VERDADE FORMAL VERSOS VERDADE REAL: A CONTEMPORÂNEA (IN)ADEQUAÇÃO DO PRINCÍPIO DISPOSITIVO [1]

Emílio Carlos Murad Filho
Thamires de Mesquita Botentuit*


Sumário: Introdução; 2 A idéia de verdade; 3 Verdade Formal Versos Verdade Real; 4 Provas e o Princípio Dispositivo; Conclusão; Referências.


RESUMO

Aborda-se em presente trabalho, a dialética entre Verdade Real e Verdade Formal à luz do princípio Dispositivo. Para tanto se faz necessária uma análise dos diversos conceitos que formam a concepção de verdade, bem como as características das provas civis em comparação as penais.


PALAVRA-CHAVE

Processo Civil. Verdade Formal. Verdade Real. Prova

1 INTRODUÇÃO


No âmbito do processo civil, quem demanda em juízo deve provar suas "verdades". Para que o juiz possa forma seu convencimento e decidir o objeto do processo, faz-se necessário a colheita de provas que se façam fundamentais, e que serão o material com base em que o juiz formará seu juízo de valor acerca dos fatos da causa[2] .
Dessa forma, denomina-se prova tudo aquilo que contribui para o formação da convicção do juiz a respeito de determinado fato, ou seja, tudo aquilo que for levado ao autos com o fim de convencer o juiz de que determinado fato ocorreu.
Em análise ao exposto acima, compreendemos que a prova não tem por fim criar a certeza dos fatos, mas a convicção do juiz a respeito de tal certeza. Assim, entende-se quanto ao objeto da prova as alegações das partes a respeitos dos fatos, que podem ou não coincidir com a verdade .
O destinatário da prova é o juiz; é ele quem deverá se convencer da verdade dos fatos. Porém, as provas também devem ser observadas como sendo das partes [3].

2 A IDÉIA DE VERDADE


Ao longo da história, a verdade foi encarada de diversos pontos de vista e sob o domínio de alguns conceitos.
Inicialmente, toda verdade emana de Deus. A sociedade vivia sob o dogma cristão, onde a igreja detinha o controle de todo o povo, pois esta era a real representante de Deus aqui na Terra.
No período da revolução industrial, com a ascensão da burguesia, surge uma corrente conservadora denominada positivismo. Nele, tanto as ciências da natureza quanto as da sociedade devem se limitar à explicação causal dos fenômenos, de forma objetiva e neutra, livre de julgamento de valor ou ideologia. É o que faz romper com a idéia que o poder vem de Deus, remetendo-o ao povo. É aqui que nasce a concepção de verdade advinda da ciência, da ciência como progresso [4].
Já Popper nos leva a uma compreensão de verdade mais rigorosa. Para ele a ciência sempre aponta para a verdade e por isso, ele vai em busca da interpretação da verdade. Seu método funciona da seguinte forma: as teorias partem de hipóteses (se iniciam de um problema sem explicação); estas são submetidas a testes e observação, sendo corroboradas ou não. Quando corroboradas, ela ainda é provisória porque a qualquer momento pode vim a ser substituído por alguma outra teoria mais forte.
Assim, Popper nos apresenta as teorias científicas como conjectura que teriam passado, até o momento, pelos testes mais rigorosos e que deveriam ser encaradas, pela comunidade científica, como as melhores explicações existentes para determinados temas naquele momento histórico. Assim, não se chegando a uma verdade definitiva, mas a uma proximidade com a verdade, verossimilhança- uma possibilidade temporária de verdade [5].
A verdade, como nota-se, passa por alguns conceitos filosóficos fundamentais, mas que não tem uma definição nem única e nem simples.

A verdade é, ao mesmo tempo, frágil e poderosa. Frágil porque os poderes estabelecidos podem destruí-la, assim como mudanças teóricas podem substituí-la por outra. Poderosa, porque a exigência do verdadeiro é o que dá sentido à existência humana [6] .


Sob o prisma subjetivo, a verdade é a certeza quanto à existência de um fato; o que vem a ser verdade para um individual, não necessariamente é verdade para seu semelhante. Dentro de uma relação processual, é a eficaz prova dos fatos que refere-se à verdade.

3 VERDADE FORMAL VERSOS VERDADE REAL


A verdade formal é aquela que resulta do processo, podendo não encontrar correspondência exata com os fatos, como aconteceram historicamente.
Já a verdade real é a que chega o julgador, revelando-lhe os fatos tal como ocorreram historicamente e não como querem as partes que apareçam realizados.
A prática jurídica levou à distinção de ambos os conceitos, diante do confronto entre processo civil e processo penal.
No processo civil o juiz pode se satisfazer com a verdade formal, onde este vai se limitar em acolher o que as partes conduzem ao processo, recusando ou aceitando os fatos juntados.
Já no processo penal a prática leva a busca da verdade real por ali se tratar de direitos de natureza pública, onde o juiz vai fundamentar a sua sentença na averiguação e no descobrimento real verdade, manifestando-se assim em tal processo, a livre investigação de provas.

À vista disso, quando a causa não-penal versa sobre relações jurídicas em que o interesse público prevalece sobre o privado, não há concessão à verdade formal. Nas causas versando direitos de família ou infortunística, de longa data se faz presente o órgão do Ministério Público e o juiz não está vinculado ao impulso das partes [7]


Em suma, o que se tem é que em processo penal o normal é a abertura jurídica, onde juiz pode e deve buscar a verdade real, investigando livremente as provas e fatos. E com relação ao processo civil, a regra costumava ser a fixação do juiz ao corpo do processo, às provas apresentadas, limitando-se ao que as partes levam ao processo- verdade formal.
É aí se deve atentar ao conceito de verdade, pois, a certeza de uma parte não vem a ser a certeza da parte oposta, mas, majoritariamente, a realidade inversa. A prática jurídica aponta que o conteúdo alegado por uma das partes no processo é necessariamente o conteúdo negado pela outra parte. Uma outra posição que concerne a questão, está em nem mesmo as partes acreditarem no que alegam mas apenas apresentarem tais verdade para induzir ao juiz, não constituindo assim, verdade alguma, de ambos os lados.
As respostas ao comportamento do juiz, ora inerte, ora não, tendem a aparecer. Essa posição limitada do juiz é a manifestação do princípio do dispositivo, onde ele vai depender da iniciativa das partes. E é a mitigação deste mesmo principio, observada na prática jurídica que apontará algumas reformas processuais, observadas no capítulo seguinte.


4 PROVAS E O PRINCÍPIO DISPOSITIVO

Alexandre Freitas Câmara, ao conceituar a teria geral da prova, afirma que em Direito Processual Civil, prova é a soma dos fatos produtores da convicção do julgador e apurados no processo. O juiz somente poderá formar sua convicção com base naquilo que foi demonstrado no processo, não podendo utilizar o seu conhecimento específico para proferir a sentença.
O Ordenamento Processual Civil Brasileiro adota, de forma oficial, o Princípio Dispositivo, que "consiste na regra de que o juiz depende, na instrução da causa, da iniciativa das partes quanto às provas e às alegações em que se fundamentará a decisão" [8] .
Compreende-se que tal princípio atende a uma necessidade especial de resguardar um outro princípio, o da imparcialidade do juiz, pressuposto para que a relação processual se instaure validamente.
Dessa forma, entende-se o dispositivo probatório, no Processo Civil, como um sinônimo de verdade formal, onde "aquilo que não está nos autos não está no mundo".
Ocorre que o Processo Civil passou (e passa!) por longas reformas, e sua "costumeirização" permite uma maior participação do juiz na condução do processo, assumindo o juiz um papel maior, de pesquisador da verdade real, para fim de formação de seu melhor convencimento. Não é mais possível mantê-lo como mero espectador dentro do processo civil que adquiriu caráter público, de finalidade sócio-política.

(...) a função jurisdicional evidencia-se como um poder-dever do Estado, em torno do qual se reúnem os interesses dos particulares e os do próprio Estado. Assim, a partir do ultimo quatel do século XIX, os poderes do juiz foram paulatinamente aumentados: passamos de espectador inerte à posição ativa, coube-lhe não só impulsionar o andamento da causa, mas também determinar provas, conhecer ex officio de circunstancias que até então dependiam da alegação das partes, dialogar com elas, reprimir-lhes eventuais condutas irregulares etc . [9]

Assim, no processo civil o princípio dispositivo foi aos poucos se mitigando, assegurando ao juiz que faça, amplamente, uma investigação a cerca das provas apresentadas e de todo o processo. Tudo isso para que se mantenha presente o efetivo comando do processo.
O juiz deve ter um real comprometimento com a justiça, assim, sua determinação em cumprir seus deveres com a justiça será o melhor fator para uma participação mais efetiva.
O próprio Código Processual Civil aponta para uma tendência publicista, permitindo ao juiz participar das colheitas de provas necessárias ao completo esclarecimento da verdade, a exemplos, os artigos 125, 130, 131, 330, 342 e 440. A CLT concede amplos poderes ao juiz quanto à colheita de provas- artigo 765.
Enquanto no processo civil o principio dispositivo foi se mitigando, em processo penal observou-se o caminho inverso: a substituição do sistema inquisitivo pelo acusatório.
Ada Pelegrini explica o caminho inverso no processo penal. Ela diz que só excepcionalmente o juiz penal se satisfaz com a verdade formal, é quando não dispõe de meios para assegurar a verdade real. Sua explicação quanto a concessão à verdade formal se aperfeiçoa no seguinte exemplo: absolvido o réu, após a coisa julgada não poderá ser instaurado novo processo criminal pelo mesmo fato, ainda que venham a ser descobertas provas cruciais contra ele
Assim, hoje o processo civil não é mais essencialmente dispositivo e o penal, por sua vez, passou de inquisitivo a acusatório, não deixou completamente fora uma parcela de dispositividade das provas.

CONCLUSÃO


Como o próprio nome revela, a verdade real seria aquela absoluta, a certeza. Com efeito, ser absoluta induz a ser também ideal e impossível.
Considerando o conhecimento da verdade como um fenômeno subjetivo individual, portanto, existirão tantas verdades quantos forem os sujeitos que delas tomarem conhecimento. Assim, o convencimento do juiz se afasta da racionalidade.
O que se defende no presente artigo não é a verdade formal, mas a maior aproximação de uma possível verdade. Para que se tenha a verdadeira paz social e não o fracasso jurisdicional, é preciso que o julgador esteja o mais perto possível da verdade. Os limites impostos pelo princípio dispositivo, em muitos casos, impedem o juiz de ir mais além no conhecimento dos fatos perquiridos.
O problema reside estritamente no risco de tal busca, pois indo atrás do melhoramento da verdade e aproximá-la o máximo possível do mundo fático afasta-se esta do controle processual, com notado ônus ao inocente que fica a mercê da contaminação do julgamento judicial por variáveis alheias ao processo. Faz-se assim da verdade formal, a mais segura, e não precisamente a mais exata.
Contudo, conclui-se que o juiz atende a uma atividade subsidiária, onde ainda é ônus das partes a iniciativa na produção de provas e só após esgotadas as possibilidades das partes, o juiz amplamente se manifestará afim de conhecer provas contundentes, que apontem ao deslide do processo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. v. I. 19º edição. São. Paulo: Lúmen Júris, 2005.p. 373.
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido R. Teoria geral do processo. São Paulo: Malheiros.
CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. 2. ed. São Paulo: Ática, 1995.
DONOSO, Denis. O princípio dispositivo e a verdade real no Processo Civil. Disponível em: http://jusvi.com/artigos/843. Acesso em: 6 maio.
Mansoldo, Mary. Verdade real versus Verdade formal. Disponível em: http://www.jurid.com.br/new/jengine.exe/cpag?p=jornaldetalhedoutrina&ID=79741. Acesso em 6 maio.
POPPER, Karl R. Conjecturas e Refutações- o progresso do conhecimento científico; tradução de Sérgio Bath. 5 ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008.
TRIVIÑOS, Augusto Nivaldo. Introdução à Pesquisa em Ciências Sociais- a pesquisa qualitativa em educação. Livro da editora Atlas- São Paulo, 1987.


NOTAS DE RODAPÉ


*Alunos do curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco. E-mail: [email protected].
[1] Artigo elaborado para a disciplina de Processo de Conhecimento II, visando à obtenção da 2° nota.

[2] VER Câmara, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. v. I. 19º edição. São. Paulo: Lúmen Júris, 2005.p. 373.

[3] As alegações sobre fatos constituem o objeto da prova e não os fatos propriamente ditos, assim, as provas devem recair sobre a matéria fática e, apenas em exceções, sobre matéria de direito. Em algumas situações excepcionais o objeto da prova será também constituído de matéria de direito. Assim, bem pontua Alexandre Câmara de Moraes.

[4] TRIVIÑOS, Augusto Nivaldo. Introdução à Pesquisa em Ciências Sociais- a pesquisa qualitativa em educação. Livro da editora Atlas- São Paulo, 1987. Em tal obra, as concepções do positivismo são pontualmente abordadas.

[5] Popper, Karl R. Conjecturas e Refutações- o progresso do conhecimento científico; tradução de Sérgio Bath. 5 ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008. Nesta obra, faz-se presente todos os pontos de vista popperianos.

[6] CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. 2. ed. São Paulo: Ática, 1995.p. 108.

[7] CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido R. Teoria geral do processo. São Paulo: Malheiros . p.71

[8] Conceito verificado no livro "Teoria Geral do Processo", de Ada Pellegrini Grinover, Antonio Carlos de Araújo Cintra e Cândido Rangel Dinamarco. Editora Malheiros, 25 edição, p. 70. Os autores ainda citam que na doutrina contemporânea reserva-se a locução princípio dispositivo para a regra da iniciativa probatória de partes; não confundir essa regra com a da disponibilidade, não- obstante a semelhança vocabular.
[9] CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido R. Teoria geral do processo. São Paulo: Malheiros. p.70