A Doce Vida (La Dolce Vita)

 

Poucos são os gênios, inenarrável é o nosso prazer face o expressar dos gênios.


Duas coisas você vai constatar durante os 173 minutos oníricos do maestro Fellini. De tempos em tempos, como uma marcação louca do destino,  você ouvirá “Marcello, Marcello...”, alguém sempre chamando por ele, nos mais variados contextos. Outra é o cromatismo de 3 notas idealizado por outro maestro, Nino Rota, autor da trilha e eterno parceiro do cineasta.

Marcello Mastroianni vive  Marcello Rubini, um jornalista com aspiração a literatura, um jornalista afeito a celebridades e milionários que observa a vida com a amargura de quem esconde uma certa decepção em relação a vida.

Na vida real, quando adolescente, Mastroianni foi capturado pelos nazistas num vilarejo qualquer de seu país, e um milagre qualquer o poupou da nenhuma sorte. Sua fala mansa e seu olhar furtivo, inda que na ribalta, revelam que os sobreviventes simplesmente sobrevivem.

Ora, no mesmo lado, todos os envolvidos na “Dolce...”, dos extras involuntários aos produtores são sobreviventes. Quinze anos é um prazo muito curto para apagar da consciência a tragédia sem proporção de (uma) Segunda Guerra Mundial.

Amigo, amiga, terei a delicadeza de lembrar-vos, Fellini se tornou um verbo, ou um verbete, como queiram, e um adjetivo. Além do mais, num moderno dicionário italiano, o uso corrente de certas palavras tem sua origem na existência desse diretor de cinema. O nosso Aurélio também assina embaixo e, para resumir essa lembrança que vos trago, ter uma palavra derivada de seu nome é algo que não pode ser ignorado. Inventar palavras e vê-las procriarem como faíscas, idem. E se se pensar que a própria imagem do diretor usando um cachecol, sentado  na característica  cadeira no set de filmagem se tornou arquétipo e que esse filme foi eleito como sua obra prima, pouco resta para filosofar. Todavia, sorver os traços culturais  nascidos da obra desse gênio consiste numa das boas premiações da existência. 

“Dolce... foi rodado em 59 e, no inverno de 60, precisamente em 14 de fevereiro de 1960, Alberto Moravia escreve no L‘Espresso, “Apesar de manter um elevado nível de expressão, Fellini parece mudar as regras de acordo com o tema de cada episódio...”.

“Marcello, Marcello...”, (lá, si bemol, si...), esse truque permanece.

“Um elevado nível de expressão”, avisa Moravia, aos desavisados.

A título de curiosidade perceptiva, algumas locações, como a da aparição da Madonna, se tirar o som e disser que aquilo, aquele ajuntamento de pessoas, aquele terreno baldio, aquele conjunto é o Brasil de outrora, num primeiro instante fica difícil torcer o nariz. Sem falar no botequim de beira de estrada, onde Marcello procura sossego para escrever, a palha na janela, as toalhas sobre as mesas e as varetas segurando o teto, puro Brasil. 

“La Dolce Vita”, com suas 3 horas enfeitiçantes soletradas em aprazível  italiano nos mostram a mais verdadeira faceta da vida – os loose ends, como dizem os gringos, as situações soltas, indefinidas, ou seja, os episódios não são amarrados. No exercício do enredo, eles são como o próprio cotidiano. As situações vem e vão, com seus personagens e seus fragmentários conteúdos. Não obstante, cada um desses personagens é uma performance em si mesmo.

A cena no cabaré Cha-Cha com Marcello e seu pai (Annibale Ninchi), acompanhados do fotógrafo chamado Paparazzo (Walter Santesso), e, de onde você acha que surgiu a palavra paparazzi? Da etimologia felliniana, é claro. Nessa cena, ou, se preferir, nesse episódio, Fanny (Magali Noël), também executa sua performance, mais de uma,  e em dado momento surge o palhaço tocando trompete, sua relação com a música parece ser a mesma que Marcello tem com a literatura. Algo que o atormenta e lhe soa falso. Os dois se olham, Marcello não sustenta o olhar.

Anita Ekberg em meio a uma legião de repórteres, todos lhe entopem de perguntas em sua suíte e a beleza dela está acima das respostas. Anouk Aimée como  Maddalena, a milionária imersa no vazio sendo esse vazio a principal descrição dos personagens da película pela crítica da época. Bem, eles não poderiam imaginar como seria esse vazio meio século depois...

Alain Cuny como o sofisticado Steiner, em cada aparição ele externa homeopaticamente que não suporta a felicidade. Ele dará um jeito nisso.

Essa seleção de cenas é puramente mecânica, já que em “Dolce...” o paladar se perde entre as iguarias, boa parte dos enfocados expele sentenças em três línguas: italiano, francês e inglês, a Roma abordada sai do eixo das fontes e monumentos e já mostra como será o futuro de grandes cidades terceiro mundistas, que precisarão de construções para abrigar os menos favorecidos.   

Fellini costumava dizer que todos os personagens de seus filmes, exceto os rinocerontes de “E La Nave Va”, são seus alter egos. Um raciocínio sorridente se descortina face a essa afirmação.

Breve parêntese para Nino Rota, que ao longo de sua
carreira musicou 145 filmes e tinha duas alcunhas, a do homem sem rosto, pois raríssimamente aparecia, e de “o príncipe da trilha sonora”. A lei da atração talvez seja uma ciência exata.  

“Amacord”, sucesso de1973, também é uma palavra do universo felliniano, originária de um vocábulo do dialeto local de Rimini – berço do diretor  e onde ele viveu sua infância. Hoje ela consta no dicionário italiano como: eu me recordo.


Fine.