A criança é capaz de filosofar?

  

A filosofia e as crianças 

Este é um problema que têm atraído à atenção de educadores de filósofos e é fruto de minhas recentes pesquisas de campo no colégio onde estou ministrando aula: a criança é capaz de filosofar? É aceitável que a filosofia contribui para se pensar a infância. Mas será que os filósofos e os educadores estão dispostos a considerar o potencial filosófico das crianças? A resposta não é simples, porque as correntes tradicionais do pensamento filosófico e psicológico dizem que isso não é possível, pois a criança ainda não estaria de posse do instrumental cognitivo necessário à abstração filosófica.

Segundo minhas pesquisas na biblioteca nacional da educação, essa discussão tem aproximadamente dois mil e quinhentos anos de história. Na concepção tradicional filosófica, era admissível apenas que homens adultos praticassem a filosofia, e ainda assim, nem todos os homens. Max Scheler, fazendo referência a Platão, diz que “as massas nunca serão filósofas” (SCHELER, 1986). Desse modo, a filosofia ocidental permaneceu por um longo período influenciado por esse pensamento.

Acreditava-se que nem mesmo as mulheres tinham aptidão para dominar o pensamento filosófico. Santo Agostinho, ao elogiar sua própria mãe, que participava de um diálogo filosófico com ele e outros homens, revela a ideia da época: “…esquecidos inteiramente do seu sexo, pensamos que algum grande homem se encontrava sentado conosco”. (SANTO AGOSTINHO, 1988) As mulheres só conseguem franquear essa fronteira no final do século XIX. Mas a relação mulher e filosofia será tratado em outro momento.

Hoje, as exceções são menores, apesar dos que afirmam que a filosofia não é coisa simples, pois para se fazer filosofia no sentido acadêmico e profissional é preciso adentrar um universo complexo e cheio de termos técnicos e conhecer as várias tradições e sistemas de pensamento. Os argumentos do filósofo devem ser difíceis e sofisticados. Nesses termos, a filosofia é de fato para poucos iniciados, que só poderão filosofar, após um longo e trabalhoso processo de estudos e acúmulo cultural.

Porém, segundo Bochenski, a filosofia é um assunto que não interessa apenas a especialistas e profissionais, porque todos os seres humanos em alguma circunstância da vida filosofam. Estamos obrigados a filosofar. William James, entendendo também que filosofar é próprio do ser humano racional, explica que todos os seres humanos se defrontam com perguntas como: O que você pensa de si mesmo? O que você pensa do mundo? São enigmas da esfinge e, de uma forma ou de outra, precisamos lidar com eles, diz James.

O que há de comum entre filósofos e crianças?

Mas reconhecer a capacidade da criança filosofar é um passo que até agora poucos deram. Em geral, os filósofos estão afastados da infância. Em seus sistemas, a criança não tem espaço, a não ser em esporádicas citações. Sartre, só para citar um caso, anotava que a preocupação com as crianças e animais é desinteresse nas questões do homem (SARTRE, 1972). Parecem os filósofos esquecer que um dia foram crianças, que receberam atenção por parte dos adultos, talvez pessoas que não desprezaram seu potencial de pensar, amar, sonhar e agir no mundo.

Embora a filosofia acadêmica tenha esquecido a infância e Platão tenha uma concepção filosófica elitista, as primeiras indagações filosóficas sobre “o que é a criança” e qual o melhor meio para se educá-las, nasceram na Grécia, exatamente com Platão e Aristóteles. Tanto que Jaeger aponta Platão como o fundador da pedagogia da primeira infância. Ainda assim, os gregos não reconheciam as capacidades infantis.

A criança só vai entrar em cena como uma das principais preocupações humanas, nos séculos XVI e XVII e um dos maiores representantes dessa filosofia voltada à infância é o educador e filósofo checo Jan Amos Comenius. Mais tarde, Jean-Jacques Rousseau revolucionou a pedagogia, como o filósofo da infância que mais se preocupou com a relação entre a criança, o adulto e a sociedade. Rousseau entra em diálogo com o mundo infantil e não ignora suas muitas potencialidades. O centro da reflexão filosófico-pedagógica passa ser a infância como fase autônoma e específica. Pestalozzi também se preocupa com isso. Muitos pensadores dos séculos XIX e XX voltaram suas principais atenções à infância. Eram filósofos da infância e educadores, que reconheceram e ressaltaram as capacidades das crianças. E alguns, como Pestalozzi, foram menosprezados como filósofos, justamente por se preocuparem com as crianças.

Ao se trabalhar a filosofia com as crianças, percebe-se facilmente que elas têm inclinação natural para a curiosidade, admiração, indagação, discussão e reflexão. Esses são traços cognitivos do empenho que a criança faz para descobrir como as coisas funcionam no mundo. Ann Sharp diz que as crianças buscam compreender o significado das palavras e as ações das pessoas que estão à sua volta. Os conceitos de bem, verdade, tempo, amizade, liberdade, amor, são centrais para o modo como a criança constrói o mundo. Por isso, é essencial que discuta esses conceitos e sentimentos e lhes dê significado.

Entretanto, essa busca pode ser filosófica ou não-filosófica, dependendo dos meios e os métodos utilizados para se chegar à construção de conceitos e interpretação do mundo. Assim, podemos nos indagar o que caracteriza um pensamento filosófico. Se as conversas, os diálogos, estabelecidos com as crianças, forem apenas uma troca de opiniões, isso não indica um debate filosófico. Reconhecemos se uma troca de idéias é filosófica, analisando se os temas são da alçada da filosofia e se estão sendo usadas as ferramentas da indagação filosófica: as habilidades de raciocínio, o diálogo de auto-avaliação e a reflexão em torno dos diferentes assuntos. O debate em curso deve exigir capacidade de raciocínio e chegar a diferentes modelos de fazer, dizer e agir.

Nesse sentido, poderíamos dizer que as crianças parecem estar mais aptas a filosofarem do que boa parte dos adultos. Não que elas teriam mais capacidade de elaborar raciocínios difíceis e complexos do que filósofos profissionais. Ou que encontrariam mais facilidade para compreender os vários sistemas filosóficos. Ou ainda, que dominariam um vocabulário técnico com mais competência que um adulto. Não é isso. É que elas têm mais a ver com a essência do pensar filosófico.

Segundo Platão e Aristóteles, a admiração é o princípio da filosofia. Para os filósofos antigos e também para os modernos como Descartes, a admiração está na raiz da dúvida, da interrogação e da investigação, portanto, no início do filosofar. É próprio do pensar infantil a imensa capacidade de admirar o mundo,  no processo de construção de significados e valores. O adulto já tem suas certezas e seus valores e está em meio a tantas preocupações cotidianas, a tantos desencantamentos, que perde a capacidade de admirar-se perante a existência.

Outro aspecto é a postura do não saber, pois a filosofia não começa com o acúmulo de conhecimento, e sim com o seu contrário, o não saber. Sócrates parte da afirmação de que nada sabem, Descartes assume a dúvida como início de seu filosofar. Os filósofos guardam, ou pelo menos devem guardar a humildade de não saber tudo, inclusive para continuar filosofando, sem necessariamente cair no ceticismo radical. A abertura mental e a disponibilidade para fazer perguntas é condição para a filosofia. Mas o ser humano adulto comum tem opiniões prontas e sistemas fechados. Assumir uma postura de não saber é bem mais problemático para ele do que para uma criança. A criança naturalmente está em atitude de aprendizado diante da vida.

Lembrando ainda Sócrates, pode-se ver em sua prática maiêutica uma relação intrínseca entre o ato de filosofar e o ato de educar, quase uma identificação entre ambos. Como filósofo, não tinha verdades prontas e sistemas acabados e, como educador, não pretendia transmitir conhecimentos, como faziam os aristocratas do saber. Nem tampouco pretendia vender o saber, como faziam os sofistas, ensinando a arte do falar. A tarefa que se impõe é questionar, interrogar, dialogar com seus interlocutores a fim de que possam parir a verdade que está dentro deles. Assim, filosofia e educação se encontram, porque em última análise, a verdade filosófica só pode ser atingida por um ato pedagógico e a educação deve ser a busca da verdade. Então, embora fosse Platão elitista em relação à filosofia, a atitude de Sócrates é democrática (tanto que extrai a verdade de um escravo como Menon) e nos põe no caminho de começar a fazer isso o mais cedo possível.

Assim, se a filosofia nasce da admiração e do reconhecimento do não saber e se o filosofar não é, como queriam os sofistas, adquirir um saber, ou uma atitude acadêmica e profissional de poucos cultos, mas sim um questionamento sobre a vida, um apelo à consciência do ser e um parto da alma, com a ajuda dos mestres, a criança é sim capaz de filosofar e ser interlocutora da filosofia. É nesse sentido que se pode dizer que as crianças estão mais perto da filosofia, do que boa parte dos adultos.

REFERENCIAS

SANTO AGOSTINHO. Diálogo sobre a Felicidade. Lisboa, Edições 70, 1988.

SARTRE, Jean-Paul. Les Mots. Paris, Gallimard, 1972.

SCHELER, Max. Visão filosófica do mundo. São Paulo, Editora Perspectiva, 1986.

SHARP, Ann. Introdução. (In: KOHAN, Walter O. & WUENSCH, ANA M.(Org.) Filosofia para crianças. Vol. I. Petrópoles, Vozes, 1998.)