Introdução

O presente artigo realiza uma análise da violência na formação social brasileira a partir de uma abordagem histórica e cultural. São considerados aspectos econômicos, jurídicos e políticos, como também a dimensão cultural presente nos modelos de individualismo, a lógica do “jeitinho” e da “vantagem”. Os argumentos utilizados foram constituídos a partir de um estudo sobre violência, desenvolvido no Mestrado em Educação e Contemporaneidade da Universidade do Estado da Bahia, entre os anos de 2009/2011.

As formas de atribuir sentido ao que se convencionou chamar de violência variam no tempo e no espaço, de cultura para cultura, o que se mantém constante é alguma de suas modulações. Mudam os atores e os contextos, porém a vida social, em todas as formas conhecidas, ainda não se revelou imune ao fenômeno (VELHO, 2004). Dissertar sobre violência, portanto, exige esclarecimentos conceituais, que possibilitem balizar determinadas fronteiras para pensar o tema.

A palavra violência tem sua origem no latim, violentia, que reporta a vis, que significa força física, vigor.  Para Zaluar (1999), esta força torna-se violência quando ultrapassa determinados limites, ou perturba acordos tácitos e regras que ordenam relações. A percepção do limite e da perturbação (e do sofrimento causado), que vai caracterizar um ato como violento ou não, sempre varia de acordo com o contexto histórico e cultural. Isto dificulta elaborar uma definição fechada do fenômeno, sempre contingente e relativo. A autora conclui que a violência constitui um tipo de relação social marcada pela negação do outro devido ao “[...] pouco espaço existente para o aparecimento do sujeito da argumentação, da negociação ou da demanda, enclausurado que fica na exibição da força física pelo seu oponente ou esmagado pela arbitrariedade dos poderosos que se negam ao diálogo” (p. 8). A palavra violência, portanto, deve ser escrita no plural, violências, podendo se estabelecer tanto no nível físico, como no nível das palavras, gestos ou silêncios. As violências encontram-se presentes nos conflitos entre os indivíduos, como na própria estrutura da sociedade, através dos seus valores e modelos de relações (BOURDIEU, 1975).

Importante lembrar que a própria concepção de outro situa a diferença como fundamento da vida social, posto que esta se efetiva através da dinâmica das relações estabelecidas. Segundo Velho (2000, p. 11) “[...] a diferença é, simultaneamente, a base da vida social e fonte permanente de tensão e conflito”. Desta forma, o autor afirma que a vida em sociedade não se constitui a partir de processos homogêneos, mas sempre marcada, em algum nível, pelo dissenso, sendo que os conflitos podem assumir a dimensão de negociação como também de manifestações violentas.

Com o aumento da criminalidade em todo mundo ocidental, a partir da década de 80 do século passado, o tema violência ganha grande visibilidade, produzindo forte sensação de medo e insegurança entre as pessoas (ADORNO, 2002). Contudo, a pacificação dos costumes e a tentativa de impedir os indivíduos de usarem a força física entre si, não constitui um fenômeno recente. Remonta ao surgimento do Estado moderno, no contexto de transição do feudalismo para o capitalismo, ocorrido na Europa ocidental entre os séculos XV e XVIII (Weber, 1991).

 Elias (1993) lembra que em uma sociedade onde não existe um monopólio central forte e estável (Estado), existe maior espaço para manifestação livre das emoções e grau mais alto de ameaças físicas. Segundo o autor, o controle da violência física se torna um imperativo na medida em que a sociedade fica especializada, com maior divisão do trabalho, quando os níveis de interdependência entre os indivíduos aumentam. Nestes contextos se torna uma ameaça social o indivíduo que expressa livremente seus impulsos e emoções.

Na Grécia antiga, por exemplo, com a fragmentação do poder entre as cidades estado não havia maiores esforços no sentido de conter a violência. Os próprios cidadãos eram responsáveis pela sua segurança, ou seja, não existia um Estado forte que assegurasse um padrão de controle. Isso se refletia na prática dos esportes de combate, ainda que na sua forma rudimentar, em que as regras eram flexíveis e incontroladas. O público gostava das situações que estimulavam a alegria e a liberdade de competir para vencer o adversário, destruindo-o fisicamente e o prazer de infligir dor física e moral ao vencido, que não raro, morria em combate (Elias & Dunning, 1985).

No contexto medieval a vida de um proprietário guerreiro, assim como de todos que viviam em um mundo controlado por uma classe dominante composta de guerreiros, era contínua e diretamente ameaçada por atos de violência física. Era possível ao guerreiro grande liberdade para vivenciar seus sentimentos de paixões. A satisfação sem limites do prazer à custa das mulheres que desejasse, ou ao ódio na destruição ou tortura de todos os que lhes fossem hostis. Contudo, esta possibilidade, por outro lado, ameaçava o guerreiro, em caso de derrota, com o mesmo grau de exposição à violência e as paixões dos demais (Elias, 1993).

Com o surgimento do Estado Moderno, esta ameaça que os indivíduos representavam uns para os outros, ganha outra dimensão. O Estado se torna o detentor do monopólio do uso legítimo da força física, dentro de determinado território, sendo que o seu uso privado passa a ser combatido (weber,1991).  Contudo, este processo não se revelou condição suficiente para determinar a pacificação dos costumes e hábitos enraizados na sociedade. Isto explica porque foi necessário a criação de um direito positivo, fruto da vontade racional dos homens, voltado para restringir e regular o uso dessa força e para mediar os conflitos dos indivíduos entre si. Portanto, a eficácia desta pacificação relacionou-se com duas questões: primeiro com o que Elias (1993) denominou de processo civilizador, que implica no autocontrole da agressividade e das paixões, ou seja, na obediência voluntária às normas de convivência; e segundo, se relacionou com o poder de coerção do Estado.

No caso do Brasil, em função de diferentes fatores que serão analisados na próxima seção, o Estado nunca consolidou o monopólio sobre a violência física e nunca conseguiu estatuir leis confiáveis, que mediassem às relações entre os indivíduos. O resultado foi que, em lugar de uma reversão das relações agressivas, o que existiu, ao longo de toda sua história, foi à persistência de valores que cultuam a força como alternativa amplamente utilizada entre a população para solucionar conflitos (ADORNO, 2002; Da Mata, 2000; Kant de Lima, 1999; Machado & Noronha, 2008; Velho 2002; ZALUAR, 2001).

 1. DESIGUALDADE, INDIVIDUALISMO E VIOLÊNCIA

 Em todas as sociedades existem, em algum nível, processos de dominação que se estabelecem de diferentes formas, envolvendo diferentes dispositivos de coerção, que implicam em diferentes formas de utilização da força (Weber, 1991). Na história do Brasil, a presença de violências constitui uma constante que se inicia com a lógica dos modelos de colonização européia do século XVI, envolvendo extermínio e escravização de grupos étnicos, atravessando toda fase colonial, imperial, república velha, novo estado, regime militar e nova república, até os dias atuais. Assim como em outros contextos culturais, as violências foram amplamente utilizadas pelo Estado para impor a ordem e solucionar conflitos.

Nos cenários atuais o crescimento da violência, em suas múltiplas modalidades - crime comum, crime organizado, violência doméstica, violação de direitos humanos - constitui uma das maiores problemáticas da sociedade brasileira. Este quadro, contudo, não pode ser compreendido sem considerar alguns aspectos históricos e culturais, particularmente no que tange aos poderes instituídos e sua legitimidade diante da sociedade.

Na formação social brasileira, o Estado se constituiu subordinado a interesses particularistas através de focos de poder local e não a partir de um pacto social baseado em regras formalmente definidas e aceitas. Sua estrutura permaneceu vincada em ralações tradicionais, onde a ordem estatuída se confunde com o poder pessoal. Segundo Sérgio Buarque de Holanda (1993), inexistiria uma transição completa de um modelo de relação social familiar para um modelo de relação abstrato, racional. Do modelo tradicional, pode-se ler em Max Weber (1991), para o racional-legal. A coisa pública é, neste modelo, percebida como privada, pois não há uma instância universal legitimada na origem do sistema político e administrativo - o que existe são sempre núcleos locais de poder patrimonialista no sentido elaborado por Faoro (1989).

 Desenvolve-se, assim, uma elite parasitária do poder que manteria o modelo de gestão tradicional e patrimonial, decorrente do latifúndio patriarcal. Este modelo sobrevive em diversas roupagens até a atualidade.  O sistema jurídico-político brasileiro foi constituído a partir dos interesses desta elite detentora do poder político e econômico e não de uma origem “popular” ou “democrática. Os modelos jurídicos de controle social, portanto, não se desenvolvem enquanto reflexo do estilo de vida e dos costumes locais, mas como dispositivos a serviço da manutenção dos privilégios de determinados grupos. Isto explica, em parte, a falta de legitimidade dos valores legais, que tendem a ser vistos como “constrangimentos externos ao comportamento dos indivíduos” (KANT DE LIMA, 1999, p. 25).

Um exemplo desta lógica é a frase: "aos amigos se faz justiça, aos inimigos se aplica a lei". Aparentemente paradoxal esta frase evidencia que a dureza da lei só vale para os inimigos, para as famílias e facções rivais, e, sobretudo para os pobres, considerados sem família. Logo, não era para ser cumprida por todos, que, obviamente, não são iguais. Isto explica o poder de elasticidade e adaptação das leis. A justiça é benevolente, “ela não é cega, sabe com quem está falando, mesmo vendada enxerga muito bem quem são os amigos do poder, quem são os outros, inclusive a massa de anônimos” (Vieira & Rego, 2009, p. 9). Muito mais uma estrutura de manutenção de poder do que de justiça

Em relação a esta problemática da duplicidade do poder instituído no Brasil, Da Matta (1981) desenvolveu a tese de que haveria um dilema brasileiro numa trágica oscilação “entre um esqueleto nacional feito de leis universais cujo sujeito era o indivíduo e situações onde cada qual se salvava e se despachava como podia, utilizando para isso o seu sistema de relações pessoais”. De um lado haveria as leis que deveriam valer para todos e, de outro, determinados tipos de relações que só podem funcionar para quem as tem.

O produto foi gerar um sistema social dividido entre duas unidades sociais básicas: o indivíduo (o sujeito das leis universais que modernizam a sociedade) e a pessoa (o sujeito das relações sociais, que conduz ao pólo tradicional do sistema). O indivíduo se definiria pela oposição com o seu contrário: a pessoa. Esta se definiria como um ser basicamente relacional, vincado a um sistema social onde as relações de compadrio, de família, de amizade e de troca de interesses e favores constituem um elemento fundamental. Isto explica a lógica do “jeitinho” do “você sabe com quem está falando” e da “carteirada”, exatamente como formulações que assinalariam esta passagem da condição de indivíduo para a de pessoa, que devido ao seu lugar na rede de relações se inscreve de forma diferenciada (privilegiada) na sua relação com a lei.

Segundo o autor, existe uma intrínseca relação entre proliferação de violências e a falta de reconhecimento da lei estatuída como o instrumento de escolha na aplicação da justiça. Sua proliferação evidencia que as leis não têm poder normativo, nem os meios legais de coerção. Indivíduos e grupos passam a arbitrar o que é justo ou injusto, segundo decisões próprias, dissociadas de princípios válidos para todos. “Assim, se quero, tomo; se desejo estupro; se não possuo, roubo; se odeio assassino; se sou contrariado, espanco” (Da Matta, 1982, p.26). Não existem intermediários, nem mediações da lei, dos costumes ou da moralidade, mas a invasão dos espaços e o encontro cara a cara, no qual a força física cria uma inusitada igualdade.

Uma característica que contou muito na formação deste modelo desigual e hierarquizado de justiça relaciona-se com a presença da escravidão no Brasil até final do século XIX. Esta prática produziu uma cultura que naturalizou a desigualdade dos indivíduos perante a lei. Na legislação Colonial e Imperial, diante da Lei Civil o escravo era, ao mesmo tempo, coisa e pessoa, embora estivesse privado de todos os seus direitos civis. Por outro lado, diante da Lei Penal, o escravo sujeito ativo ou agente do crime era considerado pessoa e não coisa, ou seja, respondia plenamente pelos seus atos, sendo que a condição de escravo era considerada um agravante (Wolkmer, 2008).

Com a abolição, embora os indivíduos de pele negra tenham se tornado iguais aos de pele branca diante da lei, na prática a discriminação continuou, inclusive com respaldo da antropologia criminal emergente. O médico maranhense Nina Rodrigues (1862-1906) foi um importante divulgador das idéias racistas no Brasil, postulando uma inferioridade dos negros e mulatos em relação aos brancos. Rodrigues (1957) acreditava que os não brancos possuíam uma tendência natural á degenerescência e ao crime, defendendo, inclusive a importância de uma legislação especial para essas “raças”.

Outro aspecto fundamental que precisa ser considerado se relaciona com as condições de vida da população. O modelo de sociedade desenvolvido no Brasil ao longo de sua história possibilitou enorme concentração de riquezas para poucos e pobreza extrema para muitos. Um modelo excludente e desigual nas ofertas de acesso aos bens culturais. O pobre no Brasil é, antes de qualquer coisa, alguém que fora negado o acesso a condições básicas de vida, como educação e saúde. Uma pobreza produzida pela estrutura social e pela sua perversa desigualdade na distribuição da renda e das oportunidades de inclusão econômica e social (Adorno, 2002).

Embora a pobreza não seja em si um elemento gerador de violência, não há como negar as relações entre a “persistência da concentração da riqueza, da concentração de precária qualidade de vida coletiva nos chamados bairros periféricos das grandes cidades e a explosão da violência fatal” (Adorno, 2002). A gritante desigualdade social e a indiferença dos setores dominantes alimentam o crescente ressentimento social que se manifesta na forma de violência e criminalidade, atingindo principalmente a população pobre e jovem. O consumismo da modernidade metropolitana agrava ainda mais as frustrações destes seguimentos, que terminam gerando mais criminalidade. Espinheira (2008) chama a atenção para as relações entre pobreza e violência lembrando que viver em uma sociedade de consumo sem dinheiro produz uma desvalorização do indivíduo. Esta condição de indivíduo sem valor produz a desvalorização do outro e “a construção do ódio como alimento da alma dilacerada” (p.74). 

Velho (2000) considera que um aspecto decisivo na proliferação da violência se relaciona ao fortalecimento de ideologias individualistas, que se consolidaram a partir do processo de modernização do Brasil, particularmente a expansão da economia de mercado, as migrações, a industrialização, a introdução de novas tecnologias e o florescimento de uma cultura de massa. O fortalecimento de valores individualistas e a concomitante ampliação das possibilidades de escolha de estilos de vida implicaram no enfraquecimento das formas tradicionais de dominação. Mesmo considerando que a tensão social sempre existiu no Brasil, em uma estrutura social tradicional - altamente hierarquizada - as interações eram mais pacíficas em função da reciprocidade que engendrava. “O compadrio entre indivíduos de posições hierárquicas distintas era um dos melhores exemplos desta situação. O patrão e os clientes estabeleciam relações não só de trabalho no sentido restrito, mas de aliança apoiada em lealdade e solidariedade” (Vellho, 2000, p. 17). 

Paralelamente, Velho (2000) lembra que o individualismo brasileiro não eliminou da sociedade uma cultura ainda muito hierarquizada. Segundo o autor, embora o desenvolvimento do individualismo seja considerado condição necessária para o desenvolvimento da democracia, não é condição suficiente. Em determinadas sociedades como na americana, canadense ou na australiana, o movimento do individualismo aconteceu de forma a possibilitar a crença no contrato social como valor. A noção de que o poder político é consequência e expressão da relação entre indivíduos-cidadãos constitui a base destas sociedades.                                       

 No caso da sociedade brasileira, o que tivemos foi à incorporação de modelos individualistas, fragmentariamente, segmentariamente, dentro de uma sociedade que se regia, se sustentava, fundamentalmente, não só no modelo hierárquico, mas num modelo de dominação que tinha como um dos seus eixos a escravidão. Nos Estados Unidos também tinha escravidão. Mas uma parte da sociedade americana, a mais dinâmica, a mais empreendedora, através desses valores individualistas protestantes, associados à democracia, prevaleceu, dando margem a que o capitalismo ocupasse e colonizasse, inclusive, outras regiões do país e do mundo (VELHO, 2000, p. 235).

No Brasil o individualismo não se desenvolve associado ás noções de cidadania e democracia, mas se acomoda a uma visão de mundo e a uma estrutura social tradicional e hierárquica. Logo, o capitalismo assume uma dinâmica “[...] voraz com uma dimensão selvagem, relegando ao segundo plano preocupações com equidade e reforma social” (VELHO, 2000, p. 14).

A liberdade de escolha, que traduz um estilo de vida igualitário, fiel aos ideais republicanos, esbarra em uma realidade fortemente excludente. Um contexto paradoxal, marcado, de um lado, pela perda da reciprocidade de uma sociedade tradicional e, de outro, pela falta dos direitos de cidadania de uma sociedade democrática e moderna. Neste sentido, a violência não constitui um fenômeno secundário, produto de contingências pontuais, mas existe ao nível das relações sociais, sendo parte constituinte da natureza de uma sociedade marcada pelo individualismo desprovido de valores sociais e pela desigualdade extrema.

Dois aspectos considerados agravantes para piorar este quadro são o modelo de ação das polícias e o desenvolvimento das novas formas de criminalidade, especialmente o tráfico de drogas. Através do tráfico, grupos de jovens instalados em favelas, na periferia de centros urbanos ou conjuntos habitacionais, passam a ter acesso a armas de todos os calibres, inclusive armas de guerra, que são usadas em verdadeiras batalhas com grupos rivais. O poder de fogo destes grupos põe em cheque uma das competências básicas do Estado moderno que seria o controle do território.

No relatório de Philip Alston (2008), sobre execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias no Brasil, figura que os policiais militares no Brasil executam civis sob o argumento de resistência à prisão e, ao registrar essas mortes, a própria polícia deixa de investigá-las. O autor disse ainda que o salário muito baixo pago aos policiais faz com que eles se corrompam e participem até de milícias e grupos de extermínio. Acrescenta ainda que, embora já ha algum tempo sejam cometidos entre 45 e 50 mil homicídios todos os anos no Brasil, e estes assassinatos tenham semeado o medo e a insegurança entre a população, pouco é feito na grande maioria dos casos para investigar, julgar e condenar os culpados.

Em São Paulo e Rio de Janeiro, somente cerca de 10% dos homicídios são julgados pelos tribunais; em Pernambuco, cerca de 3%. Entre os 10% dos que são julgados, em São Paulo, cerca de 50% são realmente condenados. O saldo destes números pode ser lido em pesquisa de opinião realizada como Vox Populi e Datafolha, realizada entre 13-16 de abril de 1995, onde se conclui que 73% dos brasileiros não confiam na Justiça (Adorno, 2002).

 3. Os números da violência fatal

   O resultado deste quadro social pode ser avaliado na forma de números. Consta no Mapa da Violência (2011), que o Brasil é o sexto país que mais produz homicídios no mundo, ficando atrás de El Salvador, Colômbia, Venezuela, Guatemala e Ilhas Virgens (EUA). As taxas de homicídios aumentaram de 25 cada grupo de 100.000 em 1996, para 51em 2003. No ano de 2004 foi registrada a menor taxa, 45,57 para cada grupo de 100.000, contudo a partir de 2005 estes números voltaram a aumentar, atingindo 50,11 em 2008.

Entre os anos de 1996 e 2006 todas as regiões do Brasil, com exceção da Sudeste, evidenciam crescimento significativamente elevado da violência. Dentre estas, destacam-se as regiões Norte e Nordeste, onde estados como o Pará, Alagoas, Maranhão, Bahia, Rio Grande do Norte e Sergipe, quadruplicaram, ou quase, seu número de homicídios na década analisada. Destaque para o Maranhão, com um crescimento de 367%. Salvador ocupa o quarto lugar no ranking das violências entre as capitais com um taxa de 60,1 homicídios para cada grupo de 100.000 (Waiselfisz, 2011).

Na década 1997/2007, o número total de homicídios registrados ao ano pelo  Sistema de Informações de Mortalidade do Ministério da Saúde (SIM) passou de 40.507 para 47.707, o que significa 131 vítimas por dia. Outro dado importante relaciona-se com a vitimização juvenil. Em levantamento realizado junto a 100 países, o Brasil ocupa o sexto lugar no ranking no que tange a homicídios de jovens (entre 15 e 24 anos). Na população considerada não jovem (menos de 15 e mais de 24 anos) os índices de homicídios – em média 20 para cada 100 mil habitantes – não sofreram grandes alterações entre a década de oitenta e a atual. Contudo, na faixa etária de 15 a 24 anos os índices subiram de 30 por 100 mil em 1980, para 47 em 1998 e 50,9 em 2005 e 52,9 pra cada 100 mil em 2008 (Waiselfisz, 2011).

O Sistema de Informações de Mortalidade do Ministério da Saúde recém começou a processar informações referentes à raça/cor no ano de 1996, mas devido a problemas de subnotificação, julgou-se procedente começar a analisar as informações referentes a partir de 2002. A categoria negro utilizada resulta do somatório das categorias preto e pardo utilizadas pelo IBGE.  Entre os anos de 2002 e 2008, as taxas de homicídio de brancos caíram de 20,6 para 15,9 em cada 100 mil brancos; queda de 22,7% entre 2002 e 2008. Já na população negra, as taxas passaram de 30,0 em 2002 para 33,6 homicídios para cada 100 mil negros em 2008, o que representa um aumento de 12,1%. No ano de 2005 foram vítimas de homicídio, proporcionalmente 67,1% mais negros do que brancos.

No que tange a gênero, a desproporção é esmagadora. Ao longo dos diversos mapas que vêm sendo elaborados desde 1998, emerge uma constante: a elevada proporção de mortes masculinas nos diversos capítulos da violência letal do país, principalmente quando a causa são os homicídios. Sem maiores discrepâncias regionais a média de 2008 foi que 92,0% das vítimas de homicídio foram homens. Dentro desta perspectiva pode ser definido um perfil das vítimas de homicídio no Brasil: São jovens (15 a 24 anos), negros e do sexo masculino (Waiselfisz, 2011).

 Conclusão

 O Brasil, portanto, é um país onde as violências atravessam sua história através de uma sociedade que se estrutura de forma desigual e altamente excludente. Dentro desta perspectiva, o desrespeito ao outro e às regras de convívio constitui uma prática comum tanto entre as camadas mais pobres da sociedade - que não se enxergam incluídas no direito instituído - como por parte das camadas mais abastadas, posto que essas são descrentes na efetividade das leis. O Estado torna-se refém e posse para a elite e inexiste ou rarefeito para os demais grupos. A proliferação de violências não representa, logo, mera consequência da criminalidade ou de outros fatores contingenciais como o abuso de psicoativos. Antes de qualquer coisa, as condições para a disseminação do fenômeno são produzidas pela estrutura da sociedade, através da falta de igualdade gritante de direitos e deveres entre os indivíduos. Este quadro possibilitou, ao longo da história, a consolidação de uma cultura individualista, descrente na mediação legal e pouco sensível para as questões sociais. Isto explica, em parte, porque não existem maiores mobilizações na esfera pública em nome dos interesses coletivos. No geral, o(a) brasileiro(a) não demonstra acreditar na efetividade da “coisa pública”, que é percebida, por muitos, como um negócio privado, portanto, local próprio para o exercício da corrupção deslavada. Outro fenômeno, que por mais extorsivo e escandaloso que seja não gera maiores reações populares. Por que será?

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