Por Maria Ângela Coelho Mirault
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 O medo tem sua gênese em nossa própria incapacidade de lidar com o desconhecido, explicar e compreender uma dada realidade que, sempre se nos apresenta aparentemente caótica e inapreensível – qualquer que seja ela. De súbito, qualquer realidade é por nós percebida em sua complexa desorganização. Somente pouco a pouco, ao buscarmos dentro de nós os referenciais simbólicos constitutivos do nosso repertório de conhecimentos, é que nos capacitamos a aplacar o medo instintivo que existe em nós. Somos milenarmente criaturas do medo.  Temos medo do escuro, do desconhecido, de andar de avião, de roda-gigante, de insetos, de adoecer, de amar, de perder o amor, de morrer. Desprovidos de códigos referenciais que nos forneçam significações necessárias para compreendermos os fenômenos que desconhecemos, só nos resta, como mecanismo de defesa e escudo de sobrevivência, o temor.
Desde os tempos imemoriais da história humana, a morte constitui-se um dos mais complexos e inexplicáveis fenômenos com o qual o homem terá que se deparar inevitavelmente, mesmo sem compreendê-lo. Surgem os mitos com o intuito de aplacar esse medo atávico do inexplicável e os ritos perpetuam-se em cerimônias que, se não explicam, pelo menos, abrandam os sentimentos e dão significado ao que foge à compreensão desse fenômeno tão inerente à própria vida.  Mas, o que entende o homem ainda hoje sobre a morte? Por quais paradigmas e códigos de conhecimento a compreendem na atualidade? Guardam  eles os mesmos medos de seus ancestrais?

A morte e nós
Estamos nós preparados para lidarmos com aquele instante derradeiro em que com ela (todos) compartilharemos nossas vidas? De modo geral, não. Não estamos preparados para esse momento, sequer sabemos como enfrentá-lo. Sua chegada, sempre inoportuna, nos surpreenderá, transformando-nos em seres saudosos daqueles a quem amamos, questionadores inconsoláveis de sua fatalidade, que a todos atinge, sejamos nós ricos e pobres, homens e mulheres, velhos e moços. Não, ainda agora, não estamos preparados para morrer nem tampouco para sobreviver à perda dos que nos antecedem nessa travessia inexorável. Mas, a humanidade já detêm esclarecimentos - além dos mitos e dos ritos - que nos podem auxiliar a aceitá-la e compreendê-la como fenômeno natural da própria existência, aplacando em nós, o medo do seu enfrentamento, adiável, mas inevitável.

A morte e as tradições  culturais
 Existem, cultural e tradicionalmente, duas concepções acerca do fenômeno da morte, em conformidade com crenças religiosas e, ou linhas filosóficas que professemos. Sob os postulados materialistas, ela nada mais significará do que o fim de uma curta existência, e nós, nada mais seremos do que seres biológicos vulneráveis e vitimados pelo acaso das leis naturais impostas pela vida: nascer, crescer, fenecer. Sob concepções espiritualistas e de acordo com o embasamento filosófico que sustente essas correntes, aceitamos a morte, ainda que com medo, com certa parcimônia, dada sua inevitabilidade, sem sabermos (ou não querendo saber) o que nos pode esperar ao ultrapassar os portais dessa travessia. E sob essa concepção, alguns de nós irão crer nas penas e gozos eternos, enquanto outros, crerão na possibilidade do sono reconfortante (o descanso eterno) antes do juízo final, quando cada um encontrará – aí sim – sua destinação. Se tivermos sido bons e convertido a determinada corrente religiosa, seremos levados aos céus na condição de eleitos do Senhor, se maus, ou não nos tivermos convertido a tempo, estaremos sujeitos ao aniquilamento de nossa própria essência. 

 A milenar concepção da reencarnação
A história humana, tão antiga quanto o próprio homem, traz, entre o nada e as penas, o alento de uma outra interpretação para o fenômeno da vida, concebida como um trajeto permanente de imortalidade e apresenta-nos a tese milenar da reencarnação. Tese esta cujos vestígios são encontrados, não apenas nas escrituras orientais como também nos registro bíblicos contidos no Antigo e no Novo Testamento.
Não nos importando nem quando nem como a idéia reencarnacionista alcançou o pensamento humano, constata-se, na atualidade, sua vertiginosa propagação, independente de crenças religiosas que se professem. Talvez, por oferecer uma lógica que se interponha entre uma ou outra corrente ao nos apresentar a opção pela continuidade da vida além da morte, a tese reencarnacionista venham encontrando também na ciência suas explicações e sua ampla divulgação.
Dentre inúmeras obras publicadas por todo o mundo, a rica obra do psiquiatra e escritor Brien Weiss, a respeito dos resultados de suas pesquisas sobre as terapias de vidas passadas, realizadas com seus pacientes, alcançam milhões de leitores, elevando suas obras a condição de best-sellers, em todo mundo.
 Alinhando-se a essas constatações, recente pesquisa publicada pela revista semanal francesa “L’ Express”, em sua edição no. 2.378, registra o dado estatístico de que, em cada quatro franceses, um acredita na reencarnação. Intitulada “La mode de la réincarnation – um français  sur quatre y croit” (A moda da reencarnação - um em cada quatro franceses  acredita nela) a reportagem traz depoimentos de especialistas das mais diversas áreas do conhecimento. Psiquiatras, terapeutas, religiosos, artistas, intelectuais afirmam sua crença na possibilidade da reencarnação, tema milenarmente recorrente das culturas hindu, grega, judaica, que, mesmo considerado apócrifo por religiões hegemonicamente dominantes, (apesar da explicitação em João (3:1-15) que registra o célebre encontro de Jesus com Nicodemos, quando o evangelista registra o diálogo em que Jesus esclarece como se daria o fenômeno da reencarnação como lei da própria vida ao senhor das leis judaicas).

Allan Kardec e a negação da morte
Embora o tema venha suscitando o interesse de religiosos e estudiosos a respeito da continuidade da vida após a morte ao longo dos tempos, foi a pesquisa científica do professor Hippolyte Lèon Denizard Rivail, (que passou a ser conhecido sob o pseudônimo de Allan Kardec) que a reencarnação, enquanto mecanismo de ajuste da própria vida em benefício do próprio homem, ganhou cunho de cientificidade. Foi o professor lionês, discípulo dileto de Pestalozzi, que - ao deparar-se com episódios considerados sobrenaturais, na efervecente Paris dos idos de 1855 - decidiu pesquisar aqueles fenômenos com a seriedade que lhe era peculiar, afirmando a época ter percebido “naqueles fenômenos, a chave do problema tão obscuro e tão controvertido do passado e do futuro da Humanidade (...)”, ou seja, “a solução que procurara em toda sua vida”, afirmara ele, na ocasião. Desse encontro e dessa constatação surgirá toda sua extensa e profícua obra, que oferecendo luzes sobre o outro lado da vida, abordará com cientificidade e desdobramentos filosóficos-religosos a tese da imortalidade, da preexistência e da sobrevivência como leis universais da própria vida.
A temática sobre o inter-relacionamento de uma realidade natural com a sobrenatural veio ganhar consistência em sua primeira obra a respeito do tema: “Le Livre des Esprits” (O Livro dos Espíritos) lançado em Paris, em 18 de abril de 1857, no qual explicitará toda a codificação sobre o entrelaçamento dos dois lados de uma mesma e única vida imortal. Sua obra inaugural apresentará à humanidade a reencarnação como pedra fundamental dos seus postulados, ao asseverar, em sua tese ser necessário:  “nascer, viver, morrer, renascer ainda, e progredir sem cessar - tal é a lei” a que todos estamos submetidos.
Tal assertiva virá constituir-se na mais clara proposição da lei de evolução para a vida espiritual dos seres que habitam, provisoriamente a vestimenta das moléculas, em prol do seu próprio desenvolvimento e autoburilamento existencial.
 A tese professada pelos postulados filosóficos (de cunho religioso) propostos na codificação kardequina, pelo emérito professor francês a respeito das constatações fenomênicas do inter-relacionamento de duas realidade de uma mesma vida, busca esclarecer, alentar e proporcionar referenciais substantivos para a abordagem racional do fenômeno da morte, intrínseco a própria natureza humana.

A tese da continuidade da vida além da vida
Sob as constatações de Kardec, embora ainda temerosos frente ao fenômeno da morte, podemos concebê-la sob outro paradigma que nos remete a continuidade da vida, da imortalidade e da reencarnação. Não somos simplesmente seres destinados ao aniquilamento irreversível da morte, cujo destino eterno se decide em poucos anos vividos em uma única existência, sem qualquer atenuante a nosso favor. Como em toda natureza, somos seres em permanente evolução, seres em transformação e progressão destinados à felicidade e ao auto-aperfeiçoamento, não à punição eterna, ou ao aniquilamento irreversível.
A morte é, sob o paradigma da imortalidade e da reencarnação, um portal transitório para a mudança e o progresso. A reencarnação seria, então, o mecanismo pelo qual a justiça das Leis Universal proporciona o reajuste, o equilíbrio e a oportunidade de refazer o que foi mal feito, aprimorar o que já se fez bem feito, ou compulsoriamente realizar-se o que se deixou de fazer.
Sob os postulados milenares e ancestrais reencarnacionistas, organizados, na História Moderna por Allan Kardec, a morte não é o fim de tudo, mas um instante intermediário até o início de um novo tempo para um futuro renascer. Assim, nossos mortos não estão mortos nem habitam a frieza dos túmulos, preparam-se para um novo e mais feliz porvir. A morte passa a adquirir uma dimensão de travessia para novos possíveis: nem nós nem nossos entes queridos jazem nos cemitérios, libertos que estão, habitam outras esferas, preparam-se, quem sabe, para um novo recomeço, retornando a vida física, já que a espiritual jamais fenece. A milenar doutrina da reencarnação, postulada modernamente por Allan Kardec, amplamente difundida pelos estudiosos do nosso tempo, condicionam-nos como seres imortais e viajantes seculares entre dois mundos, fadados a continuar uma caminhada, que, iniciada antes do nascimento, não se interrompe no decurso da morte.
Que o Dia de Finados, cultuado em diversas culturas em todo o mundo, nos proporcione estímulo para novas reflexões sobre a coerência dos propósitos da vida e da morte, sob o não tão novo paradigma da imortalidade e da perpetuação da vida. E, desse modo, reverenciarmos àqueles que nos antecederam nessa travessia como seres que se querem vivos e que nos aguardam em oportuno reencontro.

 

 

 

 

 


(*) dooutora em comunicação e semiótica (PUC/SP)