João Romano da Silva Junior

Resumo: O presente artigo tem por escopo trazer à baila o instituto do voto, não sob um prisma puramente técnico-jurídico, mas antes, por um enfoque em que repousam as nuances entre sua previsão constitucional, sua importância como instrumento de representatividade e de soberania popular, e de outra banda, contrastá-lo despido desse tecnicismo que o cinge, enfrentando-o como um tema que oculta problemas sociais, e que por isso mesmo, pode ser utilizado como mero discurso, perigoso e cheio de armadilhas, capaz de degenerar o sentido de democracia, transmudando-o para demagogia.

Palavras-chave: sufrágio, voto, cidadania, democracia, demagogia.

1. INTRODUÇÃO
À primeira vista, com supedâneo na Constituição Federal de 1988, soerguida com o dístico de "constituição cidadã", o direito ao voto, se analisado divorciado do contexto histórico brasileiro que o permeia, representa um perigoso embuste.
O poder constituinte originário guindou o voto como um dos pilares intocáveis da nossa República, não podendo o poder constituinte derivado nele bulir, nem por emenda constitucional, é o que se chama de núcleo imodificável ou cláusula pétrea da Constituição Federal.
Quadra gizar que não é o substantivo voto propriamente dito que é intocável, mas seus adjetivos "direto", "secreto", "universal" e "periódico".
Assim, é força concluir que havendo outro epíteto amoldável ao substantivo voto, exsurgirá uma possibilidade de mudança, por exemplo, no que tange a ser ele "obrigatório" ou "facultativo".
Aliás, no esteio dessa antítese meio barroca, o voto no Brasil constitui-se em um direito ou em um dever?
Colimando trazer algumas pistas para essa indagação, ainda que sem a pretensão de estancar a discussão que grassa no meio técnico, privilegiar-se-á os argumentos de caráter mais históricos.
Como ponto de partida se socorrerá da obra do Professor José Murilo de Carvalho, "Cidadania no Brasil: O Longo Caminho".
Tendo o Brasil adotado o modelo de Estado Democrático de Direito, afirmou-se como Estado que se não submete simplesmente à lei de modo mecânico e formal, mas o faz espraiado em um ideal de igualdade, mirando um compromisso social.
E a democracia é o móvel de toda a engrenagem engendrada para se chegar aos fins pretendidos pelo Estado, tendo em vista que está jungida em seu bojo a participação de todos para a consecução dos objetivos insertos no documento legal máximo que é a Constituição Federal.
Aludida participação é oferecida aos cidadãos, por meio do sufrágio universal, tendo como meio mais comum de exercê-lo, pelo voto, expressando desta forma a soberania popular, sendo o povo o legítimo detentor do poder.
A construção teórica nos seduz e por vezes esquecemos-nos de cotejá-la com a realidade fática e histórica. Mas se fizermos esse exercício nossa visão se desobinubila e surgem pálios de luz que nos permitem assumir uma postura mais crítica e menos pueril.
Mesmo tendo por premissa que a igualdade num Estado capitalista é uma utopia, uma contradição insuperável, e mesmo no Estado Social de Direito, é inatingível em sua plenitude, não se pode perder de vista a busca pela redução da desigualdade social, que é exatamente o que propala a Constituição Federal, fundada no Estado Democrático de Direito.
Ocorre que essa tentativa é sempre entremeada por forte apelo populista, seja deturpando a disposição dos direitos sociais, sobretudo nos períodos autoritários por nós já experimentados, seja pela garantia dos direitos políticos como arremedo de direitos fundamentais, como acontecido nas nossas malsinadas ditaduras civil e militar ou mesmo nos governos dito democráticos, indiferentes muitas vezes à necessidade de reformas políticas e sociais, máxime da educação.
O que se pretende, destarte, ainda que sem um aprofundamento de maior envergadura, tendo em vista que a modalidade do trabalho não permite, é discutir o voto dentro do contexto democrático atual, mas fundado em períodos passados, lançando-se mão de um recorte e uma ligeira incursão histórica, pinçando dentre os vários momentos históricos aqueles mais afetos aos primórdios do voto no Brasil, e os que oferecem algumas circunstâncias idôneas a explicar os motivos que podem levar o instituto do voto a ser usado como discurso de manutenção de poder.