1.1 Introdução

Que atire a primeira pedra aquele que nunca teve um sonho.Quem nunca acordou no meio de uma noite desejando voltar para aquelas situações prazerosas de seus mundo imaginário? Ou quem nunca se assustou com pesadelos deste universo metafísico que adentramos durante o sono.O homem pré-histórico também sonhava e tinha suas próprias concepções acerca destas questões que estão tão além dos limites materiais.

Entender como funcionava o mundo dos sonhos pré-históricos e quais as influencias que estes tinham sob seu meio é o objetivo deste trabalho.Porém, vale ressaltar da extrema dificuldade encontrada em tal empreitada pelo fato de inexistirem registros escritos acerca do assunto.Quando se fala em um tema tão transcendental , pouco do que se sabe pode ser aproveitado.

Concluir este artigo, no entanto, apesar de todos os obstáculos encontrados, requeriu a utilização de métodos científicos baseados na observação e na comparação de dados.A antropologia cultural nos "emprestou" no bom sentido da palavra, suas técnicas de busca acerca da verdade do homem, permitindo a análise de culturas primitivas que coexistem com nosso mundo moderno, que ,para alguns antropólogos, são reflexos do objeto de estudo que tanto queremos entender: o homem pré-histórico.

A Biologia, e as ramificações da ciência natural, tal como o Darwinismo, por sua vez, foi de extrema importância neste estudo e sem seus métodos científicos não obteríamos nenhuma objetividade e exatidão tal como pretendia-se.O ser social foi tratado como um todo,um organismo vivo imutável na sua esquematização orgânica independente de espaço-tempo.Utilizando do racionalismo moderno adquirimos a capacidade de enxergar com mais clareza o passado.

Os sonhos criativos e suas relações com o desenvolvimento do pensamento surreal, a interpretação de sonhos e suas ligações com as dificuldades da vida privada, o valor individual acerca da interpretação do abstrato são apenas alguns dos temas tratados no presente artigo.

2.1 O Sonho

2.1.1 Sonhos criativos e o surreal na vida privada

Muitas vezes antropólogose historiadores ao definir o ser pré-histórico como o seu objeto de estudo, lhe dão tratamento "mecânico" classificando o apenas como individuo primitivo, que em uma escala evolutivaantecede nossa espécie.Tal concepção positivistae cientificistapor mais verdadeira que se possa fazer, tem como ponto negativo o fato de esquecer que antes de tudo, o ser pré-histórico como nossa espécie moderna de Homo Sapiens[1], era um ser humano dotado de características biológicas quase idênticas ao do "bicho homem moderno" , e como tal, ao gastar energia na execução de tarefas distintas sentia necessidade de descanso e repouso, e era nestes momentos que penetrava em mundos desconhecidos e inerentes ao seu universo, feito de representações imaginarias dos seus desejos, anseios, medos e sentimentos[2].Este era o mundo do sonhos pré-históricos

A pesquisa cientifica da vida privada na pré-história como já citado é de extrema dificuldade pela falta de objetos de estudo e de registros escritos, pouco ou nada se sabe sobre as fantasias do sonhador primitivo, mas apesar do déficit de informação, á antropologia, e a sociologia organicista - positivista permitem que o tratamento do ser humano possa biologicamente ser analizado como um todo. Estes princípios nos cedem métodos que permitem atingir certa objetividade e exatidão.

O Sonhoé uma experiência pessoal que possui significados distintos quando ampliado em debates que envolvam religião, cultura e ciência. Para esta ultima, o ato de sonhar é uma experiência de imaginação do inconsciente durante o período de sono, uma "fotografia" daquilo que está alocado nas partes profundas de nossa consciência.Por isso os sonhos sempre demonstram aspectos da vida emocional traduzidos sob uma linguagem própria.Nem sempre está linguagem é interpretável, e sabe-se através destes princípios da psicologia aliado aos estudos antropológicos que são usados como método de pesquisa neste trabalho,que o homem pré-histórico também não tinha uma consciência formada sobre o mundo imaginário que o cercava durante a noite.

A sociedade pré-histórica dava imenso valor nos sonhos, por mais que o não compreende-se á eles eram atribuídos valores místicos e religiosos.Provavelmente as imagens formadas no momento privado de descanso eram associadas á premonições e até mesmo á sabedoria, uma vez que um pouco mais a frente do período que está sendo estudado, sociedades tribais faziam suas decisões importantes baseando-se nos sonhos do chefe da tribo.

Como visto então, os homens pré-históricos também sonhavam, e tinham concepções místicas sobre este mundo transcendental pelo qual vagavam durante a noite.Mas o que de fato sonhavam os caçador-coletores da Europa paleolítica ou até mesmo das hordas africanas e mongolóides? Foi na sociedade primitiva, vale destacar, que os sonhos criativos surgiram. O homem pré-histórico, na tentativa de recriar as imagens vistas nas noites anteriores, desenhava nas paredes internas das cavernas, figuras rupestres abstratas[3] que tinha valor de interpretação privado.Ora, a sociedade primitiva era composta de homens que ainda não reproduziam o que não conheciam(Neste caso o período de espaço tempo compreende as idades paleolíticas inferiores e médias, para todos os efeitos trabalharemos nesta parte do trabalho com as culturas Auchelianas e Magdaleniana).Eram até capazes de inventar ferramentas, mas esta criatividade não se estendia ao meio artístico.A arte pré-histórica era extremamente realista, pelo menos na maioria dos casos.Mas e quando uma regra foge á exceção ? É o caso de figuras encontradas tanto na França,Rússia e Espanha[4] quanto em várias regiões africanas[5] em que a arte rupestre assume um caráter extremamente abstrato.Pontos coloridos sobre traços perpendiculares e animais mutantes com mais de quatro patas estavam totalmente alienados do cotidiano do "homem das cavernas".Como citado, o homem primitivo ainda não era dotado de uma imaginação criativa tão complexa, limitava-se á construir sobre modelos pré-existentes.Somente por uma explicação metafísica chega-se á uma concepção de verdade aceitável; os sonhos, abstratos e confusos, precisam ser interpretados e fazia parte do "método de compreensão" reproduzi-los nas cavernas.Esta Interpretação poderia se tornar privilegiada ocupando horas do dia do sonhador, procurando desvendar a mensagem que o seu sonho havia lhe enviado. Não havia um "manual de interpretação", e o pensamento privado acabava por decidir o que aquilo que foi sonhado queria dizer, sonhar com sangue tinha significados diferentes em sociedades distintas podendo significar tanto pureza, como em algumas hordas de Cro - Magnos norte africanos, como maus presságios, no caso das mesmas espécies na Europa.

Por mais que faltassem 40000 anos para a invenção do pensamento filosófico, a existência de uma tentativa racional de interpretação já coexistia com a imaginação na arte paleolítica. Nestes atos de sonhar, o detalhe,sobretudo no tocante as cores, contrates reproduzidos subjetivamente no interior das cavernas européias,nos faz perceber o valor do surreal para o homem primitivo, emaranhado de cores e traços finos sem significado aparente podem traduzir o que foi visto em uma noite de sono na França primitiva e por mais que pareçam incompreensíveispara o historiador ou antropólogo e até mesmo para aqueles que conviviam com o artista, poderiam ter grande apreço para o autor do desenho e significado individual extremamente importante para o mesmo. Não é nosso objetivo discutir á história da arte (para os interessados neste assunto indico o livro do austríaco Ernest Gombrich:A História da Arte) mas sim como estes desenhos estão relacionados aos sonhos do homem primitivo em sua vida privada.

A representação de um sonho por meio artístico levaria toda uma gama de métodos que tinham de ser seguidos.O caráter ritualístico, efêmero e metafísico que circundavam a arte rupestre, necessitava de materiais de igual valor místico.O excremento de morcego será descartado como atributo de valor especial, sendo seu uso atribuído apenas á facilidade com que o material era encontrado.Mas o sangue que era misturado ás fezes,afim de criar uma pasta consistente, com toda a clareza era um artefato de grande valor divino.Se assim não fosse, as tinturas naturais, usadas no tingimento de vestimentas, por exemplo,seriam materiais muito mais cômodos de serem usados.O sangue poderia ser de animais abatidos, como corças e aves por seu valor material, ou sangue humano a fim de unir a essência do artista á sua obra.

Quando um homem pré-histórico das culturas paleolíticas inferiores despertava, ficaria confuso em relação ao seu sonho, e o homem primitivo se indagaria sobre o real significado das seqüências de imagens vista e talvez até comentasse com os membros de seu clã. Nas aldeias primitivas do chifre africano, o Pajé[6], como "ministro espiritual", responsável pela oniromancia na horda, tomaria o papel da interpretação, contudo, sem jamais deixar de lado a vida privada, pois a leitura do que foi sonhado, não se afastaria das leis naturais que regiam a sociedade. E se a interpretação privada segue-se diferente conforme á uma mudança de tempo-espaço, também se estabelece uma relação entre o sonho e o ambiente domestico[7]. Em uma noite de tempestade com raios e trovões que aos clãs de algum vale europeu poderiam causar grande medo e pavor, o sonho teria muito mais significado para o individuo do que em uma noite calma, cujo céu estivesse limpo e a lua garantisse uma grande iluminação e sensação de segurança. Isto por que as forças da natureza, além das famosas deusas da fertilidade, eram as concepções de divindade na idade da pedra, todos os mistérios que regiam seu universo estavam ligados ao ambiente domestico aonde se exercia a vida privada,os sonhos poderiam ser mensagens diretas destas divindades misteriosas e inatingíveis. Daí á importância de uma representação e compreensão do imaginário, o sonho era de grande apreço privado, poderia representar a solução para problemasdiários ou a personificação de desejos que poderiam até mesmo ser desconhecidos do próprio sonhador.

E quando os desejos poderiam estar unidos ao cotidiano? Sonhar com coletas abundantes e uma grande e bem sucedida caçada á mamutes no leste da atual Europa poderia causar uma euforia inimaginável no homem primitivo.Este sonho o levaria a crer que dias de prosperidades estavam próximos e as pinturas nas cavernas que tanto conhecemos poderiam ser a representação deste desejo tão ardente no coração do ser pré-histórico(Agora refere-se as pinturas realistas, ou seja que representam alguma idéia de forma objetiva e sem fugir a realidade) .Ora, garantir á sobrevivência da espécie era á prioridade daquele individuo, e como vimos, a interpretação do sonho era um ato privado.Todos os significados atribuídos estariam ligados ao cotidiano do sonhador, e se por acaso o sonho fosse agradável, a ele seria associado interpretação conveniente.

2.1.2 As dificuldades da vida privada,questões metafísicas acerca do assunto e Xamanismo na interpretação dos sonhos

A importância do sonho também pode se traduzir na existência da duvida desde os tempos pré-históricos.O homem da pré-história também era um ser racional, e por mais que sua inteligência se mostre simples institucionalmente, mesmo sem consciência a respeito, utilizavam de métodos científicos para á execução de suas tarefas diárias como a confecção de uma machadinha primitiva.Ora, era preciso á análise da matéria prima, depois era feito uma comparação entre lascas de pedra para se decidir a melhor e de corte mais afiado, somente então a pedra era acoplada por meio de um nó preciso na peça de madeira.

Para a execução de todas as técnicas que implicavam no método da construção desta simples machadinha, era necessário análise.A partir deste ponto fica claro a capacidade de raciocínio do homem primitivo.Ele era capaz de indagar-se.A base de todo pensamento filosófico.

Estas duvidas estavam presentes paralelamente á existência de problemascotidianos, problemas que deveriam ser resolvidos, muitas vezes por métodos que não eram conhecidos.O sonho, cujo valor privado já foi citado e exemplificado na expressão artística surreal e abstrata,e também na realista , por seu valor religioso que era mais simples e cabível de entender,permite –se chegar ao ponto que os desejos do individuo pré-histórico não se confundem com os problemas de sua vida privada.Nem sempre os desejos eram objetos, na maioria das vezes, são apenas reflexos do inconsciente, já os dilemas da vida cotidiana eram entendidos e localizáveis e faziam uso de um pensamento e análise mais racional.Estes obstáculos á serem superados no mundo do homem primitivo podem ser deduzidos através da observação de sua sociedade vigente: atravessar um lago e estocar alimentos seriam apenas alguns exemplos dos problemas que deveriam ser vencidos, mas não eram só questões do mundo físico que merecem analises, as questões metafísicas como as doenças ,que conforme evoluía a sociedade, ganharam cada vez mais atenção do homem e antes mesmo que a escrita fosse inventada, o ser primitivo era detentor de um grande medo das alterações patológicas sofridas pelo corpo humano, deixando a questão da naturalidade que cercavam á interrupção da vida[8],concepção que prevalecia nos primórdios da civilização, para algo acima do universo tocável.

A doença, problemasde relacionamentos entre membros do clã, anseios em relação ao futuro incerto e o medo da morte eram algo exterior, invisível e que não podia ser visto nem compreendido, como assim podia ser o ataque de um feroz animal. Mas como lidar com isto? Haveria uma forma de lutar contra este inimigo intocável ? As únicas armas possíveis deveriam vir do mesmo mundo a – físico das questões imateriais. Os sonhos reveladores mostravam devido ao seu caráter teológico, soluções para os dilemas da vida privada..Aqui será dado um passo maior no espaço e tempo da história compreendendo civilizações pré-históricas um pouco mais recentes do que, por exemplo, os Cro - Magnos ou os Neardentais, que foram citados anteriormente.Aproximadamente nos anos entre 20000 A.C e 10000 A.c, as sociedades nômades de coletores caçadores, deram grandes passos no que se diz á respeito de religião.

O desenvolvimento da instituição familiar permitiu que outros segmentos e ramificações da vida social e privada florescessem.Os problemascotidianos passaram á ser analisados na vida privada, de forma mais racional e menos instintiva do que alguns milênios atrás. Se tornou necessária a existência de um individuo dotado de uma sabedoria superior,que poderia encontrar respostas e soluções para as questões metafísicas que não podiam se entendidas.Surgia então o Xamanismo e a feitiçaria de adivinhação.

Vale destacar, neste ponto a diferença fundamental nas questões de interpretação do sonhos quando o sonhador relaciona-o com seus próprios desejos ou com problemascotidianos.Quando os sonhos no pensamento privado são associados ás questões do universo que o cerca, há uma dificuldade maior de se atingir uma concepção de verdade, uma vez que o método da representação artística do primeiro item deste trabalho se tornam absoletetos em utilidade(mas não em uso)Havia um objeto, mas não uma técnica de interpretação adequada, pois o interprete inevitavelmente manipularia o resultado de forma a atingir a conveniência.

Sentia-se á necessidade de uma autoridade no assunto.Os xamãs e feiticeiros que surgiram nas sociedades primitivas, de certa forma substituiriam á antiga liderança do macho dominante, funcionando como um sacerdote, mediador entre as questões materiais e imateriais.Sua autoridade religiosa no meio primitivo era incontestável, e neste presente trabalho, acredita-se que as primeiras grandes passadas no mundo da ciência devem ser atribuídas ao trabalho dos feiticeiros que devido ao seu oficio passaram á utilizar da "pesquisa", procurando as melhores ervas curandeiras e testando seus resultados, afim de encontrar a que melhor lhe conviesse.

Na questão dos sonhos, quando a instituição xamanista foi introduzida na sociedade primitiva, o surreal artístico, (não que perdesse seu valor pois tais movimentos artísticos perdurariam até o inicio da fase neolítica.),se tornou método de interpretação ultrapassado (devido ao fator conveniência, já citado) e a questão passou á competência destes feiticeiros.

Os Xamãs exerciam o papel de "mestre de sonho", a quem os indivíduos perturbados por seus pensamentos inconscientes recorriam em busca de uma resposta.Os Xamãs para dar sentido ao que era próprio da vida privada, utilizava de elementos comuns de sua sociedade atribuindo á estes elementos características simbólicas.Por exemplo, em algumas tradições que perduram até hoje no cento da áfrica como tribos de bosquiamos , aondepermanecem vivos os costumes primitivos e pré-históricos, sonhar com uma cobra significa mudança pele,dado á observância dos comportamentos biológicos daqueles animais.

2.1.3 Conclusão acerca do sonho na vida privada do homem pré-histórico

Pode-se concluir que nas sociedades primitivas e pré-históricas independente de seu espaço-tempo, os sonhos eram de grande valor privado.O individuo sonhava e se encantava com aquilo.Surgiam as primeiras indagações a respeito de um mundo exterior ao universo que pode ser tocado e este era o principio da metafísica.O sonho influenciava na arte e através da representação do que foi visto em uma noite de sono, o homem criava o desenho surreal e abstrato de interpretação individual, cujo significado era atribuído aos seus desejos.

E através da duvida, das indagações e de um primitivo pensamento racional, o mundo e suas dificuldades passou á ser vista de uma forma mais metódica, e por uma obvia falta de métodos para resolver os dilemas da vida privada, o ser humano buscou nas questões transcendentais as respostas tanto necessárias.Surgia então os mestres de sonhos, chamados Xamãs e feiticeiros, cuja sabedoria dava caráter quase comicamente cientifico á esta questão tão importante.

O sonho é o momento em que na vida privada não se tem controle do universo, esta instituição é um mistério hoje e foi um mistério no privado individual pré-histórico.



[1] Foi usado o termo "moderno" após a palavra "sapiens" pelo fato de que as espécies humanas de Cro-Magnos por exemplo que muitas vezes são mencionadas neste trabalho, também se tratam de Homo Sapiens, ou seja nossa espécie biológica moderna de ser humano

[2] Ver o livro a "interpretação dos sonhos" de Sigmund Freud

[3] Em emaranhados de linhas sem sentido real aparente são numerosas sendo encontradas em diversos sítios arqueológicos como em Vila Nova/Portugal.

[4]Chauvet-Pont-d'Arc, perto de Vallon-Pont-d'Arc, França.
Caverna de Altamira, perto de Santillana del Mar, Cantábria, Espanha.

[5] Principalmente em sítios arqueológicos no norte e no sul africano.

[6] Sacerdote religioso

[7] Para todos os efeitos a terminologia "domestico" se aplicará ao ambiente aonde vive a sociedade independente de suas características

[8] O ser primitivo neste estagio de desenvolvimento cultural já tinha uma concepção bastante religiosa acerca da vida