Peço neste artigo ao amigo leitor que faça algo digno de um mago poderoso: que se transforme (pelo menos imaginariamente) em sal de cozinha. Mesmo sabendo que nossa imaginação seja limitada por paredes e grades , ela é capaz de coisas surpreendentes. Nossa imaginação pode ultrapassar e muito, as grades do que chamamos “realidade”, e estabelecer mundos diversos. Esses mundos imaginários poderão ser tão consistentes, ou mais, do que o mundo da "realidade", desde que a nossa imaginação criadora de mundos seja informada pelo rigor do nosso intelecto. É o que chamo de “imaginação rigorosa”, a mola mestra da atividade criadora do ser humano. O mundo da "realidade" apenas é uma criação da imaginação realizada por uma imperfeição rigorosa.

            Não será muito fácil o cumprimento dessa experiência, porque o mundo da "realidade", como já falei, nos prende entre milhares de paredes e grades. Com um esforço podemos, precariamente, ultrapassar a "realidade". E isso será possível se conseguirmos ser sal de cozinha por uns poucos instantes, não somente como aquele pó branco de gosto específico, que em sua ausência tudo fica 'sem gosto', insosso, e que em excesso fica intragável.

            Para que isso ocorra será necessário que esqueçamos tudo que sabemos a respeito dessa substância humilde que é o sal de cozinha, e para os mais 'sabidos', cloreto de sódio (NaCl), como sendo molécula de um átomo de sódio e outro de cloro. Porque isso não poderá servir de base para um mundo novo. É preciso intuir o sal de cozinha como existência, como sendo um cristal em forma de cubo, o que de fato, geometricamente,  ele é.

            Como sal, antes de tudo ‘somos cubo’. Seres que tendem a cristalizar-se em cubos. O resto do mundo, essa nossa circunstância dentro da qual tendemos para o cubo, é apenas o pano de fundo do processo da nossa cristalização, um pano de fundo altamente duvidoso.

            Cristalizamos, logo somos. O resto do mundo precisa legitimar-se ante o nosso processo cristalizador para tornar-se legitimamente "mundo". Há coisas que influem na nossa cristalização, e essas coisas serão chamadas de "realidade". Esta será a base da nossa ontologia (do grego "ontos" e "logos" ser e estudo, assim estudo do ser em sua essência). Há coisas que favorecem, e outras que prejudicam a nossa cristalização, há, portanto coisas "boas" e "nefastas". Nisto estará baseada a nossa ética. O cubo é a forma ideal e perfeita da nossa existência, é, portanto "belo” e outras formas como o dodecaedro, o retângulo, o triangulo, são formas imperfeitas, e outras, como a esfera, portanto anti-cristalina, são "feias".   A nossa estética será radicalmente cubista. Não resta dúvida de que o cubo, por ser a forma ideal, é a um tempo a suma realidade, a suma bondade e a suma beleza. Se conseguirmos cristalizarmo-nos em cubo, estaremos plenamente realizados, seremos seres perfeitos. A mera contemplação do cubo, com a sua simetria perfeita, com os seus seis quadrados perfeitamente dispostos, com a beleza dos seus cantos e o rigor dos seus ângulos, eleva a nossa existência estaticamente. O estudo das qualidades óticas, elétricas e mecânicas do cubo é o fundamento do conhecimento da realidade. A relação misteriosa entre os lados e a diagonais dos quadrados, e entre a superfície dos quadrados e o volume do cubo, desvenda a própria estrutura da realidade. O caráter matemático dessas relações, um caráter que tem a ver com a harmonia da música, enche-nos de espanto sagrado, um espanto que nos faz vibrar até ao íntimo da nossa organização molecular, e que é, ela também, uma organização cubista. Em resumo: somos projetados em forma de cubo. O cubo é o nosso projeto, e o processo da nossa cristalização é a realização progressiva desse projeto. Se nos tornarmos cubo, teremos sido autenticamente nós mesmos. Mas, se decairmos no pó branco e amorfo que está jogado em qualquer canto da cozinha, teremos sido existências inautênticas e decadentes. Teremos traído o projeto do cubo.

            Nisso reside a nossa profunda problemática existencial  como sal de cozinha. Se decaímos em pó, somos inautênticos, um mero "a gente", perdão, "grão salino".             Mas se nos cristalizamos em cubo, estaremos cumprindo nossa “missão”. Em outras palavras: fomos projetados para cá como cubos e estamos aqui para o cubo. A absurdidade da nossa existência está contida em germe no projeto que nos estabeleceu. Esta é a essência de nossa existência salina. E são justamente os melhores entre nós, os mais perfeitamente cristalizados, que fazem a diferença, ao contrário daqueles que, triturados  em      servirão de condimento numa sopa qualquer que será servida em uma refeição que ultrapassa a nossa imaginação salina.

            Somos, como sal de cozinha que somos, prisioneiros do mito do cubo, mas livres dentro dessa prisão que é o nosso mundo. Se e, quando nós tivermos nos cristalizados inteiramente, teremos realizado esse mundo, teremos esgotado as suas virtualidades, e isto será o "fim do mundo". Parará o tempo (a cristalização) e reinará a Eternidade. Teremos sido salvos. A revelação primordial e mítica do cubo é um acontecimento festivo. Nela o Ser resplandece festivamente.

            A nossa existência como sal, isto é, a nossa cristalização, pode ser a interpretação mais profunda do que está implícito no Sermão da Montanha, proferido pelo Mestre, (Mateus 5:13), que nos ensina: “Vós sois o sal da terra, e se o sal for insípido, com que se há de salgar? Para nada mais presta senão para se lançar fora, e ser pisado pelos homens”.

            E para finalizar, uma última ‘tradução’: insípido quer dizer o que não tem gosto, sabor, ou, figurativamente, algo sem atrativos, sem espírito, sem interesse, sem graça.