Violência de Gênero, o escopo da Lei Maria da Penha.

Introdução

A mulher, historicamente, sempre foi reconhecida pelas sociedades mais antigas como um ser inferior ao homem. Desde os tempos mais remotos era o homem o chefe da família, o provedor, o protetor, o verdadeiro comandante do núcleo familiar, a quem a mulher devia obediência e respeito. Essa estrutura arcaica manteve seus resquícios em nossa sociedade até o final dos anos 1980, quando, movida por movimentos de natureza feminista que grassavam pelo Brasil e pelo Mundo, a nossa Constituição da República igualou em direitos e deveres os homens e mulheres, conforme preceitua o artigo 5º., I, da CRFB.

Apesar de nossa evolução jurídica, efetivamente a mulher ainda continua sendo vista por parte da sociedade como um ser potencialmente mais frágil em relação ao homem. E não poderia ser diferente, afinal de contas para garantir a igualdade entre homens e mulheres não basta a regra constitucional. É preciso mais, ou seja, é preciso que aquela parcela discriminatória da população perceba a mulher como um ser humano apto a exercer plenamente seus direitos e deveres em igualdade de condições com o homem, garantindo-se, assim, a preservação de sua dignidade.

Mesmo depois de sensíveis avanços no sentido desse reconhecimento, a mulher, até os dias de hoje, continua sendo vítima daquele sentimento arcaico e brutal do homem de que é o seu “saco de pancadas”. Seja pela frustração do dia, pela falta de dinheiro, ou até pela “janta” mal feita, a mulher ainda continua sendo a válvula de escape do homem agressor. E quando se cansa de bater, ele mata.

Por isso, a Lei Maria da Penha (Lei 11340 de 2006) foi um dos instrumentos legais mais importantes criados na defesa da mulher, seja para coibir a violência praticada, como para impedir que ela ocorra. E é sobre a espécie de violência que se pretende coibir ou prevenir que estudaremos a seguir.

Lei Maria da Penha. Violência de Gênero.

O escopo do legislador ao editar a Lei 11340 de 2006 foi proteger a mulher de uma violência de gênero, ou seja, a mulher é vítima de sua situação de gênero, na forma do que dispõe o seu artigo 5º. Nesse sentido, decorreu de lutas ferrenhas de movimentos de defesa das mulheres vítimas de violência, a fim de compensar as desigualdades sociais entre homens e mulheres. Assim, a expressão retirada do caput do artigo 5º. da Lei Maria da Penha “qualquer ação ou omissão baseada no gênero” denota que sua estruturação decorre do entendimento do legislador de que a mulher historicamente é vítima de um modelo hegemônico de opressão masculina. Tal visão provocou em parte da doutrina o falso sentimento da inconstitucionalidade da Lei, justamente por entenderem, de forma simplória, que haveria ofensa ao artigo 5º., I, da CRFB que garantiu a igualdade entre homens e mulheres.

O objeto dessa Lei, porém, é produto de um pensamento que visa ao rompimento de uma ideia vetusta de que homens e mulheres devem trilhar caminhos diferentes para alcançar os mesmos objetivos, mesmo que para isso possuam dispositivos jurídicos que, à primeira vista, favoreçam o gênero feminino em detrimento do masculino. Na verdade, a discriminção da Lei é plenamente aceitável e justificável como única forma de unificar as relações sociais modernas entre o homem e a mulher, evitando que esta seja vítima de qualquer espécie de violência por parte do primeiro.

É assim que pensa a doutrinadora espanhola Patrícia Laurenzo Copello[1]:

Por eso, la causa última de la violencia contra las mujeres no ha de buscarse en la naturaleza de los vínculos familiares sino en la discriminación estructural que sufren las mujeres como consecuencia de la ancestral desigualdad en la distribución de roles sociales. La posición subordinada de la mujer respecto del varón no proviene de las características de las relaciones familiares sino de la propia estructura social fundada todavía sobre las bases del dominio patriarcal.

Com base no pensamento da brilhante doutrinadora espanhola, deve-se refutar a imposição de limites à espécie violência de gênero contra a mulher. Como se viu, esta decorre do próprio fato de que a mulher, como gênero, sempre foi submissa, inclusive fisicamente, ao homem. Trata-se de uma presunção que deve ser tida por absoluta, sob pena de se subjetivizar a aplicação da Lei Maria da Penha, desvirtuando-a de seu objetivo que é a proteção integral da mulher vítima de violência de gênero no âmbito das relações domésticas e familiares.

A subjetivação acima referida já encontra respaldo em parte da doutrina e jurisprudência pátrias para quem a aplicação da Lei deve decorrer de violência contra a mulher (de gênero), devendo esta encontrar-se em situação de vulnerabilidade e hipossuficiência, como já decidiu o STJ, ou de subordinação e dominação em relação ao seu agressor. Em que pesem os argumentos para a utilização desses critérios, deve-se ter que se trata de entendimento contra legem, e que fere o princípio da igualdade no sentido de que deve-se tratar de forma desigual os desiguais, estes considerados concretamente e não apenas no plano jurídico formal. E assim, apesar da igualdade jurídica garantida pela Constituição, a realidade é que a força normativa de nossa Lei Maior não garante a integridade física da mulher dentro de seu lar, ou seja, a sua dignidade da pessoa humana continua sendo violada dia após dia. Isso, porque, na lição do professor Marcelo Novelino Camargo[2]:

 a dignidade da pessoa humana não é um direito concedido pelo ordenamento jurídico, mas um atributo inerente a todos os seres humanos, independentemente de sua origem, raça, sexo, cor ou quaisquer outros requisitos. A consagração no plano normativo constitucional significa tão somente o dever de promoção e proteção pelo Estado, bem como de respeito por parte deste e dos demais indivíduos.

Assim, a dignidade da mulher deve ser preservada no dia a dia, através de ações concretas que inibam e coibam a prática da violência, principalmente através da tutela penal da situação de gênero, ou seja, pelo simples fato de a agressão ter sido praticada contra a mulher nas condições impostas pela Lei 11340 de 2006. O Superior Tribunal de Justiça adotou ambos os posicionamentos dentro da mesma seção, o que se extrai das ementas dos acórdãos que se seguem:

CONFLITO DE COMPETÊNCIA. PENAL. JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL E JUIZ DE DIREITO. CRIME COM VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA MULHER. CRIME CONTRA HONRA PRATICADO POR IRMÃ DA VÍTIMA. INAPLICABILIDADE DA LEI Nº 11.340/06. COMPETÊNCIA DO JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL.

1. Delito contra honra, envolvendo irmãs, não configura hipótese de incidência da Lei nº 11.340/06, que tem como objeto a mulher numa perspectiva de gênero e em condições de hipossuficiência ou inferioridade física e econômica.

2. Sujeito passivo da violência doméstica, objeto da referida lei, é a mulher. Sujeito ativo pode ser tanto o homem quanto a mulher, desde que fique caracterizado o vínculo de relação doméstica, familiar ou de afetividade. 2. No caso, havendo apenas desavenças e ofensas entre irmãs, não há qualquer motivação de gênero ou situação de vulnerabilidade que caracterize situação de relação íntima que possa causar violência doméstica ou familiar contra a mulher. Não se aplica a Lei nº 11.340/06.

3. Conflito conhecido para declarar competente o Juízo de Direito do Juizado Especial Criminal de Governador Valadares/MG, o suscitado. Processo: CC 88027 MG; 007/0171806-1; Relator(a): Ministro OG FERNANDES; Julgamento: 05/12/2008. Órgão Julgador: S3 - TERCEIRA SEÇÃO. Publicação: DJe 18/12/2008, RSTJ vol. 213 p. 365.

CONFLITO DE COMPETÊNCIA. PENAL. JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL E JUIZ DE DIREITO. CRIME COM VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA MULHER. AGRESSÕES MÚTUAS ENTRE NAMORADOS SEM CARACTERIZAÇÃO DE SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE DA MULHER. INAPLICABILIDADE DA LEI Nº 11.340/06. COMPETÊNCIA DO JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL.

Delito de lesões corporais envolvendo agressões mútuas entre namorados não configura hipótese de incidência da Lei nº 11.340/06, que tem como objeto a mulher numa perspectiva de gênero e em condições de hipossuficiência ou vulnerabilidade. Processo: CC 96533 MG 2008/0127028-7; Relator(a): Ministro OG FERNANDES Julgamento: 05/12/2008; Órgão Julgador: S3 - TERCEIRA SEÇÃO, Publicação: DJe 05/02/2009.

CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. LEI MARIA DA PENHA. RELAÇÃO DE NAMORO. DECISÃO DA 3ª SEÇÃO DO STJ. AFETO E CONVIVÊNCIA INDEPENDENTE DE COABITAÇÃO. CARACTERIZAÇÃO DE ÂMBITO DOMÉSTICO E FAMILIAR. LEI Nº 11.340/2006. APLICAÇÃO. COMPETÊNCIA DO JUÍZO DE DIREITO DA 1ª VARA CRIMINAL.

1. Caracteriza violência doméstica, para os efeitos da Lei 11.340/2006, quaisquer agressões físicas, sexuais ou psicológicas causadas por homem em uma mulher com quem tenha convivido em qualquer relação íntima de afeto, independente de coabitação.

2. O namoro é uma relação íntima de afeto que independe de coabitação; portanto, a agressão do namorado contra a namorada, ainda que tenha cessado o relacionamento, mas que ocorra em decorrência dele, caracteriza violência doméstica.

3. A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, ao decidir os conflitos nºs. 91980 e 94447, não se posicionou no sentido de que o namoro não foi alcançado pela Lei Maria da Penha, ela decidiu, por maioria, que naqueles casos concretos, a agressão não decorria do namoro.

4. A Lei Maria da Penha é um exemplo de implementação para a tutela do gênero feminino, devendo ser aplicada aos casos em que se encontram as mulheres vítimas da violência doméstica e familiar. 5. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo de Direito da 1ª Vara Criminal de Conselheiro Lafaiete -MG. Processo: CC 96532 MG 2008/0127004-8; Relator(a): Ministra JANE SILVA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG), Julgamento: 05/12/2008; Órgão Julgador: S3 - TERCEIRA SEÇÃO. Publicação: DJe 19/12/2008.

Sempre é bom lembrar que a Lei Maria da Penha originou-se da pressão da sociedade por medidas que protegessem a mulher do agressor masculino. Tanto é que Maria da Penha foi vítima real de tentativa de assassinato, por duas vezes, no ano de 1983, por parte de seu companheiro. Primeiro foi alvejada por tiros enquanto dormia, fato que a deixou paraplégica dos membros inferiores e, duas semanas após, quando retornou para casa, foi novamente vítima de agressão; dessa vez seu ex-marido tentou eletrocutá-la. É nesse sentido que, apesar da proteção conferida pela Lei contra qualquer agressor, independentemente de sexo, o escopo da norma procurou alcançar, principalmente, a ação do homem dentro das relações domésticas e familiares, uma vez que é nesse âmbito que a violência sói acontecer contra a vítima mulher.

Conclusão

 Há que se reconhecer, assim, que a Lei deve tutelar o gênero feminino, porque como ensina novamente Patrícia Laurenzo[3], “La vulnerabilidad de la mujer no es consustancial a su posición jurídica dentro de la familia ni tampoco a sus condiciones personales, sino que es el resultado de una estrategia de dominación ejercida por el varón -al amparo de las pautas culturales dominantes- para mantenerla bajo su control absoluto”. E para manter o seu controle absoluto o homem faz uso da violência contra a mulher, seja executiva ou operária, irrelevante sua classe social, uma vez que a violência é sempre a mesma, mudam apenas os motivos, quando há, para agredir.

Assim, buscar no âmago do agressor sua real intenção, ou mesmo, verificar de forma concreta eventual relação de hipossuficiência e vulnerabilidade da vítima daria azo a eventuais arbitrariedades incompatíveis com o escopo da lei, que já limitou a violência em situação de gênero ao âmbito doméstico e familiar.

Bibliografia:

 

(1) LAURENZO COPELLO, Patricia. La violencia de género en la Ley Integral: valoración políticocriminal. Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminología (en línea). 2005, núm. 07-08, p. 08:1- 08:23. Disponible en internet: http://criminet.ugr.es/recpc/07/recpc07-08.pdf ISSN 1695-0194 [RECPC 07-08 (2005), 16 jul.].

                               

 (2) CAMARGO, Marcelo Novelino. Organizador. Leituras Complementares de Direito Constitucional. O Conteúdo Jurídico da Dignidade da Pessoa Humana. Salvador. Ed. Jus PODIVM, 2006, p. 47.


[1] LAURENZO COPELLO, Patricia. La violencia de género en la Ley Integral: valoración políticocriminal. Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminología (en línea). 2005, núm. 07-08, p. 08:1- 08:23. Disponible en internet: http://criminet.ugr.es/recpc/07/recpc07-08.pdf ISSN 1695-0194 [RECPC 07-08 (2005), 16 jul.].

[2] CAMARGO, Marcelo Novelino. Organizador. Leituras Complementares de Direito Constitucional. O Conteúdo Jurídico da Dignidade da Pessoa Humana. Salvador. Ed. Jus PODIVM, 2006, p. 47.

[3] LAURENZO COPELLO, Patrícia. Op. Cit.