Via Crucis em um atendimento bancário.

 

            Quinta-feira. Aproximava-se o final do expediente bancário de atendimento ao público. O estagiário que distribuía as senhas, um tanto quanto acabrunhado, estava sentado enquanto ouvia as solicitações dos clientes e vagarosamente tocava a tela do monitor para obter a tal senha.

            Até a máquina estava lenta para emiti-la. Parceiros no trabalho: o homem e a máquina; velocidade semelhante (verdadeiros “ta-lentos”). Recebo o  papel com letras e números para aguardar  o painel avisar o momento em que poderei ser atendida.

            Espero... Espero... Remexo em todos os papéis da minha bolsa, leio e releio-os. Olho para os lados... quantas pessoas acompanham atentas aquele placar que ora muda, ora repete sequências anteriores e depois permanece estático; alheio às letras e números que nos identificam e classificam numericamente. Considerável quantitativo de massa passiva que alimenta e mantem a estratificação social. Indivíduos que trabalham, estudam ou não; mas desenvolvem atividades em vários segmentos e recebem uma renda inversamente proporcional à produção obtida pelos seus esforços.

             Apresento-me. Educadora e cidadã. Atenta à defesa dos direitos que me garantem a carta magna. Educadora por escolha consciente de realização pessoal. O prazer em aprender com a inteireza das relações entre sujeito, informação, aprendizagem e formação me conduz à inquietação pedagógica e também ao papel social pelo qual sou responsável na construção de uma sociedade com pessoas menos medíocres e com a dimensão da alteridade mais desenvolvida.

            Daquela cadeira em que me encontro acompanho um sem número de ações das pessoas que, ansiosas e (in)diferentes vigiam... esperam...aguardam... O painel alerta para a chamada do próximo; a próxima, desta vez sou eu. As mesas quase emendadas pelo pouco de distância. O diálogo entre os colegas de trabalho são constantes. A todo instante um bancário consulta o outro para sanar dúvidas. Também há conversas paralelas e sorrisos cínicos entre os mesmos.

            Além da espera de mais de três quartos de hora, a mudança de uma cadeira para a outra e a entrega do papel identificador ao funcionário ainda não me garantem pronto atendimento. Início de outra etapa. Duradoura. Referindo-me ao ciclo de vida de alguns vegetais na Botânica imagino um ser em estado vegetativo com atividade fisiológica involuntária; considerando o tipo, ou o estado especial e característico desse atendimento.

            Inicio a minha solicitação ao atendente e sou interrompida pelo colega ao lado que tem dúvidas. Consulta particular novamente. Vivenciando tantas intervenções e interrupções me entrego, como ouvinte, à narrativa de uma senhora que inserida no ciclo vegetativo da espera faz relatos ao atendente da mesa à direita. Mulher idosa, negra, pobre e, possivelmente analfabeta.

            No enredo, um empréstimo feito há cinco anos, um irmão falecido na véspera da liberação do valor cobrado com juros pela instituição bancária, um muro que fora construído com a tal verba, os juros e, por último, a humilde senhora que era a titular da conta. Sujeito? Cidadã? nem pensar! “Assujeitava-se” ao contexto imposto, sem vez e muito menos voz. Conflito estabelecido.

            Ouço todos os pormenores de como fora o muro construído (caído nestes dias em consequências das intermitentes chuvas e falta de estrutura básica de pavimentação da rua em que mora); a doença, a falta de atendimento adequado no SUS e consequentemente o óbito do caçula dos irmãos. Desnecessário dizer que a história é ‘lugar comum’; só o semblante da mulher já comovia pela aparência sofrível.

            O funcionário da instituição que cobrava os juros, todo ele, gestos e atenção eram visivelmente negativos àquela lamúria. Esgueirava-se por completo para não ouvir a mulher e finalizar logo o sofrimento. Dele. Então o seu desejo é ouvido; um amigo sorridente, feliz da vida interrompe a auditoria para comunicar-lhe o sucesso da transferência de trabalho e sobre a venturosa viagem de final de ano ao exterior com a família. Sorrisos. Alegrias. Sucessos.

            E a senhora aguarda cabisbaixa. E eu, também aguardo na mesa ao lado. Duas mulheres aguardando aos funcionários que atendem à pedidos paralelos. Não consigo nem trocar olhares de repúdio da experiência com a senhora, pois ela continua com os olhos voltados ao chão. Lamentável episódio. O cliente que colabora para manter a instituição com os seus parcos vencimentos econômicos encontra-se à mercê de todo o sortilégio de ações daqueles que lhe devem o acesso ao mercado de trabalho; inversões essas que a sociedade moderna traz. “E tudo dorme no confuso mundo.” ("Fernando Pessoa - Obra poética - Volume único", Cia. José Aguilar Editora, Rio de Janeiro (RJ), 1972, pág. 155)