VIGIAR E PUNIR:
O PANOPTISMO DE JEREMY BENTHAM

Camila da Fonsêca Aranha

Resumo: O presente estudo é composto pelas considerações acerca da estrutura, funcionamento e objetivos do modelo arquitetural disciplinar do Panóptico, formulado por Jeremy Bentham, desenvolvidas por Michel Foucault em sua obra Vigiar e Punir .
Palavras-chave: Vigiar e Punir. Panoptismo. Disciplina.


1 ? Introdução

No atual estágio de nossa civilização jurídica, predomina a tese de que não existe sociedade sem direito. E assim o é em razão da função ordenadora que o direito exerce na sociedade, isto é, a função de coordenar os interesses que se manifestam na vida social, de modo a organizar a cooperação entre pessoas e a dirimir os conflitos que se verificam entre estas.
Sob a perspectiva sociológica, o direito é considerado como uma das formas ? a mais importante e eficaz dos tempos pós-modernos ? do chamado controle social, ou seja, o conjunto de instrumentos dos quais a sociedade dispõe para impor padrões de cultura, de ideais coletivos e de valores, enquanto instrumentos de superação das antinomias, das tensões e dos conflitos que lhe são próprios.
O direito, portanto, constitui um instrumento de pacificação social; seja enquanto detentor do monopólio da produção legislativa ou do exercício da jurisdição.
Michel Foucault (1926-1984), filósofo francês integrante do Estruturalismo ? corrente filosófica desenvolvida na França a partir da segunda metade do século XX, em oposição ao Existencialismo, ao Historicismo e ao Humanismo, cuja premissa básica é a de redução do homem ao mero fruto das estruturas sociais ? é o autor do livro Vigiar e Punir, obra que trata acerca da história da violência nas prisões.
Nessa obra, Foucault desenvolve um perpasse histórico acerca da evolução das penas e formas de aplicá-las desde séculos remotos até os dias atuais, destacando as importantes e positivas contribuições de diversos acontecimentos e personalidades para o sistema repressivo-punitivo que possuímos na contemporaneidade.
Segundo Foucault, a pseudo-pacificação social perseguida pelo direito se verifica enquanto imposição de valores, ideologias e culturas da classe dominante sobre a classe dominada. O direito penal, por conseguinte, se configura como um instrumento de disciplinamento da classe dominada, de modo a adequá-la aos padrões de comportamento ditados pela classe dominante e, também, frear os movimentos sociais de liberação.
Nesse sentido, todas as minorias que não se enquadram nesta disciplina hierárquica (mendigos, loucos, delinquentes, violentos, etc.) devem ser disciplinadas pelo ordenamento jurídico, emanado do Estado ? que sempre esteve a serviço da manutenção da classe dominante no poder.
Assim sendo, dentre as contribuições para a evolução do sistema penal elencadas por Foucault na obra supracitada, encontra-se aquela referente ao modelo arquitetural disciplinar do panoptismo, desenvolvido pelo filósofo e jurista inglês Jeremy Bentham (1748-1832). Desse modo, nesse estudo será explanado acerca da estrutura, do funcionamento e dos objetivos do panóptico.


2 ? O Panóptico de Jeremy Bentham

A palavra panoptismo origina-se da raiz pan-óptico, que denota visão geral, visão abrangente, visão de tudo, e se caracteriza por ser um modelo arquitetural disciplinar ideal projetado pelo filósofo inglês Jeremy Bentham em 1785. O conceito inserido neste modelo permite a um vigilante, situado em uma torre central, observar todos os prisioneiros sem que estes saibam, ao certo, se estão ou não sendo observados. Segundo Bentham, este seria o modelo de instituição disciplinar menos custosa do que as de sua época, uma vez que requer um número reduzido de empregados.
Um dos aspectos mais interessantes acerca desse sistema arquitetural denominado de panóptico é que ele constitui-se como um modelo de instituição disciplinar, isto é, sua arquitetura poderia ser aplicada para a construção não apenas de prisões, como também hospitais, manicômios e até mesmo escolas ou fábricas ? enfim, instituições nas quais se fizesse necessária a constante observação e análise comportamental dos que nelas residem, estudam e/ou trabalham.
A figura arquitetônica do panóptico organiza-se por meio de unidades que permitem vigiar constantemente as pessoas. N?outros termos, o dispositivo panóptico inverte o princípio da masmorra e sua tríplice função (trancar, privar de luz e esconder), uma vez que nele conserva-se apenas a primeira (trancar), sendo suprimidas as outras duas, até mesmo porque a iluminação configura-se como questão central no panoptismo: quanto melhor a iluminação, melhor será para que se possa observar os presos.
Se, por um lado, o panóptico pode ser utilizado como máquina de fazer experiências, modificar comportamentos e adestrar indivíduos, o panoptismo, enquanto modelo de disciplina, funciona também como uma espécie de laboratório de poder. Trata-se de uma perspectiva multidisciplinar, pois serve para emendar prisioneiros, cuidar dos doentes, instruir os estudantes, isolar os loucos, fiscalizar os operários e fazer trabalhar os ociosos e mendigos.
Foucault consegue ver além da mera estrutura arquitetônica do panóptico e de sua finalidade aparentemente primária, apresentando de forma sistematizada a perspectiva ideológica que fundamenta o conceito de panoptismo emanado daquele dispositivo.
O esquema panóptico destina-se a ser difundido no corpo social, tornando-se uma função generalizada. Busca uma amplificação, organizando o poder de modo a tornar mais forte as classes sociais dominantes, aumentando a produção, desenvolvendo a economia, disseminando a instrução, elevando o nível moral, etc..
A disciplina, portanto, apresenta-se em duas imagens, a saber: em um pólo, a disciplina-bloco, uma instituição fechada, estabelecida à margem, e toda voltada para funções negativas; e no outro pólo, a disciplina-mecanismo (panoptismo), isto é, um dispositivo funcional que visa melhorar o exercício do poder, tornando-o mais rápido, mais leve, mais eficaz.
De acordo com Foucault, a extensão dessas instituições disciplinares assume tríplice aspecto: inversão funcional das disciplinas; ramificação dos mecanismos disciplinares; estatização dos mecanismos disciplinares. Nesse sentido, a disciplina não pode identificar-se como uma instituição ou como um aparelho, uma vez que ela se configura como uma tática de poder, uma forma de exercê-lo que comporta todo um conjunto de instrumentos, de técnicas, de níveis de aplicações, de procedimentos. Ela é uma anatomia do poder, uma tecnologia.


3 ? Panoptismo Moderno

Apesar de Michel Foucault não abordar em sua obra acerca do que hoje se denomina de panoptismo moderno, é de suma importância comentar ao seu respeito.
O panoptismo moderno refere-se ao hábito existente em diversas sociedades ocidentais e orientais de vigilância 24h por meio das câmeras de vigilância. Este estudo é muito pertinente, uma vez que o princípio e até mesmo mecanismo que fundamenta essa constante e intensa vigilância pela qual todos nós estamos submetidos é justamente o do panoptismo: vigiar, observar constantemente com o intuito de disciplinar e manter a ordem.
Quase que de forma idêntica ao modelo panóptico original, nós não sabemos ao certo quando estamos, de fato, sendo observados por alguma câmera de vigilância ou não, pois, mesmo que vejamos a notificação de estarmos sendo filmados, a verdade é que é impossível descobrir se de fato a câmera está funcionando, se há algum indivíduo naquele momento monitorando em tempo real aquela filmagem e um sem-número de outras questões.
Dessa maneira, as câmeras de vigilância são os panópticos de hoje, estamos em constante vigilância aonde quer que estejamos ? nas ruas, nas lojas, no trabalho, nas escolas, nas prisões ?, e elas exercem sobre nós o mesmo efeito do Panóptico original, o mesmo laboratório de poder e de penetração no comportamento dos homens, fiscalizando os operários, guardando os loucos e os prisioneiros, instruindo os escolares, fazendo trabalhar os ociosos. Exerce, portanto, sobre nós o mesmo efeito de estado consciente e permanente de visibilidade e de inverificabilidade que assegura o funcionamento automático do poder.


4 ? Considerações Finais

A obra Vigiar e Punir constitui-se como um exame esquemático dos mecanismos sociais e instrumentos que embasaram os sistemas penais adotados no ocidente durante a era moderna.
Publicado originalmente em 1975, esse livro apresenta temas relevantes para a sociedade contemporânea. No que se refere especificamente ao Panóptico, de Bentham, pôde-se observar que ele consiste em uma figura arquitetural disciplinar que visa intensificar o sistema de vigilância, sendo que o fator que possibilita essa ocorrência é justamente sua arquitetura ? composta por celas estreitas (cada uma abrigando um único preso) que juntas se dispõem em formato de anel, sendo que no centro desse anel há uma torre, onde deve ficar o suposto vigia.
A inovação desta arquitetura, portanto, consiste justamente no efeito que ela vem a causar na psique dos prisioneiros, isto é, a impressão de estarem sendo constantemente vigiados, porém sem a certeza de saber quando, de fato, o estão sendo, o que inclusive concede ao vigilante a possibilidade ver, mas não ser visto. Conforme postula Bentham, o poder, para alcançar efetividade, deve ser visível e inverificável, o que acarreta um efeito de temor nos prisioneiros, já que eles se sentem em perigo constante. Logo, em razão das constantes pressões pelas quais estão submetidos, estes agem com disciplina.
É em virtude disso que se postula o quão importante é o sistema Panóptico, uma vez que, além de gerar baixos custos ao Estado ? pois basta um único vigilante, podendo até, em algumas situações, não haver nenhum de prontidão ?, sua eficácia é muito maior que a de uma prisão "normal", porque ao dividir os presos em celas separadas evitam-se motins, em razão da falta de comunicação entre eles, podendo, inclusive, comportar não somente presos, mas também doentes ? em razão das celas serem separadas, não há perigo de contágio entre os enfermos ?, ou mesmo em loucos, que, em razão da separação, não há risco de violência recíproca, ou ainda crianças, pois assim não haveria perigo de cola e tampouco de barulho.
O panoptismo , assim, (2009 : 195):

É polivalente em todas as suas aplicações: serve para emendar os prisioneiros, mas também para cuidar dos doentes, instruir os escolares, guardar os loucos, fiscalizar os operários, fazer trabalhar os mendigos e ociosos.

Por fim, podemos concluir que Foucault contrapõe-se à tese preponderante de que o direito é um instrumento de pacificação dos conflitos sociais na medida em que, para ele, o direito é um instrumento ideológico de dominação, sendo o disciplinamento uma das espécies de exercício desse poder.

Referência:

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 36ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.