Vidas Secas, ainda

José Maria Couto Moreira*

Quem se dispuser a melhor conhecer as feridas do país aconselha-se assistir aos quotidianos noticiários televisivos. Neles, além da notícia, ver-se-á o que não se vê nas informações objetivas do rádio e dos jornais. Na tela estampam-se, mais chocantemente, as úlceras abertas, antigas, sangrentas e mortais. Na verdade, estas feridas são nossas, de toda a sociedade que até hoje se omitiu para o estancamento de sua expansão. Estas misérias, que atingem diretamente algumas dezenas de milhões de brasileiros, são exibidas nuas na TV, sem retoques, tal como se apresentam. As cenas realistas mais parecem um teatro do trágico. Entre elas, uma ferida a que não carece de recorrer a Deus para estancá-la (como a droga e o alarmante e crescente homicídio) se abre cada vez mais nas regiões pobres, ou miseráveis – melhor dizendo – localizadas principalmente no nordeste do país. A mais pungente, a mais dolorosa é presenciar (a imagem da TV equivale a estar presente) o sacrifício familiar a que se sujeita o pobre para aproximar-se do mais precioso bem terreno que é a água, fonte de saúde e de virtudes. Na TV, a água não é a mesma dos jornais, ou do rádio, mas um líquido estagnado, quase fétido, repelente, visivelmente repugnante, de tom compartilhado com a terra que o guarda. É como se o espectador estivesse vivendo o drama imagético, por isto se revoltando e recusando aquela oferta vil da natureza, que irá satisfazer a infeliz família nas suas necessidades.
Este é o cenário e o tema de que se ocuparam respeitáveis escritores e cientistas brasileiros, e estas carências persistem desde 1938, quando as retrataram com apuro Graciliano Ramos em seu romance Vidas Secas. Esta obra literária é, ou deveria ser, um marco para que os governos agissem em favor daqueles desgraçados. Daquele período a esta parte, contudo, passaram-se quase oitenta anos, e o drama não sensibilizou as autoridades, especialmente as federais, nem os representantes políticos daquela penúria, daquela completa indigência, que causa melancolia a qualquer brasileiro digno. Decididamente, o desprezo da administração do país por estes esquecidos descartam toda a ufania que alguns mais românticos pudessem levar à ribalta. São eles vítimas infelizes de um Estado insensível, que só preza valores objetivos, e estatísticos quando se avizinham eleições, as quais, como já disseram, faz deste clamor surdo a indústria da seca.
A razão desta crise que perdura para quase um século está no juízo apostólico do eminente acadêmico e nosso arcebispo Dom Walmor: a crise é antropológica, isto é, há desconsideração da primazia do ser humano.
Este é o selo que configura a omissão dos governos, cuja preferência recai sempre para as benemerências de carteirinha. Só haverá governo verdadeiramente democrático quando suas ações se voltarem, antes de tudo, para a valorização de nossos irmãos desvalidos, nossos iguais. Só assim nos credenciaremos para o mundo como nação civilizada.
E que seja já.

*Advogado