VITIMIZAÇÃO POLICIAL MILITAR FORA DO SERVIÇO

MARCOS LEAL

“Os policiais precisam reconhecer que para servir e proteger a comunidade, eles precisam primeiro estar preparados para proteger a si mesmos” (Pinizzotto, 1997, p.47).

RESUMO:

            No Rio de Janeiro, a vitimização policial militar é uma questão para o campo da segurança pública. O presente trabalho tem por objetivo, produzir uma análise de casos classificados como “vitimização policial” pela mídia e pela polícia e, a partir disso, pensar como o Estado, através das instituições, expõe seus agentes ao risco, tornando-os vítimas do próprio sistema de segurança pública e como as politicas de combate as drogas e outras questões conjunturais podem ter influenciado na estruturação das corporações, para formular suas práticas e doutrinas, que afetam a forma que seus integrantes agem.

Palavras-Chave: morte de policiais, vitimização policial, porte de arma fora do serviço.

ABSTRACT:

            In Rio de Janeiro, the military police victimization is a matter for the field of public safety. This work aims to produce an analysis of cases classified as "police victimization" by the media and the police, and from that, think how the state, through the institutions, exposes its agents to risk, making them victims of their own public safety system and how policies to combat drugs and other cyclical issues may have influenced the structuring of corporations to formulate their practices and doctrines that affect the way that its members act.

Key-words: death of police officers, police victimization, bear arms out of service.

INTRODUÇÃO:

A escolha do presente tema parte da minha vivência como policial militar que, ao atuar no Batalhão de Policiamento em Vias Especiais (BPVE), no serviço de visibilidade, durante uma ocorrência na Avenida Brasil, minha guarnição foi alvejada por traficantes do complexo da Maré. Na ocasião três policiais sofreram violência letal e vieram a falecer, foi um período que muitas viaturas sofreram ataques. Nessa época vários agentes, inclusive eu, camuflavam a farda na mala do carro, assim como minha identificação, e não portavam arma de fogo, pois a localidade do batalhão situado em Vila Kenedy era distante de minha residência em São Gonçalo. Assim, durante o trajeto de ida e volta para o trabalho passava entre áreas criticas onde era comum ocorrer arrastões ou falsas blitz, e, em decorrência disso, alguns colegas foram vitimados por serem identificados como policiais militares.

A questão vitimização policial militar surgiu após uma ocorrência no dia 01 de maio de 2004, numa noite de sábado, feriado do dia dos trabalhadores, quando assumi o serviço e, como de praxe, procedendo para o local de Ponto Base (PB), situado na Av. Brasil. Havia uma determinação para que no período da noite duas viaturas atuassem juntas, pois na ocasião os “BONDES”[1] que transportavam criminosos de uma favela para outra, estavam atacando guarnições da PM. Cumprindo a determinação, procedemos para a entrada da Vila do João e atuamos no baseamento juntamente com outra guarnição, por volta das 21:00, um primeiro disparo atingiu o radiador do carro, logo em seguida vários disparos atingiram a viatura e os policiais que estavam a sua volta.

Após a chegada das viaturas que procederam em apoio e depois de identificar os prejuízos, foram constatados que além do Soldado Vieira ter sido alvejado com um tiro de fuzil que entrou pelas costas e saiu pelo peito vindo a óbito no local, o Soldado Messiba foi alvejado na coxa atingindo a sua femural, perdendo muito sangue e, em decorrência dos ferimentos, veio a óbito, o Soldado Paulo Roberto que foi alvejado na altura do abdômen ficou internado e veio a óbito 10 dias depois. Nesta mesma época acontecia um fenômeno chamado “falsas blitz[2]” onde marginais efetuavam bloqueios nas ruas paravam carros para efetuar assaltos, arrastões e abordavam pessoas para revista-las e roubar os seus pertences, com isso muitos policiais militares voltando para casa ou indo para o serviço acabavam sendo: parados, identificados e mortos, o que fez alguns colegas de corporação desenvolver a estratégia de andar com a farda, escondida na mala do carro e desarmado, pois seria desproporcional um confronto com vários elementos armados de fuzil e o policial militar sozinho atirando com a sua arma particular, habitualmente utilizado naquele período um revolver calibre .38 ou uma pistola calibre .380, nesta época se pode observar que na folga o mais seguro era andar desarmado e sem nenhum objeto que pudesse identificar como policial.

Tabela 1: PMs mortos fora do serviço de Janeiro/2007 à Setembro/2014. (Batalhão)

Fonte: Diagnóstico de vitimização policial – EMG/EGQ[3] – PMERJ – Junho/2015.

Trazendo esta questão para a atualidade, após 11 anos desta experiência, hoje servindo no 12º BPM - Niterói, unidade na qual o diagnóstico feito pela instituição, mostra o maior números de policiais militares mortos fora do serviço, nos últimos 7 anos. Elaborei um trabalho que pretendo pensar como são classificados os casos de mortes dos policiais na folga?  Em diálogo com o conceito trazido por ASÚA, Jiménez de. (1961), tais casos podem ser considerados “vítimas indiferentes” ou “vítimas determinadas”? A forma como as politicas públicas de segurança orientam as instituições, voltadas para os confrontos com a criminalidade, contribuiu para o impacto nos índices de vitimização?

O primeiro obstáculo da pesquisa, além das imposições de tempo, foi o acesso às informações e dados necessários para a realização do trabalho. No dia 16 de março de 2015, foi protocolado, um ofício da Universidade Federal Fluminense junto ao 12º Batalhão de Polícia Militar, juntamente com uma solicitação confeccionada pelo autor para analisar algumas averiguações sumárias[4] de policiais militares vitimados fora do serviço, assim como na Delegacia de Homicídios de Niterói, onde mesmo depois de várias idas ao setor que foi dada a entrada inicial não logrou êxito em obter uma resposta que autorizasse o acesso as informações solicitadas.

Diante da negativa de acesso, iniciei contato informal com pessoas indicadas por colegas, que forneceram algumas informações através de conversas, nas quais pude perguntar como funciona administrativamente a “notícia de baixa” de um policial militar vitimado fora do serviço. Além disso, buscar entender como os policiais militares compreendem o porte de armas e outros comportamentos em momentos de folga, organizei uma pesquisa, enviada eletronicamente para meus colegas policiais e cujos resultados serão apresentados no artigo. Em busca de dados relativos à morte de policiais foi indicado por um colega da Diretoria de Assistência Social – DAS, acessar o site da Roberta Trindade, jornalista que, segundo ele,  tem um bom relacionamento com os comandantes e publica matérias no jornal O Dia, se demonstrando interessada às causas da PM, reivindicando das autoridades governamentais uma solução para a diminuição nas mortes de policiais, inclusive a própria diretoria utiliza essas notícias informadas pela jornalista para contabilizar os casos de “vitimização policial”.

Ao trabalhar com o que é veiculado pela jornalista Roberta Trindade, é preciso lembrar que seu interesse é trabalhar as notícias sobre a violência[5] urbana, de confrontos entre policia e bandido, é o que mais se veicula na mídia, é o que mais vende jornais, é o que dá mais ibope, essa falta de estrutura e estabilidade na segurança pública é noticiada pela imprensa que se justifica dizendo cumprir o papel social de cobrar do Governo e das autoridades soluções que o cidadão reivindica, logo o seu discurso[6], embora legitimo, é direcionado e isso precisa ser problematizado na construção do presente trabalho.

O simples fato de os jornalistas escreverem orientados pela imagem que têm dos leitores permite afirmar que estes, em alguma medida, interferem no processo de produção das notícias, gerando aquilo que, nos termos de Boudieu, pode-se-ia chamar de polidez. Conforme esclarece o sociólogo, “toda expressão é um ajustamento entre um interesse expressivo e uma censura constituída pela estrutura do campo em que ocorre esta expressão”(SILVA,E. 2007, p.106)

Por outro lado, outra parcela da imprensa explora as mazelas e a imagem do policial truculento, corrupto e inconsequente e tais notícias são publicadas em jornais com uma linguagem generalista, colocando todos integrantes de uma corporação com mais de 50.000 homens no mesmo estereotipo, como exemplo tomamos a nota do jornal o dia titulada como “cárcere privado” do jornalista Cláudio Humberto de Oliveira Rosa e Silva, publicado no dia 19 de setembro de 2003, “de um policial militar para um leitor da coluna, no Rio: Sabe qual a menor prisão do mundo? Uma farda da PM: só cabe um bandido”. Embora seja outro tipo de vitimização não enquadrada nesta pesquisa, contribui para a construção de uma consciência social contra a polícia militar e consequentemente na naturalização nos casos de vitimização policial militar.

A naturalização quanto às concepções e práticas cotidianas, metaforicamente representada pela “mudança de marcha”, revela a existência, entre os jornalistas, de uma disposição incorporada, ou melhor, de um habitus que os leva a classificarem de determinada forma os acontecimentos, reconhecendo neles, um caráter de maior ou menor noticiabilidade. Assim, se, a exemplo do que se passa com os textos antropológicos, a notícia pode ser tomada como uma “ficção”, ou seja, “algo construído”, “modelado”, enfim, “uma fabricação” (GEERTZ, 1989), tal disposição deve ser concebida como o elemento responsável pela instituição dos “princípios abstratos” que orientam as representações dos jornalistas e, por extensão, moldam a sua produção de “estórias sobre ocorrências reais” (GEERTZ, 2000, p.325). Tendo por base categorias socialmente constituídas de percepção do mundo social. (SILVA, E. 2007, p.115) 

Dessa forma a “mídia” se posiciona de maneira ambígua, ora nas ações de segurança pública, incentivando o policial partir para o combate, diariamente é comum apresentadores de televisão declarar: “bandido bom é bandido morto”, “larga o aço, senta o dedo” ou “bandido tem que ser enterrado de pé, para ocupar menos espaço”, em outros momentos atacando as atuações da polícia, “despreparo dos policiais e segurança no Rio de Janeiro é tema de reportagem do Jornal da Record[7]”, onde não deveria existir uma política de confronto e sim de proteção ao cidadão, que o governo não reformula sua tática de atuação no combate a criminalidade, cria-se a idéia de que ou se tem uma polícia eficiente no combate ao crime, ou se tem uma polícia respeitosa dos direitos humanos conforme a carta da ONU. Isso acaba comprometendo o trabalho da polícia que sem definir um posicionamento claro e objetivo, produz agentes sem limites, sem compromissos com a cidadania e com a democracia, sem respeito às próprias leis, e sem um mandato[8] que direcione suas práticas dentro da legalidade e legitimidade.

Nesse aspecto, as notícias sobre mortes de policiais e espetacularização da violência criam na sociedade um sentimento de (in) segurança, segundo SILVA, J. (2008), classifica a (in) segurança objetiva é o risco concreto de alguém ser vitimado e a (in) segurança subjetiva é o medo coletivo de ser vitimado. Com essa lógica o cidadão ao ver que os profissionais de segurança pública estão sendo vitimas da criminalidade, cria-se uma incerteza de como se pode ter segurança garantida pelo Estado se os próprios profissionais de segurança não estão seguros?

Longe de exacerbar a “violência”, a imprensa apenas refletiria, por meio dos noticiários, a falta de garantia dos direitos civis que, nas últimas décadas, se impôs à população do Rio de Janeiro. Diante do quadro generalizado de insegurança e medo que acompanham o aumento dos índices de criminalidade na cidade, os jornalistas não teriam, pois, o que fazer, senão aumentar, também, o número de reportagens e páginas dedicadas à temática policial. (SILVA, E. 2007, p. 148)

O ideário de que a segurança pública no Rio de Janeiro está falida, é noticiado nos jornais e com isso o sentimento de (in) segurança, entre a população, só tende a aumentar.  Foi divulgado no jornal O Dia de 09 de maio de 2015, uma matéria que chamou atenção para essa problemática da segurança aos profissionais de segurança pública:

O diretor do Sindicato dos Policiais Civis (Sinpol), Fernando Bandeira, pediu ao secretário José Mariano Beltrame que interceda para que policiais militares ajudem a garantir a segurança das delegacias. Na madrugada do dia 27 de dezembro de 2014, agentes da 34ª DP (Bangu) fecharam a rua Sabogi, onde fica a delegacia, com duas viaturas, para que nenhum veículo passasse em frente ao prédio da Policia Civil. As luzes foram diminuídas lá dentro, e nenhum policial se arriscava a ficar no balcão. O cenário refletia o medo que tomou todo o bairro depois de uma operação da PM na Vila Aliança na manhã anterior e uma tarde de ameaças de arrastões, boatos de bondes armados e incêndios que foram provocados em represália à ação da PM.

            Essa lógica criada em torno da (in)Segurança, que o cidadão sente, é transmitida pela mídia e disseminada entre as pessoas que evitam circular pela cidade, com receio de serem também capturados por traficantes como se fossem alvo da criminalidade, assim como é o policial. O Governo no intuito de prestar contas instantâneas à sociedade cria projetos para infundir uma sensação de segurança à população, executando somente através da polícia suas ações de controle social, interesse da coletividade e combate a criminalidade.

Acumulação social da violência é um processo que não se relaciona apenas com o banditismo, mas também com a atuação da polícia e da imprensa, com a sociedade como um todo. De acordo com esse processo, a violência de hoje é apoiada em um determinado patamar de violência do passado, e a violência do futuro será apoiada no patamar atual, em uma lógica acumulativa (MICHEL MISSE, 1999)

             Assim, além das informações coletadas no site da jornalista Roberta Trindade, foram realizadas entrevistas de caráter quantitativo, e distribuídas aos policiais militares via redes sociais, para que os mesmos pudessem responder tais perguntas colaborando assim com o entendimento de algumas questões que, na visão do autor, podem contribuir para o aumento dos casos de vitimização. Por fim, foi feito pesquisa bibliográfica, relacionada com o assunto, tais como monografias e artigos de autores que seguiam a mesma linha do tema proposto, bem como jornais com notícias sobre o aumento de mortes de policiais na folga, revistas com entrevista de especialistas e sites de universidades que fornecessem alguma informação sobre pesquisas anteriores do mesmo tema.