"O amor é que é essencial
O sexo é só um acidente
Pode ser igual
Ou diferente.
O homem não é um animal:
É uma carne inteligente,
Embora às vezes doente".

Fernando Pessoa

A despeito das uniões entre pessoas do mesmo sexo ser uma prática que sempre esteve presente na história da humanidade (FOUCAULT, 2006 e WEEKS, 1985), obedecendo a várias regras e normas estabelecidas por estas mesmas sociedades, nas quais estas práticas se realizam, a conjugalidade homossexual é um tema ainda recente nos estudos antropológicos. A discussão dessa temática inicia-se com os estudos sobre as novas configurações familiares, que tentam desnaturalizar e desmistificar a idéia de família nuclear e da heterossexualidade como o modelo a ser seguido pelos indivíduos[1].

Essas reflexões fundamentaram alguns estudos. Essas abordagens definem as relações homossexuais, bem como as heterossexuais como vínculos baseados nos valores fundantes das vivências familiares contemporâneas, ou seja, o carinho, o "amor", o companheirismo, o respeito e/ou reconhecimento do casal pelos vizinhos e por parentes[2] instrumentaliza os homossexuais na construção e manutenção de suas relações. Portanto, a conjugalidade ganha evidência a partir dos estudos da transformação da família, que colocou em evidência o reconhecimento do casal gay como elemento de reflexão acerca da realidade afetivo-sexual dos homossexuais brasileiros[3]. Nesse sentido, a aceitação das relações estáveis[4] entre homossexuais é influenciada pelos papéis conjugais que estão presentes nas representações e práticas sociais, referentes à família e que, segundo Mello (2005, p. 46) possui uma relação com a generalização do divórcio e da monoparentalidade presentes na sociedade contemporânea (DIAS, 2003).

É através dos estudos de conjugalidade homossexual que nos deparamos com a idéia de estabilidade nessas relações. Segundo Heilborn (2004) toda relação estável ganha um status de aceitação e reconhecimento da sociedade, possibilitando à díade sua inserção nos diferentes grupos sociais. Essa autora confirma a colocação de Rubin (1989) quando elabora o conceito de hierarquia sexual na sociedade ocidental. Ela diz que a aceitação de um casal homossexual perpassa pela constituição de comportamentos e práticas cotidianas próximas daquelas vivenciadas pelos heterossexuais casados, monogâmicos e procriadores, que se enquadram na classe das práticas normais ou saudáveis. É esse desejo, individual e/ou coletivo, de inserção num grupo, que os membros do casal buscam alcançar para que tenham garantidos os direitos e deveres correspondentes a construção e manutenção de laços afetivo-sexuais (Heilborn, 2004 e GOMES, 2003).

Diante dessa visão, em que estabilidade pode ou não levar a aceitação e/ou reconhecimento da conjugalidade entre pessoas do mesmo sexo, os homossexuais masculinos, segundo Matos (2000) e Heilborn (2004)[5], dão sentido aos aspectos da vida cotidiana mediante a consolidação de arranjos e práticas conjugais, tais como: a divisão do trabalho doméstico, o cuidado com a relação e a construção do respeito mútuo. Esses roteiros possibilitam o estabelecimento de laços afetivo-sexuais fundados em uma representação do que é construir e manter uma relação estável baseados nas construções de parcerias heterossexuais. É nesse contexto que o problema referido anteriormente se coloca.

Existem vários estudos que tentam dar conta dos diferentes aspectos da homossexualidade. Destacam-se aqui as abordagens que buscaram mostrar como os homossexuais foram representados pelas sociedades ocidentais nos vários períodos da história sócio-cultural da humanidade. Um exemplo desses estudos são os trabalhos de Green (2000), que tratam das representações que as instituições brasileiras do século XX faziam do homossexual.

No final do século XIX e início do XX o autor observou certa liberação das relações sexuais entre homens, quando o espaço urbano se apresentava como de fundamental importância para encontrar parceiros sexuais e socializar-se com os amigos. Surgiram neste contexto também as primeiras comunidades homossexuais[6], que vão ganhar força com as reações médico-legais nas décadas de 30 e 40 do século XX e que possibilitará uma contra-reação dos homossexuais na manutenção de suas relações afetivo-sexuais, bem como tentativas de aceitação por parte da sociedade.

Fry (1982) aponta para a influência que a medicina teve durante os anos de 30 e 40 e ainda tem sobre a homossexualidade. O primeiro feito dessa ciência foi tirar essa orientação sexual da condição de crime, tornando-a doença. Nesse processo, médicos e cientistas criaram as mais diversas teorias. De acordo, com esses estudos há dois tipos de homossexuais: os 'invertidos', considerados doentes sem culpa de seus desejos sexuais; e os 'pervertidos', que apresentam desvios de caráter, escolhendo ter relações sexuais com pessoas do mesmo sexo biológico. O indivíduo, que possui práticas sexuais com outro homem considerado 'ativo' passa a ser classificado também como homossexual pela medicina. Sendo o homossexual um doente oriundo de desvios psicológicos e hormonais, ganha a possibilidade de cura mediante os diversos tratamentos oferecidos pelos cientistas.

Na década de 1980, os homossexuais são novamente atacados pelas normatizações médicas, agora com o estigma de que são pertencentes a um grupo de risco que transmite uma doença fatal: a AIDS. O advento da AIDS proporcionou, em larga medida, que a medicina reassumisse o poder de medicalizar novamente esta prática sexual, que desde os anos 1960 – com a revolução sexual – vinha perdendo boa parte de sua configuração negativa (Cf. Green, 2000 e Vogt, 1982). Isso possibilitou aos médicos de certo modo retomarem as concepções médico-legais de homossexualismo dos anos 30 e 40 que definiam a condição homossexual como doença. Neste sentido, os homossexuais dos anos de 1980 foram forçados a re-estudar este paradigma e enfrentá-lo com novas soluções (Green, 2000; Barbosa, 1991 e Vogt, 1982). Para isso, intensificou-se a organização de grupos de gays reunidos em torno da bandeira contra a discriminação e criação de novos direitos sexuais. Na esteira dessas novas estratégias de lutas da década de 1990, estabeleceram-se discussões transparentes sobre as questões de conjugalidade e parentalidade entre homossexuais (HEILBORN, 2004; Mello, 2005 e UZIEL, 2002).

Nesse contexto notamos que surge uma nova ênfase em um dos aspectos das relações homossexuais: a conjugalidade[7]. A idéia de conjugalidade, a partir da modernidade, passa a pressupor a constituição da intimidade entre os parceiros, destacando-a como condição para uma relação baseada na complementaridade entre os homossexuais e instrumentalizando a legitimação do "eu" a partir do "nós"[8]. Essa categoria é acompanhada por uma discussão sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo que ganhou força com a luta dos movimentos gays pela legalização da parceria civil desde 1995[9] (Mello, 2005).

Assim, pensar em casamento e/ou parceria civil entre homossexuais significa pensar também nos arranjos dessas relações. Compreender o que representa esses aspectos nas relações amorosas entre pessoas do mesmo sexo talvez seja uma oportunidade singular para entender que fatores são construídos pelo próprio casal para a criação de condições que assegurem o bem-estar físico e emocional dos membros da díade (Cf. HEILBORN, 2004; MELLO, 2005; KARTZ, 1996 e POLLAK, 1987). Essa temática aponta também para uma compreensão dos elementos, que representam os discursos dos homossexuais acerca daquilo que eles entendem por reconhecimento/aceitação por parte dos grupos de sociabilidade (amigos, familiares e vizinhos). Esta questão ganha relevância porque há no senso comum uma associação entre homossexualidade e promiscuidade, sendo esta última significada como a múltipla-parceria sexual.

O debate contemporâneo sobre o casamento/conjugalidade homossexual é um elemento importante na compreensão do lugar que ocupa a díade homossexual em nossa sociedade, além de levantar discussões acerca do papel da instituição casamento em nossos dias. Portanto, questões como: será o casamento homossexual a solução para o estigma social dos homossexuais? e: Não será esse arranjo conjugal uma forma de controle social oriunda das transformações empreendidas pelos sujeitos nos últimos anos? 

Portanto, a experiência de viver a dois é uma arte, pois os traços, os contornos e as cores de uma relação entre homossexuais masculinos são trazidos por discursos emoldurados em individualidades singulares que constitui o dia-a-dia dos homossexuais pesquisados.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


BARBOSA, Sônia Maria Costa
(1991) AIDS: Sexualidade e Família – O mito da relação AIDS e a homossexualidade masculina. Recife: UFPE.

 

BUTHLER, Judith (2003) O parentesco é sempre tido como heterossexual? Cadernos PAGU (21), Campinas, Núcleo de Estudos de Gênero – PAGU/Unicamp, pp. 219-260.

 

DIAS, Maria Berenice (2003) Homoafetividade – o que diz a Justiça! Porto Alegre: Livraria do Advogado.

 

DURHAM, Eunice (1982) Família e casamento. IN: Anais do Terceiro Encontro Nacional de Estudos Populacionais. São Paulo, pp. 31-48. Disponível em: <http://www.abep.org.br/usuario/GerenciaNavegacao.php?caderno_id=076&nivel=1> Acessado em: 20/10/2007.

 

FOUCAULT, Michel (2006) História da Sexualidade I: à vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal.

 

FRY, Peter (1982) Para Inglês ver: identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro: Zahar.

 

GAGNON, John (2006) Uma interpretação do desejo: ensaios sobre o estudo da sexualidade. Rio de Janeiro: Garamond.

 

GOMES, Purificacion Barcia (2003) Vínculos amorosos contemporâneos. São Paulo: Callis.

 

GREEN, James (2000) Além do carnaval: A homossexualidade masculina no Brasil do século XX.  São Paulo: UNESP.

 

HARAWAY, Donna (1994) Um manifesto para o cyborgs: ciência, tecnologia e feminismo socialista na década de 80. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque. Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco.

 

HEILBORN, Maria Luiza (2004) Dois é par: conjugalidade, gênero e identidade sexual em contexto igualitário. Rio de Janeiro: Garamond.

 

KATZ, Jonathan Ned (1996) A invenção da heterossexualidade. Rio de Janeiro: Ediouro.

 

MATOS, Marlise (2000) Reinvenções do vínculo amoroso: cultura e identidade de gênero na modernidade tardia. Belo Horizonte: Ed. UFMG.

 

MELLO, Luiz (2005) Novas famílias: conjugalidade homossexual no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Garamond.

 

PAIVA, Antonio Crístian Saraiva (2007) Reservados e invisíveis: o ethos íntimo das parcerias homoeróticas. Campinas: Pontes Editores.

 

PAKER, Richard (1991) Corpos, prazeres e paixões: a cultura sexual no Brasil contemporâneo. São Paulo: Best Seller.

 

POLLAK, Michel (1987) A homossexualidade masculina ou: a felicidade no gueto? IN: ARIÈS, P. e BÉJIN, A. (orgs.) Sexualidades Ocidentais. São Paulo: Brasiliense, pp. 54-76.

 

RIOS, Luís Felipe (2003) Parcerias e práticas sexuais de jovens homossexuais no Rio de Janeiro. Cad. Saúde Pública, vol.19 supl.2, p.223-232.

RUBIN, Gayle (1989). "Reflexionando sobre el sexo: notas para una teoría radical de la sexualidad". In: VANCE, Carole (Org.). Placer y peligro: explorando la sexualidad femenina. Madrid: Revolución Madrid, pp. 113-190.

UZIEL, Anna Paula (2002) Família e Homossexualidade: velhas questões, novos problemas. Tese de doutorado em Antropologia. Campinas: UNICAMP.

 

VOGT, Carlos et alli (org.) Caminhos Cruzados. São Paulo: Brasiliense, 1982.

 

WEEKS, Jeffrey. (1985) Sexuality and its discontents: meanings, myths, and modern sexualities. London: Routledge and Kegan Paul.




[1] Para um melhor aprofundamento acerca das discussões sobre parentesco e casamento gay ver Butler (2003). Esse texto também traz um debate acerca da heterossexualidade compulsória presente nos novos arranjos conjugais. Porém, quero deixar claro que essa abordagem não será tomada como central no meu trabalho diante das possibilidades de arranjos conjugais construídos pelos homossexuais.

[2] Sobre os valores fundantes dos novos arranjos conjugais (familiares), ver Durham (1982), Kartz (1996) e Mello (2005).

[3] Sobre a vida sexual dos brasileiros ver Parker (1991). Esse autor, analisando a sexualidade dos brasileiros, concluiu que a ideologia do erótico dá ênfase aos corpos e prazeres. Esse sistema compreende as práticas sexuais em termos das possibilidades de prazer que ele oferece, formando conceitos como excitação, desejo, sensualidade corporal, sensações de prazer e satisfação. Segundo esse autor, ao criar essas noções, a ideologia do erótico permite a elaboração de arranjos que vai de encontro com as regras da vida cotidiana, ou seja, o erótico rompe em certos momentos com os discursos impostos pelo dispositivo de sexualidade criando outros novos discursos, mais livres e criativos em relação à repressão e ao controle exercido pela sociedade.

[4] É importante destacar aqui o conceito de relações estáveis que norteia o meu trabalho. Para construir uma definição próxima da temática apresentada me fundamentei em estudos antropológicos que tratam de parcerias afetivo-sexuais e da Lei nº. 9.278/96, também chamada de Lei dos Conviventes e, que trata da formação de relações estáveis. Portanto, estou entendendo Relação Estável entre Homossexuais a convivência duradoura (no mínimo um ano de relação e coabitação), pública (entendida como a notoriedade da relação por parte de familiares, amigos e vizinhos) e contínua, estabelecida com o objetivo de constituição de família (FERNANDES, 2004).

[5] Ver Heilborn (2004), Matos (2000) e Gagnon (2006) acerca dos roteiros construídos nas interações cotidianas, que será aprofundado no Referencial Teórico.

[6] Para ampliar as discussões e os conceitos de comunidades homossexuais, ver os textos de Haraway (1994) e Rios (2003).

[7] Estou entendendo Conjugalidade Homossexual como uma relação social que se institui em um par e que faz opção por uma determinada gestão da vida a dois. A conjugalidade será aqui enfocada também como a constituição de experiências de novos mecanismos sociais que permite a formação de configurações plurais de família. Para compreensão dessa conceituação, ver textos de Heilborn (2004, p. 14) e Matos (2000, p. 104).

[8] Ver as discussões de Melo (2005) e Paiva (2007).

[9] Ver no anexo nº. 2 o Projeto de Lei nº. 1.151/95, criada pela Deputada Marta Suplicy acerca da parceria homossexual que ainda tramita no Congresso Nacional desde 1995. Segundo Mello (2005), várias mudanças foram executadas neste projeto de lei, mas permanece ainda engavetado no Congresso por falta de um interesse político comprometido com esse segmento da sociedade civil.