VERDADES ANTROPOMÓRFICAS: CONTRIBUIÇÃO PARA O ENTENDIMENTO DO ANTROPOCENTRISMO ESPECISTA UTILITARISTA

 

Humberto Goulart Guimarães[1]

 

SUMÁRIO

 

1. Introdução: propósitos do artigo – 2. O paradigma científico: matrizes das dicotomias – 3. O estranhamento: raízes da domesticação da vida – 4. O estereótipo do antropocentrismo especista utilitarista – 5. Considerações para uma ética prática – 6. Referências

 

“Temo que os animais considerem o homem como um semelhante que se privou da razão sadia, como um animal no delírio, que ri e que chora, como um animal infeliz.”

Friedrich Nietzsche

 

1.    INTRODUÇÃO: PROPÓSITOS DO ARTIGO

Este trabalho é parte da dissertação de mestrado em Geografia concluída pelo autor. As partes selecionadas por hora mostram um contexto favorável a uma discussão ainda muito restrita no pensamento humano: o abolicionismo animal. Nesse sentido trouxemos três pontos que visam espraiar-se em reflexões mais profundas, ecologicamente, sobre aquilo que denominamos de “verdades antropomórficas”. São elas: o paradigma científico; a autodomesticação de nossa civilização; e a representação antropocêntrica da vida cotidiana.

Os três pontos se interpenetram, pautados em uma discussão que reinterpreta a humanidade sem a romantização e superioridades atribuídas a nós mesmos para justificar e servir de parâmetros “legais e morais” para dominarmos a Terra, que não é somente nossa. É fato que estamos aqui observando estes pontos de vistas e tendo acesso a grupos de pesquisa e de novas posturas éticas “graças” à ciência moderna, contudo isto não deixa os grilhões das correntes humanas isentos. Como pretendemos mostrar, a existência humana após a civilização impôs o antropocentrismo especista de forma utilitarista para a domesticação humana do mundo, o desmembramento foi uma ciência repleta de representações criadoras de “verdades” pautadas no “homem”. Fruto disto serão os estereótipos que em nossa rotina diária reforçarão toda a civilização humana, que ao mesmo modo que domestica a “natureza externa” também se “autodomestica”.

O objetivo é criar uma ética prática, onde aqueles que estão se familiarizando e/ou os que já são “ativistas” deste modo de vista abolicionista animal busquem mais fontes de respaldo e de consciência para vivenciarmos uma forma contrária de abolir todos os entes vivos do utilitarismo desenfreado da ganância humana – inclusive nós mesmos.

2.    O PARADIGMA CIENTÍFICO: MATRIZES DAS DICOTOMIAS

Os pilares que compõem o atual paradigma moderno de ciência e de visão de mundo vêm de um conjunto em processo alavancado pelas revoluções do pensamento renascentista. O renascimento científico, perpassando por três séculos (XV, XVI e XVII), personificado sobre os feitos de três nomes centrais (Copérnico, Kepler e Galileu Galilei), irá espraiar-se até o condensamento das ideias do inglês Francis Bacon. Este como sustentáculo inicial do que temos como paradigma moderno científico, da visão de mundo ocidental, e principalmente, de natureza.  O paradigma que pode ser intitulado como: baconiano-cartesiano. Devemos averiguar as bases deste paradigma, com o fito de saber por que temos a acepção de natureza como externa à existência humana. Busquemos em Bacon o que se afirmará como método em Descartes.

Pelo que nos explicita Smith (1988, p. 27), “mais que qualquer outro acontecimento conhecido, a emergência do capitalismo industrial é responsável pelo surgimento das concepções e visões contemporâneas sobre a natureza”, sendo uma apropriação para a lógica capitalista desta concepção. Este novo momento organizacional da existência humana europeia, que perpassará para o mundo visando o domínio político civilizado sobre o natural, “é caracterizada ideologicamente por uma nova concepção de universo, de Natureza e consequentemente de ciência” (SPRINGER, 2008, p. 47). As bases que viriam desta “ciência moderna” seriam as bases para a lógica de produção capitalista. E assim como Ribeiro (2006, p. 47), verificamos que, nesse período de revolução científica, “teve por central o substituir das disciplinas literárias pelas ‘científicas’, com novos métodos e modelos”. O cientista iria tomando o lugar do sábio, e junto a essas condições temos a figura central de Francis Bacon.

Bacon estará no ínterim da lógica capitalista, o então Lord Chanceler da Inglaterra afirmará os benefícios políticos de poder sobre a natureza. Segundo as palavras de Camargo (2005, p. 38, grifos nossos), para Bacon “sua função seria tornar a Inglaterra uma grande potência em face das outras nações; assim, tratou de desassociar a natureza da ideia de sujeito contemplativo e divino, tornando-a um objeto que deveria servir ao desenvolvimento do comércio e ao efetivo progresso de sua nação”. Bacon como personificação científica do capitalismo industrial inglês, saiu na frente de seus concorrentes, provando via do método científico que o progresso do tempo levaria ao aperfeiçoamento humano.

Este aperfeiçoamento humano teria como base formulações metódicas que constituiriam a supremacia científica no modo de pensar capitalista europeu. O que teremos é uma oficialização da ciência, como instrumento de controle político e ideológico da visão de mundo hegemônica. Uma nova percepção de mundo, agora objetiva e racional, no qual “a enorme importância atribuída à objetividade, fetiche do discurso científico, vem desta possibilidade de construir um objeto do conhecimento por intermédio do método” (GOMES apud. RIBEIRO, 2006, p. 47, grifos nossos). A intenção europeia de “desmistificar” o Oriente e o Novo Mundo iria influenciar Francis Bacon para o desenvolvimento da chamada ciência experimental. Numa das propostas de Bacon, estava a busca de sustentação da tese de que a ciência necessitava da observação e da experimentação, que pela indução, tenderiam formular às leis uma ordem sistemática e geral (indo dos casos particulares até as generalizações).

Bacon, pelo que expõe Ribeiro (2006, p. 95),

proclamou o método como o modo seguro de ‘aplicar a razão à experiência’, investindo o conhecimento lógico aos dados oferecidos pelo conhecimento sensível; enlevando a veracidade mediante o método experimental que, por seus esforços, representou a versão pioneira do empirismo, ao prezar que todas as proposições dependem da experiência para serem avaliadas quanto à verdade.

Estava posto como ordem de seu pensamento e prática, uma nova teoria e metodologia para o que seria o desenvolvimento humano, por onde, a razão, seria a condição que habilitaria o desvelar das leis da natureza. O método científico serviria como um guia, uma regulação e auxílio ao sujeito, “na análise e construção do conhecimento da realidade. Buscando a verdade de modo racional” (ibid., p. 96). Um prólogo ao método que dicotomiza efetivamente sujeito/objeto: o método cartesiano.

O que estamos expondo sumariamente, por via das análises de Bacon, é o empirismo inglês, ou, a versão inglesa do método empírico indutivo. As acepções de domínio da natureza, de conhecimento advindo da experiência, e, da razão como molde ao que captamos pela experiência, condensam-se na expressão: “a razão tem uma função muito próxima à de um receptáculo das experiências, reproduzindo em si uma ordem que já existe na própria natureza” (HANSEN, 2000, p. 61). Este seria o resumo básico do empirismo indutivo como método baconiano de ciência. A razão como articuladora entre as ideias e pulsões humanas, expressas no progresso e domínio europeu (o sujeito), e as ordens de causa e efeito preexistentes na natureza (o mundo como recursos, trabalho, povos, terras, animais não-humanos, vegetais, etc. – o objeto). Assim, para Bacon, o progresso seria contínuo do homem (inglês) em direção à natureza (base para o sustento capitalista). Deste modo, a ciência se institucionalizou, “sem ser apenas mais uma investigação embrionária, a ciência tornou-se uma instituição social cada vez mais importante, com uma vida e uma lógica próprias” (SMITH, 1988, p. 32).

Com as bases deste método, é que a pesquisa científica, agora como uma instituição social, pôde oferecer os caminhos e meios para se dominar a natureza e a natureza humana. Este movimento metódico, a partir de Bacon, elaborou na ciência um tratamento da natureza como algo exterior ao ente humano, à existência humana. A investigação científica calcada no domínio da natureza foi, e continua sendo, uma ideologia do mundo máquina, pela concepção de natureza mecanizada. Bacon passaria assim a reformular os parâmetros filosóficos sobre o método, calcado em sua acepção de natureza. Uma visão de mundo científica e renovada, que buscasse o domínio da natureza, no qual ciência e poder humano são sinônimos, “pois a Natureza não se vence, senão quando se lhe obedece” (BACON apud., CAMARGO, 2005, p. 39). É assim que conhecendo o inimigo e a si mesmo e você obterá a vitória sem qualquer perigo, e conhecendo o terreno e as condições da natureza você será sempre vitorioso; como na “Arte da Guerra” de Sun Tzu (1997).

Através do conhecimento do inimigo, na superação pela mentalidade científica dos ídolos[2], Bacon caminhava com uma proposta racional para restabelecer o que seria o imperium hominis (império do homem) sobre as coisas. A verdadeira filosofia não é apenas a ciência das coisas divinas e humanas. É também algo prático: saber é poder. E este poder do saber sobre as coisas práticas, tem uma base filosófica bastante arraigada nos preceitos capitalista da época: o de domínio da natureza. Logo, podemos dizer que as bases da verdade filosófica que compõe o método empirista baconiano é uma visão ontológica excludente da natureza[3], em relação à existência humana. Devemos sempre buscar uma natureza humana, de causas que destinam efeitos, como se todas as ordens fossem de essência, naturais, obedecendo à natureza humana dominadora (sujeito do conhecimento) da natureza exterior (objeto do conhecimento). Com esta formulação filosófica, a nova visão do mundo, nos conduz a uma distinção fundamental, tanto no desmembrar “engavetado” da moderna ciência quanto no senso comum: a de natureza (o ente natural) de um lado e a de pessoa humana (o ente existente humano) de outro. Aquilo que Sousa Santos (2002, p. 13) expôs como sendo a total “separação entre a natureza e o ser humano”.

Balizado nestes pressupostos, o conhecimento (poder) científico parte no avanço pela observação e experimentação descomprometida, sempre rigorosa no entendimento profundo e no domínio dos “fenômenos naturais”. Estes são os postulados que encontramos no principal livro de Bacon, o Novum Organum, “no qual propôs uma nova ciência que pretendia dominar o meio natural e que fugia da ideologia escolástica” (CAMARGO, 2005, p. 39), tendo como alvo o domínio sobre a natureza que,

é tão-só extensão e movimento; é passiva, eterna e reversível, mecanismo cujos elementos se podem desmontar e depois relacionar sob a forma de leis; não tem qualquer outra qualidade ou dignidade que nos impeça de desvendar os seus mistérios, desvendamento que não é contemplativo, mas antes activo, já que visa conhecer a natureza para dominar e controlar. Como diz Bacon, a ciência fará da pessoa humana ‘o senhor e o possuidor da natureza’” (SOUSA SANTOS, 2002, p. 13).

Vamos conhecendo assim as bases filosóficas do método científico moderno, onde a concepção de natureza se molda e é modelada pela definição de um conhecimento objetivo e racional, de dominação do homem (civilizado, branco e europeu) sobre o que se trata como natural (matéria inerte, existentes sem razão, dignidade e sentimento). Desde o solo, os rios, as plantas, até os outros animais; culminando nos negros, índios, mulheres[4] e tudo que estiverem de alguma forma, externos à existência dominadora humana. Nesse entendimento, Springer (2008, pp. 48-49), resgata Marx, Engels e Merleau-Ponty, para dizer que a natureza tornou-se mercadoria, antes de tudo um objeto externo, feito de partes exteriores por seres inteiramente exteriores (e inferiores) que satisfaz as necessidades humanas. Esta visão burguesa de natureza, da externalidade homem/natureza, na busca de obtenção de cada vez mais riqueza, e do conhecido desenvolvimento e progresso.

Como já expusemos, o método baconiano está na lógica do modo de pensar capitalista, no qual a natureza é inesgotável fonte de recursos. Isto que “é uma realidade aceita por todos” (SMITH, 1988, p. 27), da dominação da natureza (até os dias de hoje); espinha dorsal do que concebemos capitalisticamente por natureza. Esta natureza, mais mecânica que orgânica, sem dignidade, razão e emoção (objeto do domínio humano) é a base fundamental para o que temos hoje nas ciências: a dicotomia sujeito/objeto. A relação de externalidade exposta tão veementemente por Bacon, de Homem/Natureza, será a base lógica para o pensamento ocidental moderno elaborar o seu paradigma de ciência: o de que o sujeito do conhecimento (cientista pesquisador) deverá sempre ter um objeto de estudo (a ser averiguado, desmembrado, como um recurso de seu saber).

 “A estruturação de um novo método científico, que irá influenciar a ciência até os nossos dias e consolidar o domínio da natureza” (CAMARGO, 2005, p. 39), no qual teremos a espacialidade cartesiana de mundo, com uma acepção de mundo totalmente metafísica. É mais do que preciso remontar às bases metafísicas que irão compor o pensamento de Descartes e seu método de análise do mundo. Desde as ligações basilares em Bacon, ganhando corpo pelas formulações filosóficas cartesianas de Natureza (a base dicotômica homem/natureza), Método (a dúvida metódica) e de Ciência (a dicotomia sujeito/objeto).

René Descartes (1596 – 1650), o francês também conhecido como Renatus Cartesius (forma latinizada), foi filósofo, físico e matemático. Alcançou notoriedade por seu trabalho revolucionário na filosofia e na ciência, mas também, obteve reconhecimento matemático por sugerir a fusão da álgebra com a geometria. Deste modo, foi uma das personificações da chamada Revolução Científica, ou Renascimento Científico. Descartes pode ser considerado um dos pensadores mais importantes e influentes na História do Pensamento Ocidental (de base europeia). A relação Bacon-Descartes, sobretudo, num desencadeamento lógico de pensamento, tendo como ressalva o método analítico de cada um (estes pensadores contemporâneos), conferiram uma base de consciência filosófica bastante ampla para seus sucessores (principalmente a Isaac Newton) na Ciência Moderna. Na busca de desmistificar a chamada Natureza e o Novo Mundo, “para cada caravela colocada ao mar, para cada aborígine escravizado ou morto, para cada árvore derrubada em nome da europeização do planeta, novos outros rumos do pensar, do significado do conhecer, foram igualmente sendo construídos” (SANTOS, D., 2002, p. 139). Nesse processo de colonização dos valores e modos de pensar, de hegemonia europeia ocidental, o conhecimento científico que vai sendo articulado e institucionalizado, irá, nas palavras de D. Santos, caracteristicamente deslocando o sujeito: “recolocando-o e redimensionando-o enquanto sujeito do conhecimento” (ibid., p. 139, grifos nossos).

E nesse sentido que o pensamento de Descartes terá muita influencia sobre o empirismo do próprio Bacon, pois, o empirismo não conseguirá continuar, ou “sobreviver”, sem absorver o que no pensamento cartesiano será operacional, o papel da linguagem matemática. Absorvendo assim o pensamento empirista baconiano, o racionalismo filosófico-matemático cartesiano, amalgamará uma maior influencia sobre o pensamento científico institucionalizado daí em diante. A externalidade que se produzira sumariamente em Bacon será reafirmada pelas formulações lógicas e antropocêntricas de Descartes. Esta externalidade entre homem e natureza será a base para a dicotomia científica cimentada na era moderna: a dicotomia sujeito/objeto. As premissas da filosofia cartesiana acerca da percepção do mundo serão assentadas na dicotomia do natural/não natural. Nas palavras de Moreira (1993, p. 17, grifos nossos), “significa isto que neste mundo se distinguem o natural e o não-natural, nascendo dessa distinção o moderno conceito de natureza e de homem. Natureza é o mundo racional dos corpos submetidos à uniformidade do movimento mecânico. Homem é o correlato do conceito do espírito, o mundo subjetivo das ideias”.

Os respaldos tradicionais de atomismo individualista[5] antropocêntrico cartesiano, segundo Ribeiro (2006, p. 49, grifos nossos), “considerava as relações humanas reflexas, reflexos de estímulos, captados pela inteligência humana: a substância colocada na glândula epífise por Deus, a diferenciar o homem dos animais inferiores”. Esta concepção cartesiana de inteligência e de homem auxiliará a sublevar, ainda mais, o distanciamento homem-natureza.  

Pois, o que temos é uma nova concepção de natureza e de homem sendo hegemonicamente assimilada para todo o mundo científico, e não-científico: o do senso comum. A relação de externalidade, que será uma dicotomia impossível de ser revertida no modo de pensar capitalista científico moderno (a homem/natureza), abarcará todas as nossas relações cotidianas da existência humana. As ideias que apresentamos de mundo, de humanidade, de animal e de natureza, são advindas destes tempos; do conjunto de formulações básicas perpassadas de Bacon a Descartes, assim como já realçara Capra (1986, p. 56), “Descartes compartilhava do ponto de vista de Bacon, de que o objetivo da ciência é o domínio e controle da natureza”. Assim sendo, já através dos pressupostos baconianos de dominação da natureza, o capitalismo industrial europeu buscou se alastrar e usurpar suas bases para a expansão; essas bases sendo apreendidas como a natureza. Com Descartes a música toma novos acordes, mais calcados na divinização dos fatos, na aplicação matemática e metafísica via do racionalismo, porém, a letra mantém-se a mesma, “é o capitalismo nascendo e se instituindo ôntica e ontologicamente em sua dimensão espaço-temporal concreta, pelo domínio fetichizado da natureza e do homem” (MOREIRA, 2008, p. 61).

A partir de Descartes, tem-se a consolidação do modo de pensar científico capitalista antropocêntrico, na combinação humana de matéria, intelecto e sentimento. E para abarcar tais fatos, Descartes, somente via na racionalidade (humana) a concepção de essência da verdade. É isto que Porto-Gonçalves (2006) busca elucidar com a tríade de dicotomias ocidentais reforçadas pelo pensador francês. As oposições homem-natureza, espírito-matéria e sujeito-objeto. Destaca ainda Porto-Gonçalves (ibid., p. 33) que, “dois aspectos da filosofia cartesiana aqui expressos vão marcar a modernidade: 1º.) o caráter pragmático que o conhecimento adquire”, no qual os conhecimentos científicos sejam aplicados ao cotidiano e naturalizados no senso comum do “cientificamente correto”, onde testes em animais não-humanos vivos não espantam ninguém, e até são sacralizados como bens em nome do avanço científico e humano[6]. Esta forma de ver o natural (não-humano), distinto do não-natural (humano), como recurso (bem material, meio para tal fim), desemboca no segundo aspecto da marca hodierna do modo de pensar científico capitalista: o que Porto-Gonçalves enunciará como “2º.) o antropocentrismo, isto é, o homem passa a ser visto como o centro do mundo; o sujeito em oposição ao objeto, à natureza”.

O domínio do homem na filosofia cartesiana se entenderá também ao estamento científico antropocêntrico moderno, levando às mãos do homem, a capacidade de dominar a natureza. Este é o fundamento calcado na razão, o que segundo o próprio Descartes (1973, p. 37, grifos nossos), “quanto à razão ou ao senso, posto que é a única coisa que nos torna homens e nos distingue dos animais”. Logo, a razão como ser único e absoluto que nos distingue dos outros entes vivos é posta como uma lei que nos dá todos os direitos de pensar o mundo como algo feito para o homem, um objeto para o sujeito, dono da razão: o sujeito do conhecimento.

Vamos passando então para uma próxima abordagem, a da acepção filosófica de natureza em Descartes, i.é, uma análise dos fundamentos metafísicos de sua visão de mundo partindo do ponto de vista da natureza, até o fatídico momento da formulação metódica da dúvida em relação com suas bases racionalistas. Como a busca de Descartes sempre foi de “procurar adquirir algum conhecimento da natureza” (ibid., p. 79), avançando sempre neste conhecimento para “assim nos tornar como que senhores e possuidores da natureza” (ibid., p. 71), o que há de melhor para nós seria averiguar algumas de suas bases teológicas e metafísicas para o uso da razão. O ser-razão colocado por Deus na mente humana, para que possamos compreender, dominar e possuir o seu mundo como objeto. Esta que seria a base filosófica onto-teo-lógica no pensamento cartesiano.

É nesse sentido que o ser-razão divinizado alçará voo nas elaborações filosóficas de Descartes, mas, tendo como base uma acepção muito cara de natureza: metafísica; como uma onto-teo-logia do mundo, através do ser-razão divinizado. A base da razão como clausura do pensamento cartesiano casa-se em grande estilo com a sua acepção de natureza, externa-mecânica-sem razão. Assim, como nos explicita Camargo (2005, p. 40), “a razão, então, traria ao homem uma certeza: se a natureza não sofre, não chora e não se manifesta, então também não pensa, logo não existe como ser animado, provido de sensibilidade e sentimentos”. Este ser-razão cartesiano serviria tanto para mostrar a lógica humana de pensar, quanto para distinguir, externalizar humanidade/natureza. A dicotomia do que seria humano, racional e colocado por Deus no corpo-matéria humana, do animal, mecânico e irracional. Colocado no mundo para servir ao mundo-do-homem.

Na visão antropocêntrica de mundo, as acepções de homem e natureza reafirmarão o domínio humano sobre tudo o que vê. Podendo agora experimentar, dilacerar, analisar e usufruir sem nenhum sentimento de remorso. Pois agora, cientificamente, a natureza mecanizada pelo estatuto do irracional ou animal, não possui sentimentos, logo não sente dor. A natureza no pensamento cartesiano seria nada mais que “uma maquina perfeita submetida a leis mecânicas exatas” (SPRINGER, 2008, p. 49), pelo qual o saber científico deveria operar e manipular, na busca constante da exploração dos seus funcionamentos.

Assim observamos que nesse momento do pensamento cartesiano, emerge uma grande dicotomia lógica: a separação corpo/alma. Esta dicotomia, aliada a já elaborada homem/natureza, auxiliaria na superação de nossos espíritos animais, buscando salvar os homens das paixões (lembremos-nos de algo semelhante em Bacon, a superação dos “ídolos”). Um desencantamento da humanidade “para a ciência moderna invoca a perda da sensibilidade, da ética, dos valores, da alma enfim da consciência” (ibid., p. 50). Nessa dicotomia corpo/alma, reafirma-se a externalidade homem/natureza, pois, corpo seria o mecânico vindo da natureza, porém, contido pela alma, repleta de razão divina, algo particularmente humano.

Esta acepção de natureza, mecanizada, irracional e desprovida de alma é a base do que conhecemos como o especismo. A primeira forma de estranhamento humano em sua acepção e prática de mundo. Isto será a exposição de Peter Singer (2004), através de um histórico do especismo ocidental, pelo qual o estabelecimento científico cartesiano, num “cruel” estamento do ser-razão cristão, irá naturalizar a dominação sem precedentes do mundo e dos animais; do que seria a natureza. Sob a influência da nova e excitante ciência da mecânica, Descartes afirmou que tudo o que era composto por matéria era regido por princípios mecanicistas, como aqueles que regiam o funcionamento de um relógio. A lógica filosófica metafísica cartesiana afirmou haver não um, mas dois tipos de coisas no universo: as coisas do espírito ou alma e coisas de natureza física ou material (as dicotomias homem/natureza e alma/corpo-matéria). Os seres humanos têm consciência, e a consciência não pode ter a sua origem na matéria. Descartes identificou a consciência com a alma imortal, que sobrevive à decomposição do corpo físico, e declarou que esta fora criada especialmente por Deus. De todos os seres materiais, declarou Descartes: apenas os seres humanos possuem alma. Assim, na filosofia de Descartes, a teoria cristã de que os animais não têm almas imortais conhece a consequência extraordinária de eles também não terem consciência. Eles são meras máquinas, autômatos. Não experimentam prazer nem dor, nem nada. Embora possam guinchar quando são cortados por uma faca ou contorcer-se na tentativa de escapar ao contato com um ferro quente, isto não significa que eles sintam dor nestas situações. São regidos pelos mesmos princípios que regem o funcionamento de um relógio e, se as suas ações são mais complexas do que as de um relógio, sendo porque o relógio é uma máquina feita pelos humanos, ao passo que os animais são máquinas infinitamente mais complexas, tendo sido criadas por Deus (ibid.).

Temos então uma síntese desse pensamento cartesiano que externaliza os homens providos da alma racional criada por Deus, dos animais sem razão. “Trata-se, portanto, de uma reconstituição imaginária do homem enquanto animal-máquina, antes da inserção da alma. Na realidade, o corpo humano nunca é uma máquina, pois está sempre unido a uma alma” (DESCARTES, 1973, p. 63, nota do editor, possui número 13 no original). Deste modo o estamento lógico cartesiano, do modo de pensar capitalista ocidental, vai se elaborando em uma acepção metafísica de natureza. Cada vez mais reforçando sob dogmas cristãos a condição humana de entes providos do ser-razão-alma concedido por Deus, distinguindo-nos de “qualquer outro animal sem razão” (ibid., p. 68.). E, sendo assim, podemos a partir deste modo de pensar, sem hesitar, “conhecer a diferença existente entre os homens e os animais” (ibid., p. 69, grifos nossos), a diferença, ou dicotomia estabelecida, entre a humanidade e os animais (homem/natureza) seria uma modalidade ontológica do ser na lógica cartesiana, pois existiria de fato. E o ser que distingue é o ser-razão (ou ser-alma); um ser de estatuto ontológico, ou onto-teo-lógico.

Essa busca de um estatuto ontológico é o elemento chave de toda acepção cartesiana de mundo, de homem, de razão, de natureza e, como “herança” às ciências: de normatização ou concatenação do pensamento pelo método e da abstração do mundo (espaço), como absoluto e externo à humanidade. Isto é o que podemos conceber como a filosofia cartesiana, buscando ontologicamente comprovar a existência de Deus (o ser-divino-racional, ou o Ser perfeito). Nesse caso específico de Descartes, sua filosofia se constituirá como uma Metafísica (na concepção pejorativa do termo), ou na interpretação de Heidegger (1996): uma onto-teo-logia.

A aspiração de vida cartesiana em comprovar a existência divina é bem próxima das considerações postas por Heidegger (ibid., p. 192), no qual “a metafísica é teologia, uma enunciação sobre Deus, porque o Deus vem para dentro da filosofia. Assim se agudiza a questão do caráter onto-teo-lógico da metafísica”. Como na metafísica cartesiana, essa onto-teo-logia, busca reduzir o fim do entendimento das coisas, do mundo e dos homens como reafirmação de uma pré-existência produtora divina. Numa tentativa da metafísica de “ultrapassar, com seu pensamento, tudo em direção de Deus” (ibid., p. 194), efetuando fundamento e respaldo a todos os atos humanos por respeito às normas naturais de Deus. Pensando essa divindade enquanto ente supremo, e que tudo regulamenta, está conformando-se uma lógica como Téo-lógica; um fundamentalismo da razão: em, pelo e para Deus. Este fundamento transparece nas “Meditações” de Descartes, onde se busca demonstrar, como cerne do tratado, a existência de Deus e a distinção real entre a alma e o corpo do homem (ambas criadas por Deus, porém o corpo como algo maquínico e a alma como um dom, uma dádiva concernida de Deus somente ao homem). Nessa expansão de esforço teórico pós “Discurso do método”, Descartes, dentre pormenores, se envereda na ideia de que a dúvida não nos leva ao pensamento, mas se duvidamos é porque pensamos, assim existimos (somos também imaginativos e sensíveis – tanto nos sentimentos quanto nos sentidos). Através de Deus soberano, eterno, infinito, imutável, onisciente, onipresente e criador universal é que se pode entender a objetividade real e o sentido das coisas, e não pela falsidade material. A razão divina estaria acima do mundo, concluindo-se que Deus ontologicamente existe como substância infinita, perpassada essa substância para o homem, por onde Deus se realiza, através do homem (DESCARTES, 1973).

Segundo crítica de Sousa Santos (2002, p. 14, grifos nossos), Descartes “vai inequivocamente das ideias para as coisas e não das coisas para as ideias e estabelece a prioridade da metafísica enquanto fundamento último da ciência”; esta metafísica onto-teo-lógica, calcada em Deus que nos passa a Razão para dominar as coisas materiais, via da ciência. Como base para essas ideias divinas estava a única chave para desvendar os segredos da natureza (da materialidade falsa): a Matemática, através de sua Geometria analítica. Esta seria para Descartes, como nos prova Douglas Santos (2002, p. 145), a “única ferramenta capaz de impedir o engano”. Este autor continua em sua exposição, remetendo a ciência construída pelo desenvolvimento da sociedade burguesa à ideia de “lei natural” (da metafísica divinizada) e sua formulação matemática cartesiana (ibid., p. 152). Nesse sentido concordamos com as palavras críticas de Moreira (1993, p. 16), de que “estamos assim diante de um mundo rigorosamente regulado pelas relações constantes da matemática e que o homem pode conhecer e controlar, sem que cometa qualquer sacrilégio”, pois, esta matematicidade perfeita do mundo produto de Deus foi concedido ao homem como fonte de domínio e exploração, pelo poder e saber racional, advindo novamente, como num ciclo vicioso (a “lei natural”), das “mãos” justas de Deus[7]. Justificara na sua pessoa o consentimento divino tendo a “certeza de que Deus lhe apontava uma missão e dedicou-se à construção de uma nova filosofia científica” (CAPRA, 1986, p. 53). 

O mundo passará a ser visto como uma uniformidade mecânica universal, com a sua feição geométrica, através do método matemático como modelo para a aquisição de conhecimentos em todos os campos (temos a Geometria analítica). Com a justaposição de geometria, álgebra e aritmética temos essa nova forma de análise do mundo, a acepção do universo como uma uniformidade mecânica produzida por Deus. Não é por acaso que a natureza é mecanizada, a Geometria analítica emerge como sustentáculo de negação da dúvida e que o mundo (espaço) será algo externo e vazio, mas por essa base filosófica de Descartes, calcada no Deus Ser-razão-perfeito, criador de um mundo universalmente maquínico e doador da dádiva da Razão para os homens existirem e dominarem o que já lhes foi dado: o mundo. Por esta formulação filosófica que tomará corpo a institucionalização da ciência e seu método moderno de apreensão deste mundo-do-homem.

Um dos pilares para o modelo de método científico moderno (até mesmo para os que se dizem pós-modernos) é o método cartesiano. Tal esforço intelectual visa como seu objetivo geral e pontual a verdade (como algo cabível de ser concebido, pois provado metodicamente, cientificamente). Perpassando pela lógica do ser-pensante e da dúvida, atrelando seu estatuto verídico através da matemática visando o fim comprovado através do conhecimento, por um método único. Este esforço da dúvida é reformulado por Ribeiro (2006, p. 58), através do próprio dito mais conhecido de Descartes: eu penso, logo existo. A reformulação incide justamente na origem do termo pensar, que “vem do latim pendere: pender, suspender, pensar, examinar, ponderar, avaliar, compensar, recompensar e equilibrar”, sendo seu sentido equivalente ao cogitare, mergulhando em meditações sobre a existência indubitável de algum fenômeno. Então este homem enquanto eu pensante é um sujeito que questionava a veracidade dos fatos do mundo, da falsa materialidade.

Esta forma de questionar o mundo circundante irá fazer emergir na metodologia cartesiana o expoente da dúvida, compondo em combinado com o próprio método como dúvida metódica, no qual se duvida de cada ideia que pode ser duvidada. Como expressa Morente (1970, p. 137), “a dúvida se converte, pois, em método; e o que se tenta aqui descobrir é uma proposição que não seja duvidosa, que não seja dubitável”. E para ser indubitável, somente através da razão, do pensamento, pois está fora do mundo falso da matéria, é a dádiva divina da racionalidade, que nos remete à dúvida. Assim que como base da ciência está a busca da evidência do verdadeiro, através desse método cartesiano da dúvida para comprovar esta crença raciocinada. O caminho a ser seguido (método)[8].

Tomado assim pela dúvida, Descartes pretende construir uma epistemologia, negando para afirmar. Este “ato da dúvida cartesiana tem mais um caráter paradigmático que propriamente psíquico” (SANTOS, D., 2002, p. 143). Como este paradigma cartesiano busca a verdade comprovada, racional e científica, se faz “por meio do método especado na álgebra e aritmética” (RIBEIRO, 2006, p. 49), cabendo lembrar que “a ontologia cartesiana parte do abstrato, limitando-se ao conhecimento derivado da matemática. Este conhecimento apreende apenas o mais estável e permanente, recusando, no ser, o que lhe é fugidio e mutável” (BRASIL, 2005, pp. 64-65). A matematização deste caminho ensandecido em busca da verdade se faz por meio da matemática, para não esquecermos, por dois motivos: primeiro pela leitura mecanicista, do mundo máquina, esquadrinhado aritmeticamente por Deus, numa rede que envolve todos os corpos; segundo, pela releitura dos clássicos gregos por Descartes, no qual ta mathema, designa completo conhecimento, perfeito, puro e dominado totalmente pela inteligência (o nosso “dom divino”[9]).

Para ser mais perfeccionista e paradigmático em seu ato revolucionário à época, Descartes propõe que este seja um método único, universal: a mathesis universalis[10]. O método instituído por Descartes, na pretensão de ser universal balizado no rigor matemático e na razão, seria o Hipotético-dedutivo, composto de: evidência, análise, síntese e enumeração. Estas bases dar-lhe-ão comprovação da verdade, divisão das partes a se estudar, hierarquia linear da dificuldade dos objetos e as relações metódicas entre tais.

A dúvida metódica hipotético-dedutiva cartesiana será completamente racionalista, buscando não bases empíricas (os sentidos), mas a razão. O que Hansen (2000, p. 61) irá explicar-nos que no Racionalismo de Descartes, “a razão é a efetiva fonte de conhecimento, pois é ela que dá, através da dedução que permite fazer a partir das ideias inatas, certeza e validação àquilo que conhecemos”. Desse modo que temos o estabelecimento e predomínio absoluto do intelecto (da razão, da inteligência, da ciência, sobre a experiência, à vida e aos sentidos), “a filosofia de Descartes inaugura uma era de intelectualismo, uma era de racionalismo” (MORENTE, 1970, p. 175), lançado a averiguar os problemas do mundo, da ciência e da vida. Porém, como nos alerta Ribeiro (2006, p. 117), racionalismo abstrato e metafísico, com a matematização e logicização, é conservadorismo de pensamento; não é por acaso que a ciência e a razão dominam sobre a vida até os dias de hoje.

A base metódica para a institucionalização da ciência moderna está posta, criando um vinco moderno na filosofia, substituída pela ciência. A construção do pensamento ocidental terá com este método um novo pilar de conduta, por onde emergirá a ciência hodierna.

Como trata Moreira (2008, p. 58), o nascimento da ciência moderna é dado por Descartes pelo acréscimo ao pitagorismo grego da matematicidade, fusão entre álgebra, geometria e aritmética. Esses moldes são do que vimos pelo racionalismo mecanicista, sinônimo de método científico no qual temos “separação, hierarquização de fatos, dedução e comprovação de hipóteses” (SPRINGER, 2008, p. 49). Todo esse enlace científico moderno está enredado em três situações, do modo que Sousa Santos (2002) nos relembrará do pensamento de Descartes: o rompimento com a “ciência” aristotélica (desconfiando da experiência); a lógica de investigação matemática, como modelo de investigação e representação (como vimos no aspecto do que seria o Hipotético-dedutivo – evidência, análise, síntese e enumeração dos fenômenos); e, as análises das leis como naturais da própria acepção de natureza. Estas leis são arbitrárias, que não aparece como um saber posto por Deus, pairando sobre os homens, por isso, Porto-Gonçalves (2006, p. 43) relata que “em nome da ciência, do seu rigor teórico e metodológico, tem-se justificado toda uma prática de dominação dos homens e da natureza”. Esta ciência moderna é instituída, não é um modo de ser dado divinamente!

A tomada de corpo do método cartesiano, na construção de um paradigma epistemológico, além do operacional, conflui com a imposição de valores generalizantes do modo de ser europeu. Cabe então o retorno à Sousa Santos (2002, p. 55), no sentido de que “todo o conhecimento científico visa constituir-se em senso comum”, por onde “a ciência moderna produz conhecimentos e desconhecimentos. Se faz do cientista um ignorante especializado faz do cidadão comum um ignorante generalizado”, repetindo rotineiramente este senso comum cimentado pela ciência, via de um modo de ser imposto pela europeização do mundo. O que temos por noção de ciência é a busca da personificação, via do pensamento de Descartes, do dominador europeu. Segundo Jolivet (1968, p. 76), objetivamente a ciência é um conjunto de verdades certas e logicamente encadeadas entre si, conformando então um sistema em corrente (um senso comum), porém, se faz necessário o respeito às suas leis próprias, o método, tendo assim, por objeto mais geral a generalização da verdade.

Por estes motivos a ciência moderna se institui via de seu método em busca da verdade, o senso comum cotidiano dos fatos, não como leis naturais e divinas, mas sim como tentativas parciais de impor certezas que fomentam atos já praticados ou em via de serem re-praticados. A ciência tornou-se a voz da verdade; das falsas verdades[11]. Esta ciência foi criadora das três dicotomias básicas do que Heidegger (2008, p. 140) irá tratar como “ontologia do ‘mundo’ de Descartes”. Essa interpretação de mundo cartesiana trata de externalizar o mundo, como circundante, logo, o que teremos é uma espacialidade do mundo fundada na extensão e não no corpo. Como citamos alhures, o cabedal onto-teo-lógico do método cartesiano propicia ao francês a primeira dicotomia ou externalização teórica: entre Deus/espírito. Ribeiro (2006, p. 48) explicita justamente essa ideia, no qual “a res infinita (Deus), destarte, far-se-ia a fonte para a res cogitans (pensamento)”. Esse Deus como coisa infinita e primordial, como uma substância imprescindível de alguma outra para existir[12] seria exterior e intermediário às coisas finitas, como o homem-corpo, que seria alcançado pela alma, ou pensamento que cogita ou duvida. Assim se institui para o pensamento cartesiano a dicotomia primordial, “através de uma ontologia fundada na distinção radical entre Deus, eu e ‘mundo’” (HEIDEGGER, 2008, p. 147). Assim que “Descartes converte essa metafísica teológica numa metafísica matemática” (MOREIRA, 2009, p. 124). Não é por menos que emerge a segunda dicotomia, a que externaliza espírito (pensamento) de corpo (natureza). Heidegger (2008, p. 140), traz à baila o tratamento ontológico cartesiano sobre essa dicotomia, onde “Descartes distingue o ‘ego cogito’ como res cogitans da ‘res corporea’. Essa distinção determinará ontologicamente a distinção posterior entre ‘natureza’ e ‘espírito’”, naquilo que o próprio Descartes irá compreender como uma distinção ontológica entre alma humana e corpo.

Para relembrarmos com as próprias palavras do criador das dicotomias, Douglas Santos (DESCARTES apud., SANTOS, D., p.146), expõe-nos: “noto aqui (...) que há grande diferença entre espírito e corpo, pelo fato de ser o corpo (...) sempre divisível e o espírito inteiramente indivisível”. A distinção entre a coisa extensa e a coisa pensante vincará profundamente o pensamento ocidental, no qual “Descartes teria imposto sobre o ente, de forma arbitrária, certo modo de ser, derivado de um prejulgamento segundo o qual o ser (substância) é contínuo e permanente” (BRASIL, 2005, p. 64). É como se retornássemos ao pensamento parmenídico da dicotomia dos mundos posteriormente explorada por Platão (com a teoria dos dois mundos: o pensado e o vivido pela experiência), onde Descartes irá distinguir a res extensa, como um mundo externo, da res cogito, o mundo interno do eu que pensa sobre o mundo.

Nasce com Descartes o sujeito moderno, observador, fora do mundo, no máximo pensando esse (outro) mundo, não o transformando e nem sequer ainda se vendo como mundo, tirando de si a culpa e o meio de mudança para o mundo: mudar (e não somente conhecer) a si mesmo. A ciência é então fruto deste sujeito, tal qual um moribundo, porque focado no objeto. É a reprodução de um sujeito inerte perante o mundo. Aquilo que Ribeiro observou no método cartesiano hipotético-dedutivo, na sobrelevação do objeto em relação ao próprio sujeito, com “o real sendo descrito por meio de hipóteses e deduções” (2006, p. 111). O que se relembrarmos, ou como Douglas Santos (2002, p. 152) irá nos ombrear: “o sujeito fala, matematicamente, sobre seu objeto de reflexão”. Essas deduções e hipóteses calcadas num método matemático soam-nos estranhas, mas, se averiguarmos o método científico em todas as ciências (até nas ditas humanas ou sociais), lá encontraremos: separação, hierarquização de fatos, dedução e comprovação de hipóteses; nascido com o método hipotético-dedutivo cartesiano. Desse método hierarquizante e fragmentador nasce “a crença em que todos os aspectos dos fenômenos complexos podem ser compreendidos se reduzidos às suas partes constituintes” (CAPRA, 1986, p. 55), não por menos, temos a fragmentação dos fenômenos (objetos) estudados pelas inúmeras “ciências” de hoje (as partes constituintes).

Que fique bem claro das releituras feitas até aqui. Não colocamos a culpa de todos os problemas do mundo ou da ciência humana em Descartes, mas sim, de ter sido veiculada da filosofia ocidental, para a ciência moderna e para o senso da opinião pública comum uma única forma de apreensão do mundo. Claro que coexistem outras, mas esta, calcada no saber científico experimental, comprovado pelo método do especialista e que vem à tona para o cotidiano de nossa existência, foi a considerada mais “verdadeira”, antes por comprovar Deus, depois no seu processo como legitimação da ordem e do progresso da civilização (a ilusão do evolucionismo), hoje por uma tecnociência exacerbada em que tudo engloba para tornar rarefeito, alienígena.

Mas tal “alienação” é fruto somente da ciência? Como vimos o paradigma científico dominante auxiliou enormemente na dominação da natureza (vista como externa aos entes humanos), na forma como concebemos os animais não-humanos e aos outros entes vivos e como concebemos a nós mesmos enquanto humanos. Contudo, o que nos torna estranhos a este mundo de forma “não ecológica” é bem anterior historicamente ao Renascimento científico ou paradigma baconiano-cartesiano. O que estamos falando é do estranhamento, conceito que não é somente uma interpretação, mas o indício de que nos auto-domesticamos para domesticar, subjulgar e matar outros entes vivos: a externalização da vida em nós mesmos pela civilização.

3.    O estranhamento: raízes da domesticação da vida

A existência humana está-lançada no mundo através do que ela mesma criou para si. Lançada no mundo através do Estranhamento. Este é o ser, ou mais precisamente, o modo-de-ser que buscamos criticar – aquilo que fora tratado por Marx outrora de “o ser estranho” (MARX, 2006, p. 119). O estranhamento da existência humana é veiculado em processo (como modo-de-ser) através da auto-alienação humana, gerando tanto uma alienação objetivada via do trabalho alienado, quanto uma alienação subjetiva; este é o processo ontocriativo como “caráter coisificado da práxis” (KOSIK, 1995, p. 74), transformando a humanidade em um ente estranho em todos os níveis da vida: aos homens, às mulheres, às diferentes cores (cientificamente definidas e chamadas intencionalmente de “raças”), às diferentes culturas e etnias, às outras formas de vida e existência (animal ou vegetal, microscópica ou macroscópica), ao próprio planeta (estamos sempre achando que o “paraíso” não é aqui!); e com fito de negar tudo isso num grupo só, chama-se o oposto ao homem (civilizado, social e cultural) de natureza. Nega-a e a rejeita em prol do mundo-do-homem. Além de que, o mundo que deveria ser da existência humana é somente para poucos, isto em prol de mais um estranhamento específico, o do próprio mundo enquanto existencial, através da propriedade privada; o mundo que criamos e que nos condiciona é balizado na propriedade privada. A alienação que “move a presença para o modo de ser em que ela busca a mais exagerada ‘fragmentação de si mesma’” (HEIDEGGER, 2008, p. 243). Esta é a lei que “pesa” entre nós, como já alertava um tal filósofo alemão, de “que nos tornássemos estranhos um ao outro” (NIETZSCHE, 2007, p. 145).

Para adentrarmos com nossas propostas neste intrincado assunto, devemos rever algumas considerações primordiais para darmos prosseguimento às citações e críticas. Um dos principais esclarecimentos é acerca da nomenclatura utilizada: a distinção entre estranhamento e alienação.

A base para este debate encontra-se, principalmente, na leitura da obra póstuma de Karl Marx (1818 – 1883) que recebera o título (dentre outras variações) de “Manuscritos econômico-filosóficos” (nas suas obras posteriores, como “A ideologia alemã” escrita a quatro mãos em conjunto com Engels, ainda encontramos os termos estranhamento e alienação, porém, a ênfase de Marx nessa postura teórica crítica irá perdendo o enfoque). As interpretações serão variadas, desde a famosa Escola de Frankfurt por Erich Fromm e Herbert Marcuse até a interpretação lukácsiana do próprio György Lukács, em sua grande obra “Para uma ontologia do ser social”, e posteriormente por seu discípulo István Mészáros, mais especificamente na sua análise da teoria da alienação segundo os “Manuscritos” de Marx. Os dois termos em alemão Entfremdung e Entäusserung (ou Entäuβerung) são traduzidos respectivamente como “estranhamento” e “alienação”, o que segundo Costa (2005), merecem distinção, pois em inúmeros trabalhos sobre estas categorias marxianas encontramos traduções indistintas, assumindo frequentemente a terminologia sintética de “alienação”.

A própria tradução brasileira da obra de Mészáros (1981), o termo “alienação” assume, em seu contexto, a síntese das categorias Entfremdung, Entäusserung e Veräusserung. Em nota a sua introdução explicativa ao tema e à terminologia “alienação”, o filósofo húngaro buscará esclarecer que estes três termos em alemão irão ter conotação de “alienação” ou “alheamento”. O terceiro termo será menos utilizado por Marx, nas palavras de Mészáros, sendo definido como “a prática da alienação”. Já Marcelo Backes, em nota à tradução brasileira de “A ideologia alemã” de Marx e Engels (2007), fará esta distinção entre, o que o mesmo elege como “conceito marxiano”, Entäuβerung (“alienação”), e o outro conceito de Entfremdung, que será preferencialmente traduzido como “estranhamento”. Backes mostrará, assim como Costa (2005), que a categoria de análise estranhamento é posterior à alienação; o Entfremdung de Marx será um conceito com “concretude”. Esta será também a interpretação de Lukács, o que levará Costa retrabalhar nesse sentido.

A autora irá verificar então que:

tornou-se evidente, no texto de Marx de 44, que a alienação aparece sempre vinculada ao estranhamento, enquanto uma dada forma do trabalho humano se apresentar. Assim, como foi possível verificar na presente pesquisa, há, de fato, uma distinção entre Entäusserung e Entfremdung nos Manuscritos, mas apenas enquanto categorias que guardam uma complementaridade entre si. A Entfremdung, ou estranhamento, seria a realização da Entäusserung, alienação. Em outras palavras, a alienação enquanto separação do homem de seu produto, sua atividade, do gênero e dos demais homens acaba por gerar a Entfremdung - o estranhamento - do homem em relação ao produto, atividade, gênero e dos homens entre si (COSTA, 2005, p. 4).

Esta realização da alienação pelo estranhamento mostra-nos o aspecto, até certo ponto, dicotômico entre os conceitos marxianos – basicamente nessas interpretações. Por ser posterior o estranhamento assumiria o papel de “concretude”, ou realização prática da alienação, que então apresentar-se-ia como um processo de distanciamento primordial via do trabalho alienado. Nossa acepção toma formas peculiares, por fugir desta relação de anterioridade da alienação ao estranhamento. Pensamos justamente o contrário, sendo o estranhamento uma exteriorização (ou externalização) da vida pela recente existência humana (em relação à história do planeta como um todo), como um modo de ser deste processo particular que é a existencialidade (o que já concedemos parecer neste capítulo). Seria então o modo de ser estranho da existência humana que externalizará a vida em todos os sentidos possíveis para poder dar prosseguimento ao seu domínio, a sua domesticação e alienação do que caracteriza o oposto (alheio) ao seu poder (porém a ser dominado). Podemos perceber que do estranhamento emerge a alienação, mas, que será uma reprodução em conjunto, não meramente posterior, tanto “concreta” quanto “subjetiva” – pois através desta subjetividade da alienação deve-se impor a “naturalização” do modo de ser estranho. Não buscamos romper com as categorias marxianas, mas, apenas lhes dar nova roupagem de interpretação, que correspondam aos nossos objetivos por hora. Agora buscaremos definir esse conceito com a “criticidade” que merece, além de buscar uma não sintetização dos termos (estranhamento e alienação). Vejamos o que os mesmos representam em nossa releitura, começando com o estranhamento.

Sartre (1998, p. 96) já esseverava que “o homem é responsável por aquilo que é”; mas, qual relação cabal entre tal afirmativa existencialista sartreana e a nossa acepção de estranhamento? Basicamente porque tal fenômeno seria o modo de ser estranho da existência humana, aquilo no qual dançamos conforme a melodia, fazendo de nós muitas vezes o personagem da música “Ser estranho” do grupo Titãs, no indagar vazio da rotina: “o que aconteceu? / o que será que eu sou? / eu sou essa coisa louca / eu sou esse ser estranho / eu sou esse disco voador / eu sou essa noite escura / eu sou essa criatura / eu sou esse filme de terror”. Não sabemos quem somos nós, enquanto entes singulares da existência humana, porque estamos distanciados de nós mesmos. Nos tornamos esse ente estranho dado o motivo de que “o homem não é mais que o que ele faz” (ibid., p. 95), portanto, somos obras de nossas próprias mãos, objetos de nosso próprio modo de ser, deste estranhamento que nos externaliza de tudo e de todos. E esta não é somente uma concepção a priori da humanidade, mas uma práxis de como a humanidade se fez e se pretendeu para suas utilidades.

Nossa reinterpretação do estranhamento parte de um casamento de ideias. Da proposta de Marx sobre o “estranhamento” e da proposta de Heidegger na relação do modo de ser-no-mundo com a “decadência”. Numa primeira leitura superficial parece-nos que tais autores são totalmente contraditórios, o primeiro com uma perspectiva que visa uma revolução concreta do ponto de vista histórico e o segundo partindo de uma abordagem que seria bastante criticada por Marx, a de uma filosofia de interpretação e não de crítica e mudança do mundo concreto, um pendor pejorativo de metafísica. Contudo, algumas leituras foram feitas, posteriormente aos dois autores, no sentido de buscar inter-relacionamento de ideias, principalmente críticas. O primeiro, que já citamos alhures, é Herbert Marcuse, trazendo a historicidade para o debate de Heidegger. Seu objetivo é explicitar que o modo de ser-no-mundo da existência humana está em seu “lançamento” (o que já explicitamos anteriormente). O outro autor é Pierre Bourdieu que busca uma interpretação da “ontologia política” de Heidegger. Segundo Bourdieu (1989, p. 89), o “estranhamento” (ou Entfremdung) pode se reduzir a algo como “desenraizamento”, e irá se constituir como “estrutura ontológico-existencial” do Dasein – seria como uma “deficiência ontológica” própria da constituição da existência humana. Em prosseguimento, Bourdieu irá fazer uma citação de Lefebvre sobre a similitude de ideias de Marx e Heidegger, onde “não há antagonismo entre a visão cósmico-histórica de Heidegger e a concepção histórico-prática de Marx” (LEFEBVRE apud., BOURDIEU, 1989, p. 119). Dando prosseguimento às citações, veremos através de Bourdieu que ambos pensadores alemães darão provas de posturas radicais na questão do mundo, com crítica ao passado e preocupação com o futuro; e, além de Heidegger somente buscar nos ajudar a entender Marx criará um estilo particular no qual irá continuar, de certo modo, a obra crítica de Marx. Neste momento que entrecruzaremos as duas acepções, de estranhamento em Marx e decadência em Heidegger.

A “decadência” (Verfallen) da existência humana em Heidegger remete à estrutura existencial que é a existência humana e seu mundo. Esta “decadência é uma determinação existencial da própria” (HEIDEGGER, 2008, p. 241) existência humana. Esta decadência em Heidegger é o modo de ser no mundo, o que interpretamos como um estranhamento enquanto o modo de ser da existencialidade da existência humana no mundo. Tal estranhamento ou decadência fez com que a existência humana se aprisionasse em si mesma, naquilo que ela mesma se proporcionou. Este estranhamento é esta decadência porque a existência humana fez-se numa “fuga decadente de si mesma” (ibid., p. 252), isto se tornou algo inerente à existência humana – tal qual uma “condição humana” que se assemelha com o “estar-lançado”. Temos então essa sensação de angústia, de uma estranheza onde não nos sentimos familiarizados (“em casa”) com nós mesmos, como em uma negação de nosso próprio ser antes deste modo de ser proporcionado pela existencialidade da existência humana; esse processo ontocriativo enquanto práxis, que possui como modo de ser almejado (para as realizações humanas): a estranheza.

Sentimos-nos estranhos e angustiados por essa oposição deste ser estranho, nos fazendo sentir como um “cristo redentor” com nossos fardos ou como uma criatura num longo filme de terror. Mas, como dissemos referenciados em Sartre, este modo de ser estranho é condicionamento da própria humanidade; aquilo que Marx (2006, p. 132) irá esboçar como “ser-externo-a-si-mesmo, a exterioridade real” da existência humana. Este é um poder que nos parece estranho, que está à margem e não em nós, ou como nas palavras de Marx e Engels (2007, p. 57), “que não sabem de onde ele procede nem para onde ele se dirige, um poder que eles não podem mais dominar, portanto, mas que, pelo contrário, percorre uma série de fases e etapas do desenvolvimento peculiar e independente da vontade e dos atos dos homens, e que inclusive dirige esta vontade e estes atos”. Este é um sentimento de impotência perante um poder de externalidade, mas que na verdade encontra-se em todos nós entes singulares da existência humana; não é somente algo externo e por isso causa estranheza, é estranho porque não fomos nós os criadores diretos, mas fomos lançados nesta existência para reproduzi-los, e reproduzir a exterioridade real – o verdadeiro estranhamento.

Erich Fromm irá fazer uma proposta de análise do “estranhamento” em Marx bem intrigante e frutífera, que terá algumas abordagens gerais próximas da que estamos tratando. Segundo Fromm (1979, p. 46), a base deste pensamento em Marx será de que a humanidade tornou-se alheia a si mesma (à natureza – vista como externa – à natureza humana, às coisas, aos outros entes vivos e a si mesma, aos outros entes singulares). A existência humana é repleta “de manifestações exteriorizadas de sua capacidade” vital. Então, a preocupação de Marx não é somente do “estranhamento” da humanidade em relação ao seu produto ou apenas ao seu trabalho, na acepção de Fromm, mas, um estranhamento da humanidade em relação à vida, e principalmente de si mesma. Fromm a caracteriza como “a doença do homem”, não como uma doença nova, uma novidade tecnológica e informatizada, pois, tem seu princípio com o inicio da civilização que transcende o antigo modo de ser tratado como primitivo (ainda não civilizado) – esta, diz Fromm (ibid., p. 50), “é uma doença de que todos sofrem”.

Em outro momento Fromm (1970) irá despertar este entendimento mais amplo do estranhamento. O autor irá dizer que este “estranhamento” é uma negação da produtividade, referenciando-se em Marx, pois segundo o mesmo a história da humanidade é uma história de desenvolvimento crescente do “estranhamento”; para nos livrar do “estranhamento” devemos voltar para nós mesmos e não procurar ainda mais coisas e sentidos externos. Este modo de ser estranho significa que a humanidade não se experimenta a si mesma como um fator ativo, vivo, em relação ao mundo, mas permanecendo externa, uma externalidade real ao ser. O que presenciamos na institucionalização das ciências, com a distinção entre sujeito e objeto, nada mais é que uma representação do que o estranhamento vem desenfreadamente se espraiando sobre a humanidade, cada vez mais. Este estranhamento é uma não experimentação do mundo tal como ele é. Temos uma pseudo-experimentação passiva, uma dicotomia entre nós mesmos e o mundo, entre a existência humana e a vida. Nesta estranheza para com nossas próprias forças vitais, esta negação do contato conosco é revertida, segundo Fromm (ibid., p. 56), num culto aos ídolos. Nessa negação da potencialidade humana em sentido lato (não numa potencialidade mental ou produtora antropocêntrica especista) transferimos toda nossa plenitude para os ídolos. Estes ídolos são representações, da qual a maior delas é a própria representação humana, o que a própria humanidade representa para si mesma. Toda a criação da humanidade para si mesma suplanta a vitalidade inerente a nós mesmos; criação (ou criatura) superando o seu próprio criador. Este ídolo, que é a tal criatura, é vazio (de vida) e por isso doente, tanto de corpo quanto de mente (mais uma divisão da civilização criada pela humanidade) – estamos então submissos a este ser estranho. Para Fromm (ibid., p. 58, tradução nossa), esta é a “máscara” da existência humana, ela “não é o que deveria ser e deve ser o que poderia ser”.

O que estamos buscando dar corpo de entendimento é que este objeto ou poder estranho que foi criado pela existência humana e que nos domina é a exteriorização da vida. O modo de ser da existência humana se calcou nessa única alternativa para suas utilidades civilizatórias: a exteriorização da vitalidade, da espontaneidade da vida. E somos presos a este ídolo criado para suprir a nossa vida, uma divindade (não propriamente do Deus da fé) antropocêntrica que nos assola por negarmos a nossa vida em prol de tudo o que construímos para destruí-la. Vejamos agora, um breve panorama sobre como se constituiu este estranhamento.

Como dissemos, entendemos o estranhamento como exteriorização da vida. Mas o que isto constitui? Costa (2005) irá discorrer em longo artigo sobre a temática, da qual compartilhamos a ideia, mas, porém, fazemos uma leitura particular, pois nosso entendimento não é somente o da leitura marxiana dos “Manuscritos de 1844” e das propostas posteriores de Lukács. Na acepção apreendida por Costa (ibid., p. 9), “a exteriorização da vida humana produz a totalidade do ser social em sua expressão bipolar, na forma do indivíduo e do gênero”; o que em termos genéricos concordamos devido que a exteriorização da vida enquanto modo de ser é uma expressão tanto para o ente singular existente (ou indivíduo) quanto para a existência humana como um todo (o gênero humano). A segunda expressão irá dar mais respaldo para o nosso questionamento. A autora irá referenciar-se em Marx, na sua afirmação de que a “atividade imediatamente na sociedade com outros etc., se converteu em um órgão de exteriorização de vida e um modo da apropriação da vida humana” (MARX apud., COSTA, 2005, p. 19). De tal exposição crítica podemos apreender que a existência humana, concebida como sociedade, tronou-se uma exteriorização e apropriação (aprisionamento?) da vida humana e consequentemente uma externalização da vida em geral – de tudo que cerca a humanidade e a serve, não num biocentrismo, mas através de um antropocentrismo especista induzido pela exteriorização da vida. Então, o estranhamento como esta exteriorização da vida e este antropocentrismo especista não são meros conceitos elaborados pelo homem, são acima de tudo um modo de ser de uma determinada práxis.

Mas afinal o que podemos conceber brevemente por vida para entendermos esta “doença humana”?

Um consenso sobre o que seria a vida como um todo não tem uma definição suficiente para totalizar os fenômenos que caracterizariam tal estado da matéria (assimilação, adaptação, exaptação[13], crescimento e possibilidade de reprodução) que o pensamento científico corrente classifica com o nome de vida. E além destas ideias mais genéricas temos a imbricação não muito entendida entre vida e morte (geralmente sendo levadas para o campo metafísico, ou de especulação “religiosa”), no qual a maior problemática parece ser de uma visão não integrada, onde vemos somente vida/morte e não vida-morte como processo vívido – pois sem a chamada morte inexistiria o processo de vida. Desta interpretação dicotômica emerge outra problemática: como é que sabemos se uma dada entidade é ou não um ente vivo? Seria mais simples traçar um conjunto prático de critérios nos limitando à vida na Terra tal como a conhecemos, como por exemplo: crescimento, produção de novas células; metabolismo, consumo, transformação e armazenamento de energia e massa, crescimento por absorção e reorganização de massa, excreção de desperdício; movimento, movimento próprio ou movimento interno; reprodução, a capacidade de gerar entidades semelhantes a si próprias; resposta a estímulos, a capacidade de avaliar as propriedades do ambiente que a rodeia e de agir em resposta a determinadas condições. Porém, toda regra, principalmente uma que contenha em sua tentativa de definição algo vívido (que é a própria tentativa de definição de vida), tem algumas exceções. Então, conforme os critérios citados poder-se-ia dizer que: o fungo tem vida pela presença de alguma estrutura que delimite a extensão do ente vivo, como a membrana celular, levantando novos problemas na definição de indivíduo em organismos; as estrelas (entes siderais) também poderiam ser consideradas entes vivos, por motivos semelhantes aos do fungo; entes como a “Mula” dentre outros híbridos não são seres vivos se adotarmos as restrições de reprodução, porque são estéreis e não se podem reproduzir, o mesmo seria aplicado para todos os entes (inclusive humanos – imagine humanos vistos como não-vivos?) estéreis ou impotentes. Se nos referirmos aos vírus e afins que não são considerados entes vivos porque não crescem e não se conseguem reproduzir fora da célula hospedeira, mas muitos parasitas externos possuem semelhantes características.

Portanto, a conceituação religiosa, filosófica ou científica sobre vida pode ser altamente especulativa, pois se torna um problema a ser desvendado e não um processo vívido e contínuo sem intermitência, tal qual concebemos pela dicotomia vida/morte. Até a concepção mais ampla do biocentrismo pode ser reducionista dependendo de sua concepção de vida. Mais recentemente tivemos especulações científicas que remontam como origem da vida justamente o inorgânico: a argila, como num inconsciente do “barro bíblico”. A argila seria uma base para o entendimento de como os compostos orgânicos se transmutaram para um material genético auto-replicante. Os cristais, e inclusive os de barro, são auto-replicantes, sendo um traço fundamental dos entes vivos (MORAIS, 2003). Como responder ao que seja vida pelas contra-regras expostas? E o inorgânico, se apresenta padrões semelhantes, como algo visto como inanimado se aproxima do que também somos: vívidos.

Tal panorama resumido sobre a vida enquanto ideia pode nos fazer prosseguir sobre o modo de ser que exterioriza a vida, o estranhamento. Portanto, a vida não é o que é concebido, pois isto já é uma postura posterior à exteriorização prática da mesma, pois ideias e pensamentos buscaram na existência humana (como vimos) justificar acontecimentos e através destas justificativas “fundamentadas” darem o poder de continuarmos no mesmo processo. Tal processo de colocar a vida à margem da humanidade é justamente de negar qualquer entidade que não tenha a finalidade antropocêntrica especista, no qual esta humanidade é o centro dos acontecimentos e todo o resto é qualificado em espécies como inferior a esta humanidade. Porém, tal modo de ser não é concepção somente, emergiu de práticas, e estas sim foram as exteriorizações: a antinatureza (domesticação da “natureza humana” e consequentemente a natureza não-humana em benefício da própria ação humana – conformando uma condição humana auto-domesticada); o androcentrismo (a repressão da sexualidade e não somente do sexo em si, onde o domínio do gênero “homem” – dos iguais – irá subjugar o feminino, e consequentemente suas sensações e sexualidade, assim a repressão da sexualidade é uma autodomesticação humana do feminino, da natureza de geração da vida em detrimento da imposição da razão androcentrada e controlada); e o domínio da lógica e da linguagem (na construção subjetiva do cabedal racional que reafirmará e dará condições de prosseguimento à exteriorização da vida em processo – com estes padrões de comportamento sendo simbolicamente demarcados torna-se mais fácil a perpetuação do modo de ser). Estas exteriorizações é o que iremos sumariamente tratar a partir de agora.

Com o fito de seguir os objetivos deste trabalho averiguemos a exteriorização via da antinatureza, ou no que podemos tratar como “domesticação”. A domesticação, para nós, chamados de iguais, pela lógica classificatória (e hierárquica) das espécies, ou homo, no que segundo Biro (2007, p.2) “a palavra ‘homo’ significa ‘semelhante’” ou a palavra latina para "pessoa", é atrelada somente aos outros animais, sendo vistos sempre como objetos de nossa domesticação da natureza. Raramente cogitamos se tratar de uma autodomesticação de nossa própria “natureza selvagem” para uma natureza controlada, mas o que nos parece, é que o modo de ser de exteriorização da vida é antes de tudo uma antinatureza, no sentido de que o homem domestica a si mesmo para em seguida aplicar a domesticação ao que ele também pretende controlar – além de si mesmo. Nietzsche (2008, p. 148) irá asseverar que fora feito “do próprio homem o melhor animal doméstico do homem”, uma mediocridade que se passa como moderação. Concordamos com esta afirmativa do filósofo alemão, pois, o que a humanidade mais buscou para o estabelecimento de um mundo a seu dispor utilitário é própria domesticação; o próprio controle das vontades e atos em si que pudessem demolir toda a necessidade compulsiva de dominação sobre Terra. Nesse sentido, Marcuse (1968, p. 51) irá utilizar o termo “arregimentação repressiva” para sintetizar a domesticação humana de seus próprios desejos. A domesticação humana é uma arregimentação (organização, ordenamento, conformação) repressiva (coerção, castigo, punição ou recompensa) e do mesmo modo aderimos esses métodos para domesticar tudo o que se interpôs no caminho da longa (porém curta) civilização do mundo humano, “pois a domesticação de outras espécies é resultado de um processo de autodomesticação do homem” (ZERZAN apud., BIRO, 2009, p. 1).

Esta autodomesticação pode ser encontrada na análise crítica do discurso de Mészáros (1981, p. 16), que irá traçar quatro características da exteriorização da vida pelo estranhamento, que interpretamos da seguinte forma: 1) a humanidade encontra-se exteriorizado da natureza selvagem; 2) está exteriorizada de si mesma (de sua própria vida enquanto ente co-pertencente à totalidade Terra); 3) de seu “ser genérico”, ou de seu pertencimento enquanto membro da espécie humana; 4) a humanidade produziu uma exteriorização da vida de entes singulares humanos de outros humanos, um individualismo egoísta. A base deste modo de ser como práxis humana é o que Moreira (2007, p. 135) irá frisar como “desnaturização”, ou o que estamos explicando como antinatureza, no qual a humanidade é esvaziada “de suas propriedades ontológicas mais profundas”. Profunda justamente por se tratar de um modo de ser da práxis, não somente de um discurso ou de uma concatenação lógica, mas de uma prática material e de uma lógica inter-relacionada com esta mudança ontológica. Será Konder (2009, p. 70) que irá caracterizar tais fatos com a “história concreta e das condições materiais de vida dos homens”, devido que a profundidade ontológica que modificará a práxis humana será a base para a conformação de sua história concreta e principalmente das suas condições materiais de vida humana, o mundo humano.

A antinatureza desta autodomesticação humana, Konder (ibid., p. 63) irá caracterizar como um processo segundo o qual a humanidade não mais era composta de criaturas que pertencessem à natureza selvagem “da mesma maneira absoluta em que a ela pertencessem os animais”, a natureza além de ser dominada será algo visto como de fora. Esse processo será um movimento em que a natureza selvagem passará a ser sujeitada, numa transformação de tudo em objeto, utensílio utilitário (aqui não como uma redundância, mas como um reforço de palavras para caracterizar a utilidade da vida nas mãos humanas que através de seu uso procura tirar vantagem, proveito próprio) da ação humana. Seria o “estabelecimento, pela primeira vez na historia do reino animal, de uma relação prática entre um sujeito e um objeto”, será muito antes de o pensamento cartesiano institucionalizar a dicotomia sujeito/objeto nas ciências “a primeira diferença importante estabelecida” (ibid.) através de um modo de ser da práxis humana. Segundo Zerzan (2006, p. 5), “antes da domesticação, (...), a existência humana passava essencialmente no ócio”; Konder afirmará que as parcelas anteriores ao “nascimento” da humanidade limitavam-se a consumir somente “aquilo que a natureza já lhes oferecia em estado de coisa pronta para consumo”, não era uma vida sedentária ainda, mas de um amplo nomadismo. A adaptação e exaptação humana “conseguiu iniciar a separação do homem e a natureza, bem como a destruição progressiva desta” (Zerzan, 2006, p. 27), e além da submissão da natureza selvagem do entorno através das caças de grandes mamíferos, a ritualização com intuito de estabilizar a repressão foi o caminho para conformar a autodomesticação da natureza selvagem vista como maligna para os interesses dominadores da humanidade que avança. Além do velamento da natureza selvagem através da institucionalização cotidiana de uma hierarquia prática (como a caça) dos humanos para as outras espécies animais, a desarmonia corporal dos humanos será cada vez mais intensa. Os corpos selvagens e integrados darão lugar a corpos como “objetos estrangeiros” sobre o qual o sujeito humano (exteriorizado) atua; seria “a lógica da domesticação, com suas exigências de total dominação” (ibid., p. 78) – da mente selvagem em humana, do corpo integrado em arregimentado e da natureza como um todo para um utensílio da dominação humana que busca tirar seus proveitos egoístas.

A primeira distinção da autodomesticação humana perpassada para seu próprio mundo, oposto ao planeta integrado em que vivera, de uma sujeição da natureza selvagem ao seu ímpeto de dominação e expansão de seu utilitarismo auto-centrado irá arregimentar outras tantas dualidades também importantíssimas para a conformação da existência humana. As dicotomias de sagrado/profano (a busca das re-ligações sagradas para deter o profano selvagem); distante/próximo (o estabelecimento de distancias hierárquicas, desde as antropocêntricas especistas até o caráter androcêntrico); desvio/norma (a base para a estruturação das repressões na base da existência humana – as oposições entre o tolerável, norma de conduta, e o perigoso para a desestruturação de toda a ordem, o classificado como desvio de conduta ou até loucura); e o consciente/inconsciente (a relação da educação das regras impostas para a autodomesticação introjetadas na reprodução da existência humana de forma inconsciente para que o consciente seja “naturalizado” como “instinto”). Assim a primeira dualidade geará “outros contrastes” pelos quais “outras oposições emergirão na cena” (RODRIGUES, 1986, p. 24) da existência humana.

Tais oposições irão se conformando no cotidiano corpóreo (vivido) como um tabu à natureza selvagem, porque pulsões que devem ser controladas para a manutenção do estranhamento que é modo de ser produtora da existência e do mundo humano. Produtos ou excreções corpóreas irão passar a serem expressões da transgressão dos limites, chegando ao cúmulo de que o ente humano “é o único animal que se horroriza do seu sangue, do seu vomito, de suas secreções sexuais, e que se sente cruelmente atingido por eles” (ibid., p. 162). O medo transforma em tabu a associação entre a natureza selvagem e o interior do corpo, e entre a domesticação e o exterior ao corpo humano. Seria a nova oposição da autodomesticação observada na dicotomia interior/exterior, pois o que está externo já fora ou deve ser controlado, já o interior, vindo a tona por atos impulsivos se tornam perigosos porque demonstram a natureza selvagem que se encontra mais difícil de ser dominada. Isto é o que nos demonstra Marcuse (1968, p. 33), na acepção de controle dos instintos, das pulsões selvagens que “têm de ser desviados de seus objetivos, inibidos em seus anseios”, surgindo assim a possibilidade da civilização, da elaboração do mundo humano em que a satisfação imediata das necessidades selvagens é abandonada. Ocorrerá então a “naturalização” (quem já não ouviu a ideia aprioristica de natureza humana ou instinto humano?) dos impulsos selvagens sob a influência de uma realidade externa construída, o mundo.

Ocorre, no que percebemos, uma revalorização dos anseios, que devem ser domesticados para que o mundo humano seja um projeto seguro de reprodução. A satisfação imediata, o prazer, o ócio e a espontaneidade darão lugar à satisfação adiada, a restrição do prazer, ao processo de trabalho e a precaução ou ponderação dos atos. Então, novamente Marcuse (ibid., p. 37) irá afirmar que “a subjugação efetiva dos instintos, mediante controles repressivos, não é imposta pela natureza, mas pelo homem”, podendo então retornar ao ciclo recursivo no qual a humanidade se instaurou, pois ao controlar a sua natureza selvagem, a humanidade irá buscar uma base para controlar as pulsões dos outros entes vivos, criando condições externas materiais e subjetivas para a manutenção do estranhamento. Isto retornará no lançamento deste modo de ser (de exteriorização da vida) sobre os próprios entes humanos – está então conformada a sua recursividade. Deste modo a natureza, enquanto essência ou modo de ser do todos os entes, deverá ser conquistada e tornada externa, sendo perpetuamente atacada como num reforço contínuo de sua condição de utilidade, “portanto, como suscetível de exercer domínio e controle” (ibid., p. 107).

A domesticação criou o que Boff (1995, p. 109) irá tratar como “profundos dualismos”, dos quais os pilares foram as distinções existencialmente impostas entre humanidade/natureza selvagem, mente/corpo (ou espírito/corpo) e homem/mulher. E nessas dicotomias “um dos polos passou a dominar o outro. Assim surgiu o antropocentrismo, o capitalismo, o materialismo, o patriarcalismo, o machismo” dentre outros totalitarismos domesticadores. O antropocentrismo, no qual tudo deve partir da humanidade e retornar a ela é a expressão da domesticação recursiva da natureza selvagem que supracitamos. A noção de servilismo do planeta Terra para com a existência humana passa ser expressa através da produção de ferramentas. A partir desta lógica a humanidade processualmente buscou na natureza, tanto interna quanto externa, o exclusivo benefício utilitarista próprio para a existência humana.

A vida passa a ser uma utilidade instrumental, e nos relacionamos por meio destes instrumentos. O imediato dos sentidos se rompe e ao contato direto se dá a interposição dos instrumentos, desde ossos ou rochas minimamente utilizados até os artefatos tecnológicos contemporâneos, lá está o instrumento entre os entes – entre a humanidade e o que ele procurou dominar. E esta instrumentalidade utilitarista domesticadora é utilizada, antes de mais nada, sobre nós mesmos. Biro (2009) irá demonstrar algumas relações etológicas da domesticação humana em relação aos outros animais, posteriormente domesticados pelos humanos. Nesse sentido “é visível no animal domesticado a perda de certas características físicas, como o crescimento de pêlos. A perda de tais características não é necessariamente genética, pois essas características são reguladas por hormônios (...). Isto quer dizer que estas características não foram eliminadas da espécie, mas apenas inibidas” (ibid., p. 1).

Por outro lado, os indivíduos domesticados se tornam mais propensos a ferir sistematicamente através do estresse de confinamento, condições inadequadas de vida, solidão, perda de companheiro, mudança de habitat, ansiedade, dentre outros. Biro irá também explicar que espécies domesticadas por várias gerações podem vir a ter sua capacidade de sobrevivência modificada, além da indisposição para a atividade corporal através possibilidade de alcançar a comida com menos esforço pode levar ao acúmulo de gordura, sendo somado à ansiedade resultará, dentre outras, no alto índice de doenças cardíacas e infartos entre animais domesticados.

Porém, a domesticação mais perceptível é quanto ao comportamento sexual, por ser o comportamento mais importante para a perpetuação da vida e por envolver uma grande trama, não só genital, mas um complexo de sexualidade corporal. Segundo Biro (ibid.), “animais domesticados tendem a ser menos seletivos quanto a seus parceiros sexuais. Este efeito é chamado de vulgarização sexual”. O antropocentrismo domesticador tomará os caminhos do androcentrismo como repressão da sexualidade e de suas sensações como autodomesticação humana do feminino. Para Boff (1995, p. 113), “este antropocentrismo, quando considerado historicamente, se desmascara como androcentrismo. É o varão e macho que se autroplocama senhor da natureza”, assim o feminino que irá sendo instituído como mulher, será considerada pelo homem, ou macho alfa (dominador, competitivo e egoísta) como a expressão humana da natureza selvagem que ele deve possuir com exclusividade para fins utilitaristas (seja de trabalho, manutenção da prole ou objetificação sexual), domesticando-as pelos moldes androcêntricos. Mas, por hora fiquemos com a antinatureza como foco do estranhamento que temos para com as outras formas vivas não-humanas, incluindo os outros animais que acabam por nos deixar face a face com estas questões existenciais complicadoras para toda a Terra, e não somente para o mundo humano.

Retornando a questões práticas, afinal, em que momento da existência humana tais experiências de autodomesticação foram tornando-se ordenadas de forma menos esporádicas? Primeiramente, para respondermos precisamos de dois limiares: um temporal e outro de espécies humanas. O temporal ajudará a chegarmos aos meandros desta revolução que está por vir, e o de espécie humana por justamente delimitar qual espécie de ente humano irá condicionar com o estranhamento a sua existência. O período do chamado Paleolítico inferior, entre três milhões e duzentos e cinquenta mil anos atrás, será o marco para as adaptações do gênero homo que irão conformando as bases para o nomeado homo sapiens sapiens (nada mais cartesiano, o penso logo existo, agora reafirmado pelo sei que penso logo existo como humano!). Na Europa e na África de outrora, o homo sapiens irá convivendo e se readaptando ao seu mundo até por volta de cem mil anos atrás, período no qual irá se aparentando o homo sapiens sapiens, com uma linguagem já previamente elaborada pronto para um dos momentos de maior diferenciação no modo de ser da humanidade, que a partir de então somente seria alargado cada vez mais. O momento de início do estranhamento será no período do Paleolítico Superior que culminará na “re-evolução” neolítica ou revolução agrícola. Segundo Boff (1995), o final do Paleolítico para o começo deste Neolítico se dá por volta de 12.000 antes da Era Cristã. Zerzan (2006) irá lembrar-nos que o principal modo de ser deste humano anterior à revolução agrícola era de caçador-coletor, vivendo a maior parte do tempo no ócio e dividindo os hábitos do grupo. Já Darcy Ribeiro (2000, p. 39) irá nos relembrar também que “antes da Revolução Agrícola o homem vivera sempre em pequenos bandos móveis de coletores de raízes e frutos, de caçadores e pescadores, rigidamente condicionados ao ritmo das estações, engordando nas quadras de fartura e emagrecendo nos períodos de penúria”. Até este derradeiro processo revolucionário, a principal característica dos grupos humanos era de multiplicidade e diversidade (até disparidade) nos modos de ser, com isolamento dos grupos subdividindo com o crescimento o que irá fazer os humanos posteriores abarcarem a maior parte do planeta. Mas, estes momentos estavam por mudar completamente.

O que estaria por vir era “o primeiro processo civilizatório” (ibid.) correspondente à Revolução Agrícola: o estopim do processo de exteriorização da vida. Este processo foi gradual nas atuais Índia, Europa, África tropical e Américas. As construções dos tabus sexuais com suas já comentadas repressões, uma base para a iniciação dos mais jovens ao sistema de costumes sociais foi balizada pela agricultura, que possibilitou as fundamentações materiais da hierarquia social e a ordenação da autodomesticação já em curso com trabalho obrigatório enlaçado com uma crescente desigualdade sexual[14]. Seria o começo do fim de milhões de anos de um modo de ser sem autodomesticação. Dos pequenos grupos que resistiam ao processo, quase todos eles seriam pouco a pouco atingidos pela Revolução Agrícola, mudando os caçadores-coletores para agricultores (das aldeias agrícolas) ou pastores (através das hordas pastoris de nômades).

Dentre as consequências que supracitamos, tivemos mais alguns incrementos como: a sedentarização dos indivíduos, o enfraquecimento da compleição física, a divisão sexual do trabalho e a domesticação da natureza externa de plantas (das aldeias agrícolas) e dos outros animais (das hordas de pastores) com o surgimento crescente de animais domésticos para utilitarismo humano (equinos, caprinos, suínos, bovinos, canídeos, entre inúmeros outros). Como já explicitamos a domesticação do que se considera a natureza selvagem externa somente foi possível porque a autodomesticação já estaria em curso. Agora, mais do que nunca, deixaríamos de ser da comunidade da selvageria para nos tornarmos civilizados (não somos mais aborígines, nativos da vida), buscando nos distanciar da própria vida como alienígenas – um estrangeiro a nós mesmos como se pertencêssemos a outro mundo que não o da Subtotalidade Geográfica Terra. Desde dez mil anos atrás seguimos o mesmo processo para nos tornar alienados, como nos figura Darcy Ribeiro (2000, p. 46) em nota para o comportamento humano com o estabelecimento da Revolução Agrícola:

dentro de cada comunidade local, os novos membros alcançam direitos iguais aos de todos os outros, pelo mesmo processo através do qual aprendem a língua e se tornam herdeiros do patrimônio cultural comum. A qualidade de membro do grupo é que os faz usuários do esforço coletivo de provimento das condições de sobrevivência e de crescimento de sua sociedade. Cada indivíduo sabe fazer o mesmo que qualquer outro; dedica-se a tarefas idênticas – exceto os papéis já diversificados de chefes e sacerdotes –, convivendo em um pequeno mundo social em que todos os adultos se conhecem e se tratam pessoal e igualitariamente.

Temos agora em processo “uma lenta e insidiosa progressão da alienação” (ZERZAN, 2006, p. 34), tanto de forma material vivida (pelo processo de trabalho padronizado) quanto subjetiva (de uma alienação psicológica dos entes humanos singulares). Nesses termos, a alienação é um fator decorrente do estranhamento, como já havíamos dito. E é esta alienação “programada” pela exteriorização da vida é que iremos desvelar brevemente, segundo nossos interesses por hora. E esta alienação acaba por ser uma “incorporação” como processo de domesticação do corpo pelo processo de estereotipagem[15]. Devemos então concordar com Harvey (2006, p. 159) na sua frase: “o corpo humano é um campo de batalha”! O que veremos é um processo mais materializado do que pensa nossa lógica filosófica. O processo de estereotipagem é uma verdadeira “batalha campal” via de uma corporeidade de corpos que utiliza a subjetividade e a mantém alienada para cada vez mais reafirmar o estranhamento.

Vejamos como esse processo de estereotipagem é a representação e justificação do antropocentrismo especista utilitarista.

4.    O ESTEREÓTIPO DO ANTROPOCENTRISMO ESPECISTA UTILITARISTA

Não seria esse processo de estereotipagem uma representação corpórea, ou uma corporeidade, do corpo-si-mesmo de rotinas, hipocrisia e escolha do outro? Em nosso corpo não estaria sintetizado a alienação subjetiva na existência em que vivemos imbricados? Não seria uma corporeidade de corpos alienada através da reprodução de um ente humano rotineiro? Não cabe somente a resposta objetiva destas questões, mas para dar um salto inicial em relação ao estereótipo-estereotipia devemos referenciar o discurso sobre que unidade entitativa humana reproduz tal processo corpóreo em uma rotina conformista, pelo hábito da hipocrisia, através do qual escolhemos o outro através de nossos atos e fatos estereotipados.

Segundo Igenieros (s.d., p. 73), temos a conformação de um “homem rotineiro”, cuja rotina aparece metaforicamente tal qual um “esqueleto fóssil” do que tratamos como a moral veiculada pelo senso-comum. Nesse sentido cada ente humano se torna “acostumado a copiar, escrupulosamente, os preconceitos” do cotidiano de que fazem parte pela vida, reprodutivamente (embora não se vejam nessa função, muito menos na condição de mudar sua cotidianidade), aceitando o senso-comum espraiado de modo naturalizado. Embora a rotina faça cada ente humano acreditar que é livre, atuando individualmente em suas escolhas, acaba por mascarar nesse enrijecimento de um cotidiano quase que maquínico a rotineira mentalidade (consciência ou subjetividade alienada) coletiva, extrínseca ao devir espontâneo do corpo-si-mesmo. Cada qual vive “entre as engrenagens da rotina” (ibid., p. 85, grifos nossos). É nesse modo de “engrenagem” que se cria e amadurece a atitude conformista. O ente humano enquanto corpo-si-mesmo que será conformista é “aquele que foge dos riscos da responsabilidade pessoal para escolher determinado código de conduta que lhe prescreva, quase ritualmente, os gestos que deve fazer, os pensamentos que deve ter, as atitudes que deve assumir” (CANTONI, 1968, p. 92). E como pertencemos às nossas rotinas endurecidas do cotidiano, somos quase que instintivamente conformistas: essa conformidade ritualizada segue “a moda do outro” que nada mais é que a própria escolha de si-mesmo pelo outro, que por si próprio escolheu o senso-comum, evitando a responsabilidade crítica própria – esta fenomenológica facticidade habituará no corpo próprio em gestos e pensamentos preconcebidos.

É desta forma que os hábitos farão os monges através da corporeidade alienada. Hábitos tanto gestuais, e encobridores dos gestos (a roupagem do corpo), quanto concebidos – uma corporeidade de corpos que se auto-representa nem somente pela matéria ou consciência isoladamente. É assim que somos impedidos pela nossa exteriorização da vida mantida secularmente a andarmos desnudos, de forma absoluta, corporalmente de roupas ou de concepções. Estas diferentes roupagens existenciais demonstram quem você é enquanto unidade entitativa que reproduz o estado das coisas. A nudez absoluta retira da humanidade sua condição humana, domesticada por si própria, a iguala a natureza selvagem que tanto busca dominar, controlar e ao mesmo tempo inveja por ter se afastado desta condição de pleno devir e não de aprisionamento do ser. Pois, com a “força do hábito” (do costume), encontramo-nos desgastados (embora amedrontados de fugir deste padrão que leva a uma finalidade esperada, utilitarista), como frisa Cantoni, do

mundo de nossa experiência cotidiana, as pessoas e as coisas que temos conosco e em volta de nós, as situações habituais de nossa vida, não despertam mais em nós nenhum verdadeiro interesse. A freqüência do uso extingue a maravilha e distrai a atenção. Aquilo que encontra no quadro normal da rotina suscita poucas paixões, poucos problemas; só a novidade provoca e mobiliza as energias da inteligência e da imaginação. A experiência cotidiana parece, ao contrário, enfadonha, rígida em esquemas que se repetem, prefigurada em seu prosseguimento, desprovida de aventura e de arrojo. A superburocarcia, no mundo atual, envolvente como uma rede de malhas cerradas, contribui para transformar um acontecimento pessoal em caso anônimo. E, involuntariamente, arrastados pela lei dos tempos, tornamo-nos burocratas e estatísticos também nós, isto é, incapazes de viver pessoalmente a nossa existência, levados, a despeito de nós mesmos, a considerar a nós próprios e aos outros, assim como aos objetos e às situações, como pedras de um jogo forçado. Esse modo de viver, mortificando a imaginação e excluindo o possível, é um processo de imbecilização pelo qual presumimos saber o que não sabemos e julgamos de modo apriorístico o que não temos paciência de observar (CANTONI, 1968, p. 184).  

Estamos então perdidos nessa falta de maravilhamento, até porque nada mais é novo, e até o que parece novo é somente a repetição daquilo que já foi planejadamente tornado obsoleto. Através dessa rigidez habitual, de cada corpo-si-mesmo, vamos ficando assustados e/ou angustiados perante algo que foge à superburocracia rotineira, como que acuados e estressados por não sabermos mais lidar com eventualidades da espiral da vida. Estamos somente mantendo-nos mortificados, reafirmando com o hábito corpóreo próprio a exteriorização da vida. As possibilidades são sempre anuladas, ou buscam sempre ser anuladas, numa “imbecilização” que se caracteriza como hipocrisia. É o mundo da mentira, das representações, das máscaras existenciais, da personalidade. A existência humana tal como foi conformando-se se deu por meio de mentiras, evitando os fatos, os fenômenos tal qual ocorrem. Só que estas mentiras servem como “amortecedores”, protegendo da auto-sensação de que nos encontramos em alienação. Assim as mentiras se tornam agradáveis a nossa consciência, porém nos protegem também de nosso si-mesmo, cria a corporeidade alienada. Vivemos através de máscaras que nos revestimos, uma construção da nossa personalidade, uma palavra que “se origina da palavra persona. Persona significa ‘máscara’. Nos dramas gregos, os atores usavam máscaras, faces falsas eram chamadas personae. E foi dessa palavra que se originou a palavra ‘personalidade’” (RAJNEESH, 1993, pp. 107-108). Agimos então como personagens, hipócritas, atores de uma corporeidade alienada que usam máscaras falsas – falsas porque não o que realmente somos ou pensamos.

A corporeidade de corpos seria essa representação (aqui como ato de representar personagens) lícita, que nos fazem “marionetes” movidas por “fios” externos. Essa “zona lícita” da hipocrisia é o que nos explica Cantoni (1968, p. 190), “a da representação normal e inevitável” que complementa e dá vida a domesticação primordial. Somos então personagens impessoais, com papéis previamente descritos no qual somente deve-se repetir em si mesmo um esquema genérico. E por essa força do hábito acabamos muita das vezes por aderir passivamente ao pré-julgamento já feito, vivendo na inércia factual do preconceito. Através dessa forjada atitude de auto-representação que através de nossa escolha dos “fios externos” a seguir que acabamos por escolher o outro. Moldamos nosso corpo-si-mesmo na busca incessante de manipular a corporeidade de corpos, de decidir o caminho do mundo. Aquilo que fora existencialmente construído será incorporado e através dessa corporeidade repassada para os outros. O movimento não é cíclico, é um círculo fechado e vicioso da doença humana do estranhamento. É isto que Sartre (1998, pp. 95-96) irá definir como a humanidade, em que cada ente humano não é antes de mais nada um projeto, pois, “ao escolher-se a si próprio, ele escolhe todos os homens”. Numa reinterpretação particular, podemos apreender que assim que cada ente humano se escolhe, singularmente, enquanto personagem estará escolhendo a corporeidade do(s) outro(s). Este ato não é individual, embora pareçamos autônomos, mas a toda a humanidade na escolha do caminho. E é nesta escolha da humanidade por esta intra-e-intercorporeidade que temos o processo de estereotipagem, uma situação previamente organizada em que cada ente humano propriamente “está implicado; implica pela sua escolha a humanidade inteira, e não pode evitar o escolher” (ibid., p. 116).  Assim que podemos julgar moralmente o outro, porque já se faz como um processo previamente organizado.

O que podemos sentir e perceber é uma micropolítica de domesticação do corpo. A corporeidade é política, pois a política do corpo não existe fora das relações com outros corpos, principalmente com a intencionalidade de nos tornar passivos, dóceis e quietistas. Esse quietismo “é a atitude das pessoas que dizem: os outros podem fazer aquilo que eu não posso fazer” (ibid., p. 109), embora só haja práxis com ação. Mesmo que pensemos que em nossa postura quietista estamos isentos e inertes de ação política, este ato de “lavar as mãos” já é a política do corpo agindo pelas linhas externas que nos fazem marionetes. Afinal, nossa práxis utilitária cotidiana já se encontra em nossa corporeidade alienada. É por isso que o corpo é início, fim e medida de todas as coisas, do estado de coisas; ele “é uma relação interior e, por conseguinte, aberta e porosa com respeito ao mundo” (HARVEY, 2006, p. 178), porque de sua auto-exteriorização da vida parte-se para o existencial mundo que retornará através da corporeidade segundo o processo de estereotipagem. Este processo encontra-se como termo em Harvey (ibid., p. 168): “processo de estereotipagem”; mas que podemos dar uma nova roupagem de percepção fenomenológica do corpo como corporeidade de corpos como escolha do outro, embebido de hipocrisia e rotinas. Este não é somente o estereótipo ou a estereotipia, porquanto se encontra nestes e os reproduz, mas é mais do que eles.

O estereótipo geralmente é tratado como uma imagem preconcebida de determinado indivíduo, coisa ou fato. Sendo usados principalmente para definir e limitar entes individuais ou grupo de indivíduos de forma genérica e generalizante. Sua aceitação é ampla e difundida/veiculada pelo senso-comum, sendo grande estopim de preconceito e discriminação. Segundo o dicionário Houaiss da língua portuguesa, podemos tratar o estereótipo como: ideia ou convicção classificatória preconcebida sobre alguém ou algo, resultante de expectativa, hábitos de julgamento ou falsas generalizações; padrão, geralmente formado de ideias preconcebidas e alimentado pela falta de conhecimento real sobre o assunto em questão; e, aquilo que é falta de originalidade; banalidade, lugar-comum, modelo, padrão básico. Segundo Diniz (2007, p. 137),

a palavra estereótipo, originalmente, pertence ao vocabulário da editoração gráfica. Trata-se de uma chapa de chumbo fundido que traz em relevo a reprodução de uma página de composição e permite a tiragem de vários exemplares. A prancha estereotipada representa a fôrma que imprime fielmente o padrão da matriz.

Seguindo essa perspectiva originária, por extensão, o estereótipo acaba por ser apropriado e compreendido para definir uma opinião pronta, uma ideia ou expressão muito utilizada, banalizada, um lugar-comum na produção do senso-comum. Daí podemos entender porque da associação com a chapa de chumbo originária, pois cada página a ser impressa será igual a seguinte, toda a materialidade dali produzida será uma cópia da outra, original, como uma fo(ô)rma para o padrão desejado. Assim temos o engessamento comportamental, perceptivo e consciente de cada unidade humana entitativa – o que importa é seguir fielmente o padrão matriz, o estereótipo. E é a isto que remete sua etimologia, advindo do grego stereos e typos compondo impressão sólida, que irá dar sentido tanto ao objeto utilizado de forma maquínica e rotineira quanto ao comportamento rotineiro e padronizado de cada um de nós. Essa supergeneralização é uma estratégia discursiva e também factual na práxis utilitária cotidiana, funcionando muita das vezes como elemento capaz de sintetizar conceitos, sendo cada vez mais utilizado na corporeidade e no discurso cotidiano, principalmente após o advento da mídia como modelo sintetizador da moral pretérita da existência humana. Contudo, ao mesmo tempo em que garante a sintetização de uma moral cristalizada, produzindo um efeito de objetividade, também estabelece uma dimensão produtora de efeitos de uma subjetividade alienada. Isto faz com que o indivíduo que expressa e apreende o estereótipo se confunda hora como um ente genérico que somente reproduziu a supergeneralização, hora como um “sujeito” que teve uma ideia original, criativa e própria. Podemos então abordar o estereótipo por duas vias complementares: a primeira enquanto um modo da percepção, de forma particular que influencia, tal qual um “esquema”, como nós percebemos e recordamos de experiências e pessoas; a segunda numa perspectiva existencial enquanto fruto da interação cotidiana humana, neste caso o conteúdo do estereótipo deve ser averiguado em sua fonte.

Iremos ao encontro então do inter-relacionamento das duas vias, que acabam por gerar somente uma, que será o processo de estereotipagem. Do ponto de vista da percepção, um dado estereótipo é existencial, pois se refere à representação corpóreo-linguística expressa cotidianamente, mais especificamente por um determinado “grupo social”; porém, com o advento da mídia a construção, reprodução e propagação de diversos estereótipos acabam por serem repercutidos como um senso-comum de abrangência muito mais ampla do que a local. Principalmente se dado estereótipo for veiculado por um país ou grupo de grande influência política e midiática (o que acontece com nossos enlatados estadunidenses de filmes, comédias, telejornais e programas de auditório, entre outros). Esta representação irá construir indivíduos que expressam papéis criados de forma genérica criando assim uma consciência alienada sobre determinado padrão de indivíduo em relação a seu suposto “papel”. Desse modo acabamos por elaborar e disseminar pacotes de conhecimento previamente atribuídos aos corpos e comportamentos dos entes humanos que se enquadram, por rotulação generalizada, em tais atribuições que assumimos em nossos atos serem verdadeiras. Como vimos, a relação entre a existência e a percepção é inevitável de ser separada, principalmente neste processo que irá formar as estereotipias como fenômenos de categorização, que uma vez constituída, leva os indivíduos a procurar reproduzir cotidianamente uma realidade que valide as previsões e explicações implicitamente contidas nas estereotipias. Assim, a estereotipia seria essa forma de categorizar um estereótipo que fora elaborado, com a finalidade de cimentar através da corporeidade alienada, uma característica tida como imutável de cada ente singular que é representado por tal estereótipo. O que não podemos deixar de destacar é que a estereotipia busca confirmar, na práxis cotidiana, através de seu modelo comum pronto a reprodução de dado estereótipo.

O processo de estereotipagem seria a relação estereótipo-estereotipia, pois o estereótipo não pode se tornar um tipo comum se não for categorizado e disseminado pelo senso-comum. Assim o processo de estereotipagem seria também um meio ou medida para que se autovalorize um determinado grupo humano em relação ao outro; para que a moral instituída por dado grupo seja imposta de forma espraiada e tida como imutável, tendo como reforço sempre a corporeidade dos corpos daqueles que os categorizadores dos estereótipos querem que sejam dominados. Criam-se então tipos fixos de corpos, corporeidades padronizadas e difundidas cada vez mais pela mídia. Mas a culpa não é da mídia e sim de nós mesmos que criamos e propagamos estes tipos fixos, ou impressões sólidas de corpo. O discurso e a percepção da corporeidade alienada nos auxiliam no entendimento do processo de estereotipagem, contudo, por hora, devemos demonstrar alguns destes estereótipos que “assombram” e fazem caminhar a nossa existência cotidiana.

Fizemos a escolha de uma dessas impressões que se querem sólidas em nossa cotidianidade, para dar cabo da praticidade que este momento implica, principalmente por se tratar de uma averiguação pela percepção e não somente da consciência. Cada corporeidade alienada tem seu processo de estereotipagem própria, na inter-relação estereotipia (categorização) e estereótipo (impressão rígida a ser passada pelo senso-comum). Elegemos então aqui o especismo. Este muito (des)conhecido e naturalizado por nós entes humanos e que já tratamos no capítulo anterior como uma das principais formas de domesticação e/ou antinatureza como um dos modos de exteriorização da vida.

Contudo, adensado a este especismo temos o antropocentrismo dominador, que após ter ajudado a criar toda esta “doença humana” do estranhamento, agora deve ser fixado como uma “impressão rígida” a ser veiculada pelo senso-comum em nossa cotidianidade. Portanto, quando tratamos aqui do especismo como um processo de estereotipagem não estamos sendo contraditórios ou redundantes quanto àquele tratado no capítulo anterior e na primeira parte deste capítulo, mas sim reforçando agora sua legitimação fenomênica através de uma subjetividade alienada. Este especismo não é somente fruto deste processo da existência humana, mas um reprodutor da condição a ser engessada como imutável porque vista como eterna. Como vimos o especismo é uma discriminação baseada na espécie, quase sempre a favor dos integrantes da espécie humana, como do ente corpóreo que aqui vos fala. Para averiguarmos factualmente em nosso cotidiano o especismo como processo de estereotipagem basta fazer uma breve “varredura” crítica em nossa linguagem de senso-comum “ingênuo” para ver o que estamos representando, categorizando e tentando re-afirmar. Junto a isto corre livremente, também com aspecto ingênuo, a veiculação midiática do processo. Todas as experiências e representações delas desde os primórdios da civilização-dominação humana, perpassando pelas instituições pretéritas e ao mesmo tempo contemporâneas e imbricadas (Filosofia, Religião, Ciência), são veiculadas pela Mídia.

O processo de estereotipagem do especismo ganha corpo ainda mais abrangente e representacional com a possibilidade de grafar com logotipos, propagandas e animações na percepção via da imagem. No momento da linguagem e das expressões podemos ver a característica mais espontânea da dominação humana, nas formas agressivas em que cada frase é entoada e nas expressões faciais dos falantes (nas suas “caras e bocas”). Em meio às falas arrogantes de cada ente humano sobre os outros animais que não nós com o intuito de tapar os ouvidos e sentidos para seus modos de comunicação continuamos a colocar todos os que não são humanos nas mesmas condições, desde uma baleia até uma centopeia; todos (o resto) são animais, nós os humanos, ou melhor, os representantes do gênero dos iguais, semelhantes: o homo. No campo de atuação massiva da mídia, a representação ganha corpo de romantização (criar imagens fantasiosas dos fatos), como nos explica Smith (1988, p. 43): “a romantização é aí uma forma de controle”; justamente por mascarar os fatos através de imagens que sejam aceitas de modo implícito e não demonstrador de agressividade.

Nós que dizemos e reproduzimos os estereótipos especistas na maioria das vezes não gostamos de sermos pegos em flagrante deste ato, nos achando isentos politicamente do assunto e do fato, pois temos as explicações perpassadas sem discussões: Deus deu a superioridade aos humanos; alimentamos e protegemos os animais; os animais não sabem que sofrem; os animais não sabem que vamos matá-los; os animais só agem por instinto; os animais comem-se entre si; os animais não têm personalidade; eu amo os animais, não como carne de cavalo e tenho um cachorro (embora ninguém queira ser “tratado feito cachorro”). Para quem se expressa dessa forma a naturalidade do discurso não faz perceber o hábito de estereotipia da dominação humana, que após um escrutínio crítico soa como algo ridículo.

Vejamos o exemplo simples dos nomes que damos às vozes dos outros animais e como nos referimos a elas para o nosso trato entre-humanos. Acuar, que é a voz de cães, tratamos como “deixar alguém em má situação” (quem nunca viu a ofensa verbal de que um indivíduo pede para o outro “latir”). Apitar que é o som emitido das aves fica como pejorativo na expressão: “o que você está apitando”. Berro, este é mais corriqueiro, no qual pedimos sempre para o outro “parar de berrar” quando desejamos silêncio, nos esquecemos que é a rotulação de voz que demos a araras, bois, cabras, etc. Quem nunca se reclamou de que o outro estava bufando, mais uma vez a voz de baleias, cutias. O cochicho do ditado “quem cochicha o rabo espicha” é a forma de expressão da ave cochicho ou da alvéola. Fungar e gaguejar, também termos pejorativos a nós humanos são vozes de gatos e bodes respectivamente. A gargalhada, forma de risada mais alta do que a “educadamente permitida” é a voz de hienas, melros, seriemas, cutias, corujas. Assim podemos seguir com gritar, zoar, urrar, sussurrar, roncar, grunhir, fungar, entre inúmeras outras, mas que faz o defensor do especismo ingênuo sempre ver o lado “positivo” dos fatos: existe a exaltação do cantar, que é remetido à voz de algumas aves como a andorinha, mas que se não nos agrada pela harmonia que desejamos logo dizemos que está chiando, aquela reclamação feita quando não gostamos de um som da televisão ou de algum aparelho de áudio.

Os exemplos do processo de estereotipagem especista também podem ser percebidos na ofensa direta dos entes humanos, de forma agressiva e pejorativa, tanto na fala quanto na expressão facial. Vamos enumerar: veado, para o homossexual; porco, para o que se considera sujo; cavalo para representar a estupidez de um “coice” verbal; vaca à mulher que é vista como promiscua, assim como piranha ou galinha; crocodilo para representar a falsidade das lágrimas ou o urso, do tão conhecido “amigo urso” ou “abraço de urso”, também representam falsidade; passarinho para rotular o indivíduo que come pouco, na perspectiva daquele que está rotulando; preguiça que qualifica o ente humano como indolente geralmente em relação ao seu não rendimento ao trabalho alienado; toupeira, para indivíduos tratados como ignorantes; girafa para os que são mais altos que a média estipulada; baleia constantemente atribuído ao gordo ou obeso; burro é sempre aquele que não se enquadra nos padrões de inteligência estipulados, ou somente o “que não é inteligente”; tartaruga é sempre associado ao lento, lerdo, assim como a lesma; gambá representa aquele que não cheira como deveria cheirar um indivíduo civilizado; rato é o ladrão. E assim sucessivamente como o tratar de bicho ou simplesmente animal (aquilo que todos nós somos) um ente humano que esteja fazendo algo que fuja dos comportamentos esperados para um humano enquanto tal.

Estes rótulos e adjetivos demonstram o processo de estereotipagem em seu aspecto linguístico como formação de um padrão fixo, do qual nem o chamado de “melhor amigo do homem” (por ser um dos primeiros a serem domesticados, adestrados e usurpados pela dominação humana e que, mesmo assim, ainda continuam sempre ao nosso lado) escapa. Quem nunca ouviu ou esbravejou para outrem que era um cachorro, para demonstrar sua atitude de “canalha” (mas não era amigo?), ou o cão, como representação direta para o maligno, a satanização, como o oposto de Deus[16].

A satanização dos outros animais é algo muito comum no processo de estereotipagem especista, e dá margem para que possamos entrar na veiculação das imagens que depois trataremos com a romantização. Outro animal que fora satanizado é o bode, principalmente após a construção simbólica do Bode de Sabbath ou Baphomet, ainda conhecido como bode de Mendes, desenhado por Alphonse Louis Constant, o abade ocultista francês do século XIX de alcunha Eliphas Levi[17]. O ocultismo seria perseguido pelo clero de até então, denominando todas as práticas religiosas que vão para além da teologia teocêntrica e antropocêntrica como ocultismo, animismo ou somente satanismo. Mas, realmente por hora o que nos importa é o Bode, que desde então ficará registrado como estereotipia do diabo, maligno oposto da bondade divina.

Outra estereotipia curiosa no processo de estereotipagem do especismo é a figura do “lobo mau”, mais uma vez atribuindo aos canídeos a feição maligna, como um ente que possui de forma inata a maldade. Nos contos infantis, a expressão e representação da maldade e/ou do vilão através do “lobo mau” são frequentes, tendo como principal obra a “historia da chapeuzinho vermelho”, incorporando a figura do lobo-vilão que é morto ao final da história sem nenhum remorso pelo “bondoso” caçador. O mundo onírico infantil busca cimentar já nos recém chegados ao mundo humano toda a exteriorização da vida e alienação subsequente imposta através das estereotipias, principalmente de forma romantizada. É muito comum associarmos crianças aos “inofensivos e meigos bichinhos” através de filmes, desenhos, histórias em quadrinhos, contos, bichos de pelúcia, o coelhinho da páscoa e os produtos a serem consumidos com teor romantizado do não-humano (com expressão compassiva, humanizada e sempre feliz). Tal romantização é defendida com tom de pedagogia, de um falso amor a “natureza”, da qual ninguém quer se aproximar, nem em si-mesmo e muito menos no outro animal não-humano que é preterido ao zoológico, onde possam ser o mais próximo (e ao mesmo tempo distante) de nós possíveis, para evitarmos contato com suas feições nada romantizadas ou humanizadas. O caráter hipócrita-pedagógico da romantização animal não-humana é através dos desenhos para criança, principalmente para pintar, desenhar ou colorir, no qual a criança vai aprendendo seu contato “harmonioso com a natureza” em complementaridade com os “passeios ao zoológico” através da escola.

Como podemos perceber a feição compassiva e humanizada é genérica para todos os animais não humanos, mesmo que nossas “caras” em muitos momentos (principalmente ao lidarmos com estes outros animais) pareçam mais arrogantes e agressivas do que na representação. Os produtos de consumo humano, adulto ou infantil, através da mídia ganharam ainda mais esse realce de romantização. É em boa hora lembrar a propaganda da empresa Parmalat sobre seu leite-produto, a ser comprado por adultos (pais e mães) para crianças (filhos), no qual aparece uma simbiose entre os “bichinhos de pelúcia” (mamíferos), as crianças e o produto, leite (quase imperceptível durante a trama do comercial). O apelo infantil, terno, de pureza imbricada com a romantização dos outros animais foi explícita para a venda do produto – é impossível não percebermos assim a sintetização da mídia de todas as instituições das quais já citamos. Os produtos de limpeza, quase sempre são associados a animais não humanos ainda jovens ou crianças, e ainda, como no caso da linha de amaciante Fofo, da empresa Unilever, que tem como estereotipia um urso de pelúcia, sorridente e compassivo.

Para finalizarmos a romantização veiculada pela mídia dos animais não humanos em suas propagandas, é a estereotipia dos alimentos de origem animal. Leites e derivados, carnes bovinas, suínas, aviárias, em sua maioria, quando mostram, os animais encontram-se sempre numa condição alegre, livre, sem sofrimento aparente e muitas das vezes, também como no caso dos animais para crianças, com expressões humanizadas. Os porcos sorriem nas vitrines dos açougues especializados na venda de carne de porco e embutidos, mostrando muito bem que o seu papel, a sua vocação íntima, a sua “natureza” instintiva e sagrada, é virar presunto. Um excelente exemplo dessa romantização é o mascote da empresa Sadia (que atualmente se fundiu, por meio de troca de ações, com sua antiga concorrente Perdigão, formando a Brasil Foods), que desde sua primeira aparição até os dias de hoje, “o franguinho” de óculos de motoqueiro e sempre dançante busca demonstrar para os consumidores com sua “simpatia” as novidades da Sadia nos anúncios e comerciais de televisão em que aparece – cabe lembrar também com um sutil toque de nacionalismo “verde-amarelo” que um bom-consumidor-cidadão-de-bem foi induzido a gostar.

O intuito claro é a venda do produto, mas também para nós, fica muito clara a romantização e a construção de um estereótipo especista na nossa alimentação. Desse modo terminamos aqui o processo de estereotipagem especista, através da análise crítica sobre a romantização veiculada pela mídia como senso-comum deste estereótipo. Vimos que este utilitarismo antropocêntrico especista é um engodo não somente para toda a humanidade, mas para além dela que acaba por se compreender como um “fim em si mesma”. Todo o planeta vivo Terra e todos os entes auto-organizados, dotados de mente, sentimentos e sensações são afetados por essa ignorância humana que cimentou em nosso senso-comum cotidiano as “verdades” (científicas, filosóficas e religiosas) que centralizam o “homem”, como principal espécie e por isso deve usurpar qualquer direitos dos outros entes. Tais verdades como diria Nietzsche (2001, pp. 12-13) são nada mais que “uma multidão móvel de metáforas, metonímias e antropomorfismos”, visto que através de nossa domesticação da vida pelo antropocentrismo criamos ideias antropomórficas, para justificar, balizar e continuar usando a vida de outros entes (animais não-humanos ou para além destes). Cabe então entendermos que para a vida saudável na Terra, o antropocentrismo especista utilitarista, via do antropomorfismo, é o asilo de nossa ignorância (ESPINOSA, 1983).

5.    CONSIDERAÇÕES PARA UMA ÉTICA PRÁTICA

Esboçamos neste trabalho que o antropocentrismo especista utilitarista cabe muito mais à práxis do que somente a uma retórica científica, filosófica ou religiosa. Removemos “camadas” densas e enraizadas em nossa civilização por milênios para apreender que nossa conduta antropocêntrica é pautada em uma “moral antropomórfica”, contudo devemos advertir que a teoria na práxis acaba sendo outra. Por tal motivo que é vigente uma ética prática. Peter Singer (2002) já nos alertara para uma diferenciação sutil entre o que a ética é e o que ela não é. Ética não é a moralidade dos costumes, ela é acima de tudo a práxis: uma totalidade que envolve consciência científica e filosófica de forma aplicada aos nossos comportamentos cotidianos de respeito ao outro (humano ou não), e também de conduta de nossas escolhas de consumo.

A prática desta ética acaba por ser uma desobediência civil, por nos fazer atuar ativamente a partir da “ação direta, na prática do anarquismo através do próprio exemplo” (ARARIPE, s.d., p. 61). Esta ação direta vai de encontro ao paradigma civilizacional que tratamos sumariamente neste trabalho. Questionar pela escolha de consumo, pela produção científica de trabalhos e através de formas de conscientização contrárias ao senso-comum “enferrujado e embrutecido” pelos estereótipos antropocêntricos. O questionamento do consumo e da conduta mais ecológica do que egológica (ROCHA, 2009) não é como muitos apontam, conservadoramente, como um “eco-terrorismo”. Através de nossas bases filosóficas, religiosas e científicas antropocêntricas acabamos por confundir a representação e o utilitarismo da realidade pela própria qualidade ecológica do mundo-cosmos que vivemos. Assim, quando falamos de uma nova conduta ética pautada na vida de forma holística, os arautos da “moral antropomórfica” se mostram contrários aprioristicamente. Mas quais os motivos?

Esta postura conservadora visa “conservar” toda a estrutura de dominação da qual tratamos neste trabalho. As acusações são de uma “Psicose ambientalista” (BRAGANÇA, 2012) pautada no meio dos “mecanismos de controle moral”. Teme-se a passagem de um antropocentrismo utilitarista para uma ecologia profunda anti-hierárquica, na qual as formas de dominação da civilização ocidental: o cristianismo, a propriedade privada e as desigualdades (étnicas, sexuais, sociais e de espécie) sejam abolidas. “Terror” não é ecológico e sim egológico. Mesmo que a ciência moderna tenha conseguido inúmeras “conquistas” para a humanidade, isto não é justificável, visto que através disto mais de 50 bilhões de animais não-humanos são mortos todos os anos para saciar o sadismo da moral utilitarista humana (CHUAHY, 2009). Dentro deste contexto, além daquilo que comemos ser a representação daquilo que o nosso “eu” é, nossa conduta contra as outras formas de vida espelham como tratamos e representamos a nós mesmos. A ética ecológica não está apartada da ética humana, ambas são um conjunto, pois enquanto humanos estamos inseridos na natureza que fazemos de tudo para externalizar. Por isso que a “produção de carne” (de modo geral) para o consumo humano sem escrutínio ético é insustentável (HIATH, s.d.). O fenômeno da fome, a escassez da distribuição de água potável, a desnutrição, a distribuição de terras, o câncer, a diabetes, entre outras problemáticas humanas são frutos “podres” desta práxis humana ecologicamente antiética.

Por fim nossa proposta é de contribuir para adensar o debate e as condutas pessoais. Não podemos “policiarmo-nos” de algumas condutas e nos “encurralar” em outras. Somos animais sim, éticos, talvez! Mas não nos esqueçamos de usar o termo ética fora de contexto em nossa práxis, pois nos colocarmos hierarquicamente opostos a outros grupos humanos e de outros grupos animais por nos autoproclamarmos éticos acaba por ser um ciclo vicioso também especista, e acima de tudo egocêntrico. Não precisamos de mais humanismo que observa o planeta “do alto”, como azul ou verde; ecologicamente a Terra viva é um manancial de “cores”, sensações e vida. Exercitemos em nossa práxis a equanimidade de mettã (amor incondicional), pois “tudo é necessário, tudo é parte da Vida Cósmica. Isto posto, uma pedra é uma pedra porque é uma pedra, e um elefante é um elefante porque é um elefante. Nada é superior a nada, e nada é inferior a nada” (PIZZINGA, 2006, pp. 24-25).

Bhavatu sabba mañgalam – Que todos os seres sejam felizes!

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