A violência é uma ação que simplesmente desconsidera o outro. Ela pode ser de ordem física, mas também psicológica ou simbólica, e a história da humanidade está intimamente relacionada a ela, tanto nas guerras, como nas religiões, na cultura e nas artes, no trabalho do homem. Murilo Mendes ressalta, por exemplo, que o nazismo foi uma "crueldade organizada".
A violência é inimiga da liberdade com autonomia, já que o império do medo nos leva ao ataque nem que seja pela autoproteção.
Em quase todos os registros literários encontramos sua presença, inclusive, ela é bem demarcada na literatura brasileira em autores como Machado de Assis, Brás Cubas, Gonçalves Dias, Euclides da Cunha, entre tantos outros, chegando aos nossos tempos pela literatura de cordel e o sofrimento infringido aos povos sertanejos.
Murilo Mendes reelabora em suas obras, com sua veia satírica, o passado de nosso país, ancorado ao passado como forma de compreensão do presente e, para compreender o presente, o passado não pode ser desconsiderado, criando um movimento "pendular dialético".
Busca-se a representação, por meio de romances, compostos em redondilhas maiores, a representação do oprimido que toma a palavra. Analisa-se o texto "Marcha final do Guarani", de Murilo Mendes, em que nota-se a simpatia do autor pelos derrotados da história ? no caso, os indígenas ?, mas sem a idealização de outros, mas com olhos satíricos dos modernistas. Fica claro, a todo instante, as referências à Gonçalves Dias, José de Alencar e Carlos Gomes.
Desde o título, percebem-se as intenções do autor. O gesto triunfal da marcha que dá lugar ao evento da destruição do povo. "Deuses" são os homens brancos e suas armas de fogo. O próprio ritmo da poesia remete à tradição literária como símbolo nacional. Ao despir o índio de seus trajes para colocá-lo de fraque, percebe-se a roupagem dada ao soneto, imitando, ironicamente, a tradição européia.
Diferentemente de Oswald de Andrade, com seu índio fundamentalmente romântico, mas resistente à cultura e política expansionista européia, o nativo de Murilo Mendes é assimilado dialéticamente pela cultura Ocidental. Ele é digerido, de modo antropofágico, nas questões culturais impostas pelo colonizador. Representa uma assimilação da cultura do branco, ao mesmo tempo que suporta a formação cultural brasileira.


1. Relação entre a colonização de Murilo Mendes, no texto de Valmir de Souza e a obra de Debret
Faz-se agora uma comparação com o índio pelos olhos de Murilo Mendes e o nativo registrado nas pinturas de Jean-Baptiste Debret.
Ao buscar viabilizar a sua permanência no Brasil, o governo de D. João VI criou uma série de incentivos e instituições culturais. Um destes empreendimentos foi a célebre Missão Artística Francesa, composta por um grupo de pintores que chegaram aqui em 1816. Debret se tornou o mais conhecido deles, e suas pinturas são utilizadas até hoje em livros didáticos, e é freqüentemente citado pelos historiadores como um registro da vida cotidiana no Rio de Janeiro, nas primeiras décadas do século XIX.
Debret, em 15 anos de residência no Brasil, formou a primeira geração de pintores brasileiros com treino acadêmico, iniciou o gênero da pintura histó¬rica no Brasil e instituiu a rotina e a prática de ensino em ateliê. Foi também o idealizador das duas primeiras exposi¬ções de arte realizadas no Rio de Janeiro, res¬pec¬ti¬va-mente em 1829 e 1830.
O pintor encontrou no Brasil uma situação social muito diferente da que conhecia na França: escravidão, uma família real praticamente exilada, uma vida urbana precária e pouco complexa. Nesse ambiente, a concepção neoclássica de arte, regida pelas noções de exemplo e virtude, não poderia fazer sentido. Sem falar que a própria sociedade rústica carioca mal criava oportunidades de trabalho para pintores.
A maioria das suas obras tem caráter documental, principalmente porque, partindo de uma representação iconográfica, encontramos indícios sociais que não requerem explicações, o que não acontece com documentos textuais.
A análise de suas produções ressalta a sua intenção de retratar com precisão os cenários em que estava inserido e a sua visão da realidade indígena. Provavelmente retratava aquilo que lhe era "estranho" aos olhos, logo, seu sig-nificado "real" era subtraído, sendo mascarado pelos conceitos pré-concebidos do artista, que procurava moldar a cena em registros compreensíveis, para ele e a sociedade a qual se destinava.
As obras de Debret que retratam indígenas destacam o vigor desse povo seminu, embora, muitas vezes, perceba-se feições neoclássicas idealizadas, retratando-os como "nobres selvagens". Há uma preocupação em mostrar o mundo moderno com a difusão da civilização e do progresso da humanidade.
Como exemplo do exposto, usaremos a obra de "Bugres, Província de Sta. Catarina"

Nesta obra vemos a representação de uma tribo em diversas atividades econômicas, como a coleta de frutos, a navegação e a caça. Na figura central o artista retratou um índio vestido com uma camisa e usando um colar com o que parecem ser sementes e uma faca, carrega uma lança, flechas e um animal morto ? um filhote de onça. Duas mulheres em segundo plano estão colhendo frutos de uma árvore. Vestem uma espécie de túnica, têm cabelos longos, presos em coques com uma tiara e apresentam pinturas nos rostos. Elas também carregam flechas e arcos. Ao fundo vêem-se barcos onde os índios estão transportando passageiros ? colonos ou viajantes ?, uma aldeia com cabanas de madeira além de outros indivíduos da tribo, colhendo madeira ou cuidando do que parece ser uma horta.
Nesta composição o artista procurou demonstrar a inserção dos índios nas atividades econômicas da colônia, como a agricultura e o transporte de passageiros pelos rios. Além disso, faz referência a atividades tipicamente nativas dos povos brasileiros, como a caça e a coleta de frutos, mostrando também um animal da fauna brasileira, a onça. Analisando a forma como os nativos estão vestidos percebemos que eles têm ou tiveram contato com os colonos, principalmente os missionários, posto que todos os sujeitos retratados trajam pelo menos uma peça de roupa européia. O fato de o indivíduo trazer um facão como adorno, pendurado ao pescoço, mostra o valor que os nativos davam a certos objetos de origem européia. Sem o conhecimento das técnicas de como forjar o ferro, os nativos viam tais objetos como possuidores de grandes poder e magia, tal poder transmitia-se a quem o possuísse. A utilização dessas ferramentas, por facilitar a realização das atividades, já demonstraria uma posição alta na tribo, utilizá-lo simplesmente como adorno representava também grande riqueza. Além do que, sua presença ajuda a reforçar a idéia do contato desses índios com os brancos.
As figuras femininas representadas lembram muito mais figuras gregas das imagens de Ártemis, deusa da caça e da guerra, que índias. A presença de um animal feroz ? a onça ? parece querer reforçar essa aproximação, pois esta deusa era também a senhora das feras. Talvez a evocação de tal semelhança deva-se ao caráter agressivo das mulheres dessa tribo.
Nas palavras de Valéria Marins, temos uma síntese da obra de Debret, "como podemos concluir a partir das análises feitas ao longo deste estudo, em sua obra sobre o Brasil, Debret conseguiu mais do que sua intenção inicial de registrar, numa série documental, diversos dados sobre as populações do Brasil do século XIX; contribuiu para a construção do imaginário brasileiro acerca de suas populações nativas".
Contrastando com a visão satírica de Murilo Mendes, destacada no texto de Valmir de Souza, percebemos que os dois artistas, cada um com suas especificidades, tem visões antagônicas sobre os nativos brasileiros. Debret retrata o índio que aceitou a cultura e introjetou costumes europeu, de forma romântica e pacífica, misturando-os, com certa amabilidade, aos seus. Murilo Mendes os enxerga deglutindo essa cultura expansionista européia. O índio, para Mendes, aceita essa submissão, mas muito mais por uma imposição escravagista e capitalista do que por ter "boa-vontade" para com os homens brancos.
Murilo, muito provavelmente, tenha uma visão mais realista do que deve ter sido, para a população indígena, ser massacrada e escravizada pelo invasor. Enquanto a visão de Debret, mesmo tendo mais uma intenção documental do que crítica, mostra apenas uma certa subserviência de índio ao europeu.


Referências
BARROS, M. G. R. Jean Baptiste Debret: as representações artísticas do pintor-viajante no Rio de Janeiro do Século XIX. Revista Museu. Disponível em: <http://www.revistamuseu.com. br/artigos/art_.asp?id=2991>. Acesso em: 10 jun. 2009.
PICCOLI, Valéria. O Brasil na viagem pitoresca e histórica de Debret. 19&20 - A revista eletrônica de DezenoveVinte. V. II, n. 1, jan. 2007. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/19e20/>. Acesso em: 11 jun. 2009.
ESTADO DE SÃO PAULO. Debret: um neoclássico diante da miséria tropical. 7 mar. 2008. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20080307/not_imp136168,0.php>. Acesso em: 12 jun. 2009.
SOUZA,Valmir de. Cultura e literatura: diálogos. São Paulo: Ed. do Autor, 2008.
MARINS, Valéria C. N. Debret e os índios do Brasil. Fundação Oswaldo Cruz . Casa de Oswaldo Cruz. Disponível em: <http://www.coc.fiocruz.br/atualidades/solar/valeria_marins.pdf>. Acesso em: 11 jun. 2009.