabalho, feita a análise do material consultado e conseqüentes discussões, conclui-se que, quanto ao objetivo de delinear as vicissitudes da clínica psicológica e do aconselhamento pastoral verificou-se a amplitude e eficácia de ambas em seus campos específicos. Ressalta-se a importância da escuta clínica como instrumento para auxiliar o ser humano em suas dinâmicas relacionais. Ela nos ajudaria a enfrentar os grandes sofrimentos e angústias próprios do humano e que hoje são mais presentes por vivermos em uma sociedade tão egoísta, hedonista, calcada em valores que não privilegiam o existir.

No tocante ao aconselhamento pastoral destaca-se que os conselheiros, em especial padres, enfrentam novos desafios, novos problemas. Os sofrimentos e problemas de hoje, requerem também respostas diferentes, ou seja, os "pecados" continuam, a angústia, os sofrimentos, porém por se caracterizarem com elementos diferentes de outrora precisamos responder aos mesmos de outra maneira; isto é, desafios novos respostas novas.

Associando o conhecimento oriundo da prática clínica em psicologia ao trabalho sacerdotal, acredita-se que haveria uma maior clareza no trato com tais demandas, além da possibilidade de uma atuação mais consistente e ligada a atualidade. Assim aponta-se a necessidade dos seminaristas receberem uma formação mais profunda, que lhes forneça instrumentos ao desenvolvimento de sua capacidade de escuta.

É necessário extinguir os pré-conceitos de alguns psicólogos com relação à religião, à fé, e da mesma forma, de alguns setores da Igreja com relação a psicologia. Tendo em vista que ambas as práticas têm como objetivo acolher o homem em seu sofrimento existencial, acredita-se que suas possíveis intercessões constituir-se-iam em ganhos à população. Suas metodologias apesar de diferentes não precisam tornar-se divergentes.

Não se pretende com o presente texto monográfico afirmar que os padres tenham obrigatoriamente que cursar Psicologia, mas que seria valioso para os mesmos se apropriarem de algumas teorias, submeterem-se a psicoterapia; terem enfim uma formação mais profunda nesta direção. Posto que diante dos desafios presentes, não se pode dar ao luxo de dispensar este instrumento tão importante como suporte para a compreensão e ajuda para aqueles que necessitam e que nos procuram.

Sugere-se que para suprir a carência de estudos nesta área novas pesquisas sejam realizadas, e, além disso, que se desenvolvam programas de formação dos religiosos, que incluam uma equipe multidisciplinar (teólogos, filósofos, psicólogos, assistentes sociais, entre outros), e que possibilitem uma visão ampla das questões contemporâneas. Espera-se que esta pesquisa gere novos questionamentos e estimule ações cada vez mais adequadas e capazes de atender a esta demanda de nossa sociedade.

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[1] Monaquismo refere-se a monges.

[2] Discurso ilustrativo

[3] Amor aqui deve ser compreendido no sentido da etimologia grega de ágape, amor de doação.