* Wanda Camargo

A transmissão de conhecimento precedeu de milênios o início da História. O ensino de geração a geração (que talvez sequer utilizasse linguagem falada), de técnicas de caça, de agricultura, de sobrevivência, iniciou o processo que hoje conhecemos como civilização. A transmissão de crenças e histórias e a reprodução de figuras originou o que chamamos cultura.

Na Grécia antiga, o conhecimento era transmitido por estudiosos, filósofos, cientistas, a pequenos grupos de discípulos em praças públicas, academias, liceus. Durante a Idade Média, o conhecimento foi preservado nos mosteiros, que se dedicavam principalmente à teologia e filosofia. As ciências naturais eram estudadas apenas do ponto de vista religioso.

Nos séculos XII e XIII, foram fundadas em Bologna (Itália) e Paris (França) as primeiras universidades, assim chamadas por se dedicarem aos “temas universais”. O acesso a essas instituições era restrito aos membros do clero e aos indicados pela nobreza. Os alunos iniciantes não tinham permissão de assistir às aulas nas salas com os veteranos, devendo permanecer no vestíbulo - e por isso eram chamados “vestibulandos”.

Durante e após o Renascimento, com o relativo processo de laicização das instituições de ensino, estas passaram a ser procuradas por muito mais pessoas, interessadas no saber e na aquisição de habilidades intelectuais que lhes proporcionassem profissões melhores remuneradas e respeitadas - e com isso deu-se início a um tipo de processo de seleção de candidatos, visto não haver possibilidade de atendimento a todos.

Desde esta época, os processos seletivos constituem um rito de passagem necessário - e centenas de milhares de jovens a eles se submetem, saindo da adolescência, para superar o primeiro desafio da idade adulta.

A época de ingresso no ensino superior é de grande desgaste para os estudantes e suas famílias. Eliminar o concurso vestibular, que em uma única prova realizada num único dia (ou distribuída em dois ou três dias seguidos, o que faz pouca diferença), pretende avaliar conhecimentos e selecionar alguns candidatos em detrimento de outros, sempre foi o sonho de todos os professores e vestibulandos.

No Brasil, desde a criação de algumas Escolas Superiores, no final do século XIX, já existiam requisitos para a matrícula, porém os exames eram aplicados ao final do curso secundário - e não exatamente na entrada no curso superior. Alguns poucos colégios brasileiros (inicialmente apenas o D. Pedro II), por serem considerados de alta qualidade, não requeriam prova de saída.

Porém, com o crescimento dos estabelecimentos com tal equiparação, o exame de ingresso foi introduzido na legislação brasileira, para conter a entrada de estudantes sem adequada formação prévia, como resultado da Lei Orgânica de Rivadávia Correa, de 1911. Todos os candidatos aprovados podiam, portanto, matricular-se. Esta situação se altera sob o governo de Artur Bernardes, em 1925, quando, além de sacramentar o termo vestibular, foi instituído o número máximo de vagas por curso, o que passou a dificultar o acesso.

Com a queda do Estado Novo, o país entra em um ciclo expansionista. Necessitado de mão de obra, o Brasil vive um aumento no número de instituições de ensino superior. Com isso, a prova constituída por questões de múltipla escolha é popularizada - até que, em meados da década de 1960, o concurso vestibular efetiva-se como um exame de entrada, específico para determinados cursos, com provas diferenciadas, que procuram verificar as habilidades específicas para determinados exercícios profissionais.

O acirramento da disputa pelas vagas, em função da progressiva urbanização e industrialização brasileiras, exige critérios classificatórios mais rígidos, para evitar os denominados “excedentes” (candidatos que haviam obtido a nota para entrada no curso pretendido, mas para os quais não havia vagas disponíveis). Optou-se então pela adoção da “nota de corte”, sistema pelo qual apenas seria considerado aprovado o número de candidatos para os quais houvesse vaga. Os conhecimentos exigidos tornam-se cada vez mais específicos e aprofundados, transformando as provas em verdadeiras batalhas de memorização.

Isso modifica o ensino na escola secundária, que procura trazer a si os conhecimentos exigidos nos processos seletivos – um desastre para o processo de aprendizagem deste nível de ensino, sem aparentemente melhorar o superior.

Assim, fracassando em exames internacionais comparativos de aprendizagem, muitas Instituições de Ensino Superior (IES) de todo o país repensaram seus métodos de seleção e planejaram implantar outras modalidades de processo seletivo – entre elas, o Processo Seletivo Seriado (PSS).

Neste processo, a seleção para ingresso é feita por meio da média obtida pelo aluno num exame ao final de cada ano letivo do ensino médio. Com o resultado das três provas, é calculada a média - e os melhores colocados terão garantido o ingresso na Universidade. O conteúdo cobrado em cada uma das provas é referente apenas ao programa do ano em curso - ou seja, ao concluir cada série do ensino médio é realizada uma prova apenas com os assuntos vistos nesta etapa. A ideia é que o PSS privilegia os estudantes que se dedicam aos estudos durante todo o período escolar.

Os primeiros PSS’s foram implantados no Rio Grande do Sul, com propostas extremamente sérias de melhoria da qualidade do ensino médio, grande dificuldade de implementação e uma concepção magistral da extensão universitária. Um processo seriado implica o cadastramento de todas as escolas de ensino médio na região de abrangência de cada instituição de ensino superior. As instituições universitárias são responsáveis pela aplicação dos testes realizados ao final de cada série.

No entanto, não se trata apenas de preparar uma prova (bem feita e coerente) e aplicá-la, mas também - e principalmente - de trabalhar em parceria com as escolas de ensino médio. Esta atividade conjunta traz ganhos de qualidade para ambas, com eventuais alterações curriculares e adoção de metodologias pertinentes e, ao mesmo tempo, adequação das provas aplicadas à realidade regional. O objetivo é permitir que o aluno possa, com equidade, realizar exames ao final de cada etapa e demonstrar sua maturidade e conhecimento. Sem essas atitudes, fica difícil garantir chances iguais a todos os alunos.

Algumas instituições universitárias, inclusive no Paraná, paliativamente distribuem aos alunos interessados os conteúdos programáticos que serão cobrados em suas provas - o que constitui uma forma indireta de exigir das escolas de ensino médio o atendimento a estas prioridades. Um processo seriado envolve a adesão da comunidade para que tenha chance de lograr seus objetivos. Necessita que as universidades realmente se envolvam (e, possivelmente, realizem formação continuada) com os docentes do ensino médio. Algumas IES no Rio Grande do Sul chegam a ter mais de 90 mil alunos do ensino médio em sua região de abrangência. É um processo sério e moroso, carente de grande planejamento e decisão política.

Atualmente, o PSS vem sendo um pouco “atropelado” pelo ENEM, que tem outros pressupostos e tende, aparentemente, a se tornar hegemônico. Com uma proposta interessante - a de eliminar os conteúdos meramente decorados e privilegiar o entendimento, o raciocínio e o poder de argumentação e interpretação da realidade do estudante -, o ENEM tende, porém à bipolaridade: criado para constituir-se em sistema de avaliação da educação brasileira, cada vez tende mais a ser um vestibular, ou seja, uma forma de garantir acesso à educação superior.

Estes dois aspectos não se confundem - e têm diferentes pressupostos. Neste momento, algumas instituições utilizam o ENEM como única modalidade de processo seletivo. Porém, por outro lado, é forte também a tendência de retorno, por parte de muitas instituições, aos modelos mais antigos de seleção - ou seja, por áreas de conhecimento, valorizando o contexto específico de cada área de atuação.

Somos um país conhecido pela profusão de propostas pedagógicas - a maior parte delas longe da obtenção de melhoria da qualidade de ensino. Esperamos não nos tornar também campeões em novas propostas de acesso, se estas não tiverem a seriedade e cuidado no trato educacional como adendo indispensável.

Um processo seletivo é isso tudo, um dos momentos privilegiados da vida acadêmica e pessoal, e também uma pausa para reflexão sobre o futuro que queremos para nós e para nossa comunidade.

* Wanda Camargo é educadora e presidente da Comissão do Processo Seletivo da UniBrasi