Violência familiar, autismo e silêncio: entretecendo algumas discussões
Publicado em 29 de março de 2013 por Aldo Sena de Oliveira
Aldo Sena de Oliveira
Pedro Henrique de Oliveira Gomes
Palavras chave: abuso sexual, infância, autismo, silêncio.
“para manter o imaginário em andamento com sua vida
de elaborações significativas, as interpretações conceituais devem ser silenciadas.
- Mc Coneghey, 1981 -
A utilização de diferentes textos culturais como o cinema, pode ampliar e facilitar a discussão de temas polêmicos, de difícil discussão e que possam causar algum tipo de estranhamento inicial, principalmente no interior de sociedades pautadas na “tradição”.
Apropria-nos do suspense de Bruce Beresford (Testemunha do silencia- Silent Fall, 1994) protagonizado por Richard Dreyfuss (que interpreta Jake Rainer, o psicólogo) no intuito de problematizar o abuso sexual infantil, sobretudo de uma criança autista de nove anos que, sela em sua memória cenas da morte brutal de seus pais. É de fundamental importância o entendimento sobre a metáfora do silêncio, o papel da linguagem e a proximidade com a realidade de uma criança autista.
O silêncio assume a primazia de uma pessoa psíquica, responsável por operações concretas, de fundamental interesse: a imaginação que pode ser considerada como processo de elaborações significativas. Neste aspecto a imaginação se aprofunda através do silencio e cria domínios superiores no entendimento da realidade (daí a explicação do fato de estados autoritários submeterem a imaginação à doutrina).
A aquisição da linguagem oral é considerada um marco na vida do ser humano. Pode-se dizer que a linguagem é o alicerce da vida social, e pode ser conceituada como um sistema simbólico construído socialmente e governado por regras que sevem ao propósito da comunicação (Warren e Rogers Warren, 1985). A criança sendo participante ativa do seu meio social desde o nascimento aprende a usar símbolos, gestos, certos sons e até combinações de sons, para controlar intencionalmente o seu ambiente. Algumas apresentam problemas na aquisição da linguagem e da comunicação, estes e estas são considerados autistas, que assim como Timmy do suspense acenam para um “atraso” na aquisição da fala e padrões atípicos no desenvolvimento da comunicação. Vale lembrar GAUDERER (1985):
““... a incapacidade de comunicação do autista compromete tanto as habilidade verbais quanto
Às não verbais. A linguagem pode estar totalmente ausente na criança autista, mas quando ocorre.
Seu desenvolvimento, ela apresenta as seguintes características: estrutura gramatical imatura,
ecolaria imediata ou mediata, reversão de pronomes, afasia nominal (inabilidade de nomear objetos),
inabilidade de usar termos abstratos, linguagem metafórica (utilização de sons que tem
significados idiossincrásicos e cujo o sentido não é claro) e melodia sonora anormal...”
No filme, Timmy apresentava a peculiar propriedade de imitar vozes com timbres bem próximos ao locutor, o que foi decisivo no desvendar do assassinato.
Trabalhar com crianças autistas tem sido bem desafiador aos psicopedagogos e psicopedagogas, que buscam transgredir ao otimismo ingênuo que permeam o trabalho com as crianças; ao naturalismo romântico de Jean - Jacques Rousseau; a bondade paternalista de Spencer Tracy em “Boystown” e as crianças assexuadas e inocente de Alice Miller, que idealizam a figura infantil negando-a seu ou sua autentica sexualidade “precoce”. É importante lembrar o difícil trabalho de Jake para acessar a memória de Timmy, utilizando-se de jogos e sequencias mesmo que não haja exploração da dimensão sexual.
Vale salientar que o assédio sexual é quando se tem “uma aproximação sexual não bem vinda, uma solicitação de favores sexuais ou qualquer conduta física ou verbal de natureza sexual” (Abuso Sexual - A Violência como Doença). Andi em 2002 definiu abuso sexual como qualquer “ato ou jogo sexual em que o adulto submete a criança ou o adolescente (relação de poder desigual) para se estimular ou satisfazer-se sexualmente, impondo-se pela força física, pela ameaça ou pela sedução, com palavras ou com oferta de presentes”.
O abuso sexual pode ocorrer de diversas formas, a forma presente no filme é o abuso sexual intrafamiliar, que também pode ser chamado de abuso intrafamiliar incestuoso. Este pode ser definido como “qualquer relação de caráter sexual entre um adolescente e uma criança, quando existe um laço familiar (direto ou indireto) ou relação de responsabilidade” (Cohen, 1993; Abrapia, 2002). E o livro A Paz Começa em Casa da Pastoral da Criança é um pouco mais abrangente quando define o abuso incestuoso como “qualquer relação de caráter sexual entre pessoas de uma mesma família”. Acontece no filme entre o pai e seus dois filhos.
O abuso sexual pode ocorrer com ou sem contato físico, como aparece no filme. Há um momento em que surge uma suspeita de que Timmy havia cometido o crime, e uma causa para esta hipótese foi a descoberta de fotos pornográficas do jovem nos pertences de seu pai. Tem-se então um exemplo de abuso sexual sem contato físico. A pornografia segundo livro Guia Escolar - Rede de Proteção à Criança também “pode ser enquadrada como exploração sexual comercial, uma vez que, na maioria dos casos, o objetivo da exposição da criança ou do adolescente é a obtenção de lucro financeiro”, o que não acontece no suspense, no qual as fotos eram para simples satisfação do opressor, exemplificando assim o que o livro A Paz Começa em Casa da Pastoral da Criança traz como definição para o abuso pornográfico, dizendo ser “uma forma de violência sexual na qual, principalmente crianças e adolescentes, são usados como atores/atrizes ou modelos em vídeos, fotografias, gravações ou filmes pornográficos”.
No filme citado, os responsáveis pela investigação dos assassinatos descobrem sêmen do opressor em sua cama o que os leva acreditar que ocorria o abuso sexual com contato físico com o jovem pelo seu pai. O abuso sexual com contato físico é definido, também, pelo livro Guia Escolar - Rede de Proteção à Criança como “atos físico-genitais que incluem carícias nos órgão genitais, tentativas de relação sexuais, masturbação, sexo oral, penetração vaginal e anal. Podem ser tipificados em: atentado violento ao pudor, corrupção de menores, sedução e estupro”, não fica explícita a forma de abuso sofrida por Timmy e Silvie no suspense. As especificações de violências sexuais especificadas também eram cometidas pelo opressor a sua filha, antes deste tomar o seu filho mais novo como alvo de seus desejos doentios.
Ao citar a violência contra criança lembro um trecho do livro A Paz Começa em Casa, da Pastoral da Criança:
“Violência sexual, principalmente contra crianças, é uma das piores formas
De agressão que pode existir. Ela acontece quando uma criança é usada para
A satisfação sexual de um adulto ou mesmo de um adolescente.
“Tanto as meninas como os meninos são vítimas deste tipo de violência”
No suspense, a violência sexual ocorre de forma repetida, dentro da casa e sem evidências físicas.
Entretecendo, sugerimos o abuso sexual como sendo o lócus de auspício talvez atroz, que mais uma vez atua na construção de uma subjetividade específica. Basta lembrar as palavras do psicólogo no suspense:
““... vítimas de abuso são sempre bons atores, têm de ser.
Vivem a vida inteira com medo e vergonha, fingindo.
Que nada está errado... “É a sua maior desempenho...”.
A explicitação acima aufere significado ao comportamento de Sylvie, garota de dezoito anos, que no suspense após sofrer abusos consecutivos do pai, passou a cultivar a beleza corpórea e apresentar comportamentos diferenciados entre homens e mulheres. O abuso pode ter contribuído para que Silvio se tornasse uma jovem fria, que no intuito de defender o irmão assassinou aos próprios pais, e quase o fez com o psicólogo não fosse à intervenção de Timmy.
“A violência existe no campo, nas cidades nas estradas, no trabalho e nas escolas”.
E na maioria das vezes ela é, ao mesmo tempo, causa e conseqüência de uma violência muito maior:
“A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA, ou seja, aquela que vivemos dentro de nossas próprias casas”.
(A Paz Começa em Casa. Pastoral da Criança. Curitiba. 1999).
“A violência domestica, ou intrafamiliar, é a que marca mais profundamente o ser humano
Ela acontece principalmente por três motivos: abuso de poder do mais forte contra o mais fraco;
A reprodução da violência, ou seja, pais que quando crianças também forma maltratados;
A situação de pobreza e miséria em que se encontra a família”
(A Paz Começa em Casa. Pastoral da Criança. Curitiba. 1999).
A jovem diante da cena de seu pai sendo pego por sua mãe abusando sexualmente de seu irmão, e devido a todo o seu ódio e revolta acumulada durante anos, esfaqueia seus pais em um ato de revolta.
A literatura é norteada por imensas listas de prováveis danos psicológicos de quem sofre assédio e/ou abuso sexual, podendo o jovem abusado se tornar um futuro abusador, e a jovem podendo se tornar depressiva, isolada, dentre outros. No suspense, Sylvie se mostra uma pessoa calculista, determinada e fria, não se retendo diante de qualquer obstáculo que lhe anteceda, uma personalidade "montada" por condições de desrespeito ao desenvolvimento natural imposta por seu pai e opressor. A violência doméstica não se expressa, somente, através de atos que levam a dor física por contato, mas também através de omissões realizadas por sujeitos responsáveis pela criança ou adolescente, como é o caso da mãe de Silvye e Timmy.
O silêncio da mãe, que sabe que o pai abusa sexualmente a filha e o filho, mas finge não ver, acaba por facilitar, assim, ainda mais a violência. “Essa situação acontece muitas das vezes para preservar o núcleo familiar e também, em alguns casos, por causa da dependência financeira da mulher em relação ao marido. Nesses casos, o medo e a omissão incentivam a família a formar um muro de silêncio, difícil de penetrar” (A Paz Começa em Casa. Pastoral da Criança. Curitiba. 1999). A mulher, dependente financeiramente do marido e também a fim de manter a boa visão do seu núcleo familiar perante a sociedade, pode calar-se e omitir todo o acontecimento, e ainda procurar fuga em relações amorosas fora do âmbito familiar.