VETERANOS E CALOUROS

 

Em qualquer Universidade existem hábitos e ritos que se perpetuam e fazem parte do espírito universitário.

Eu estava entrando na Universidade de Pádua, sessenta anos atrás, com o coração aos pinotes. Era uma grande responsabilidade; os olhos da família inteira estavam apontados em mim.

Meu pai me deu cinco mil liras – que deveriam durar um mês – e mandou-me para o “matadouro”. Era aquele amplo e sagrado claustro, logo além da entrada monumental, onde eram sacrificados os calouros, em sua primeira experiência universitária.

Hoje não é mais assim, mas naquele tempo, ao fazermos a inscrição, recebíamos uma caderneta, na qual, ano após ano, colávamos o comprovante – do tamanho de um selo de correio – indicando nossa condição de estudantes daquele ano.  

O “matadouro” pululava de aves de rapina, urubus, abutres, corvos; os nossos algozes eram os “veteranos”, estudantes mais antigos, famintos e inescrupulosos.

Todos os anos a tragédia se repetia. 

Um veterano enredava algum calouro e o convidava para um lanche, para explicar – dizia - os perigos da escola e dar dicas sobre como evitá-los; o lanchinho transformava-se rapidamente em um festim, com pratos caros e dezenas de “convidados” que, aguardando empoleirados nas proximidades, vinham chegando à mesa, para participar da festa.

No momento de pagar, explicavam ao incauto que quem tinha um menor número de selinhos tinha que assumir a despesa.

Meu veterano tinha quatro selos. Eu, é claro, tinha só um.

Assim, logo no primeiro dia perdi todo o dinheiro do mês.

 Foi o pior mês da minha vida – fiquei devendo a pensão, com o aquecimento cortado, sem poder comprar os livros, sem fumar, comendo as sobras dos colegas – digo da comida dos colegas – e ainda por cima, indo e voltando a pé na neve. Enfim, um desastre.

Não se poderia levar a mal. Era uma tradição.

Parti então para a vingança: convidei um colega que tinha cinco selos, mas estava atrasado, ainda cursando o segundo ano, por mera preguiça. 

Combinamos a estratégia; provoquei um encontro, e convidei o meu algoz – aquele mesmo, sim -  para um jantar. Ele veio sorrindo. Oba! Estava no papo!

Comemos do bom e do melhor. Na hora de pagar, porém, o miserável me apresenta uma caderneta com sete selinhos.  Estivera escondendo o leite o tempo todo!

Desta vez tive que telegrafar ao meu pai, pedindo socorro. O velho já sabia que isso aconteceria e não se incomodou. Reforçou meu caixa, recomendando-me que ficasse um pouco mais esperto.  Na verdade disse: Menos trouxa!!...

Finalmente passei para o segundo e depois para o terceiro ano. E aí, chegou a hora de minha vingança verdadeira.  No dia do início das aulas fui para o “matadouro” como ave de rapina e não mais como caça.

Encontrei um coitadinho, com cara, jeito e botas de caipira. Fiquei observando-o, por um bom tempo, enquanto ele olhava perdido por todos os cantos, procurando alguma informação, uma dica qualquer. Ninguém lhe dava bola. 

Por fim, aproximei-me e ofereci ajuda. Ele estava mesmo precisando. Não sabia nada de nada...

Para encurtar, convidei-o para um lanchinho e nos fartamos: ele e eu, e mais uns vinte colegas. Na hora de pagar, puxei a carteirinha com os meus mirrados três selinhos, E ele, sem pestanejar, me apresentou uma carteirinha com onze – sim, onze! – selinhos. O desgraçado estava na faculdade havia onze anos – desde o tempo em que eu ainda cursava o primário – e estava esperando justamente por mim!

Foi demais; perdi a coragem: assoberbado pelas dívidas, renunciei à carreira universitária e entrei na profissão de garçom; depois de cinco anos de trabalho, acabei de pagar a dívida.

Porém preferi ficar por aqui, onde os veteranos continuam depenando os calouros, mas deixam em paz os garçons.