VELHOS, JOVENS E RECENTES
Como alunos, éramos certamente um desafio aos nossos professores. Quem não se lembra
daquela diretora, coordenadora ou professora pequenininha, cujos saltos ecoavam no
corredor como trombetas anunciando que o inferno estava por vir... Que atire a primeira
pedra aquele que nunca colou ou viu alguém colando, nunca provocou ou presenciou uma
provocação maldosa a um colega, nunca copiou uma lição ou deixou que alguém a copiasse,
nunca foi pego colando (ou quase); quiçá passando cola? Escrúpulo, onde?
Impossível esquecer das provocações e risinhos cúmplices dados pelas costas daquela
professora, já uma anciã muito antes de eu pensar em me sentar nos bancos de sua sala... E
o que dizer da grande lenda que seguia firme de que nos cabelos espessos de Dona Marta
tinha de tudo - de clipes à "cheetos"? Maldade, quanta maldade!
Isso sem falar no enorme grupo de sala, dos grandes amigos. Tão heterogêneos quanto
efêmeros: dele faziam parte o garoto mais popular da turma, para quem todas as meninas
jamais negavam sorrisos, o enigmático menino, cuja família nunca vinha às reuniões, embora
estivesse sempre ameaçado de repetir de ano mais uma vez... As garotas com seus papéis de
carta que sempre me pareciam caríssimos, a garota de fisiologia farta e generosa para a
idade e sua demasiada espontaneidade com os rapazes... O piadista, o retraído, o distraído,
o fumante, o eterno suspeito, o relapso, o inconveniente, o espertinho, o abandonado (pela
mãe ou pelo pai), o criado pela avó... O que apanhava se não tirasse a maior nota, a que
tirava sempre a maior nota e todos fingiam respeitar... Quanta diversidade! Quanto perigo à
espreita!
E, a despeito de todo zelo paterno ou materno, éramos uma turma. E nada podia impedir a menina mais inteligente da classe de jogar conversa fora com "o eterno suspeito", ou, quem sabe, com "as garotas dos papéis de carta" que comumente a rejeitavam... Ou "do retraído" sentar-se para uma conversa animada com o "inconveniente" e o "espertinho"... Tampouco não parecia impossível que, se assim o desejasse, o bom e esforçado moço que com frequência apanhava por não ter sido "o melhor da classe", risse às gargalhadas com
"a menina para quem a natureza foi tão generosa"... nada, nem ninguém os impedia, porque
assim era a vida, repleta de pequeníssimos perigos aos quais nos colocávamos
constantemente em contato, deixando-nos testar os limites, as vontades, os medos e
ansiedades.
Com certeza, a descrição que acabou de ler é bastante familiar. Tenha sessenta ou
trinta anos, deve reconhecer nela suas próprias referências, não é mesmo? Com talvez uma
diferença: aos jovens de hoje fica muito mais complicado exercitar os modelos de
personalidade; tamanho o cerceamento físico, cultural, afetivo e psicológico a que são
submetidos o tempo todo.
A unanimidade, nesse caso, fica a cargo da ideia de que, como ontem, os professores
(e também os pais) compõem um grupo uníssono e perplexo diante de nossos alunos (e filhos).
O fato é que alunos (e filhos) são, em todas as épocas, um paradoxo profundo, só explicado e
compreendido sob as lentes de um tempo e de um espaço que não são - e talvez nunca sejam
os nossos.
Diferentemente de um cientista que, em sua busca pela verdade se vale da
observação, da problematização, da formulação da hipótese e da experimentação para chegar
à teoria que desvendará o problema; para um educador o processo é muito mais complexo:
observamos nossos alunos, problematizamos suas demandas, formamos hipóteses acertadas
ou equivocadas, e com muita boa vontade experimentamos modelos e adequamos métodos.
Mas, jamais, como o cientista, somos capazes de formular uma teoria precisa sobre
eles, que perdure e sobreviva pelos tempos. Isto porque, o objeto de nosso estudo - o aluno - é
também sujeito de toda ação. É como se um cientista resolvesse estudar seu próprio coração.
Não seria possível, nesse caso, dissecá-lo para fins de mera observação; impossível
seria experimentar entupir uma artéria propositadamente só para formular uma hipótese;
posto que o coração é quem o mantém vivo e saudável.
Assim o é o aluno para o professor. Assim sempre o foi. Assim sempre o será. Um
paradoxo profundo, num ser impregnado de outro.
Mas, quem é, ou deveria ser esse professor, face à esse paradoxo? Certamente não
deve ser um cientista. Porque isso seria pouco.
Certamente não deve ter somente o espírito fraterno (ou materno). Porque ainda isso
seria pouco. Também não deveria ser moderno, ou pós-moderno, como sugerem alguns.
Porque ainda isso seria pouco.
Não deveria ser apenas um especialista, um mestre, um doutor de sua arte. Porque
isso seria pouco. Não deveria ser apenas aquele que se contenta com os limites de sua
disciplina. Porque isso seria pouco, muito pouco.
E certamente também seria muito pouco que esse professor pretendesse ser apenas e tão somente, uma autoridade. Ou que se esquecesse do falso protagonismo que vivem nossos
jovens nesses tempos de reality shows, de celulares, de chips, whatsapps, etc. Ou que se
olvidasse do cerco quase repressivo que os jovens sofrem em nome da modernidade, e
também de suas consequências; algumas vezes tão nocivas...
Um professor dessa nova era deve ser capaz de se desconstruir sem, contudo, destituir o valor de seu conhecimento. Deve ser tão paradoxal quanto o paradoxo que quer
compreender: valorizar o conhecimento - sem ser pretensioso; fazer-se invejado toda vez
toda vez que discursar uma teoria, resolver um teorema, analisar um livro ou um fato
histórico - sem desdenhar quem o escuta; ser criativo e até lunático - sem ser patético ou
provocar risos...
Certa vez, o Maestro Júlio Medaglia foi assim questionado num programa de televisão:
<maestro, o senhor, como uma pessoa da antiga geração, mais velha, poderia me dizer...>
Acho mesmo que o jovem nem conseguiu terminar a pergunta - e por isso talvez eu nem me
lembre dela com exatidão - posto que foi interrompido pelo maestro que retrucou: <garoto,
eu não sou velho. Sou jovem há mais tempo que você!> E eu teria repetido essa frase
inúmeras vezes, nesse contexto, toda vez que um jovem aluno fizesse esse comentário para
mim ( sempre a achei perfeita, reveladora na minha posição de pessoa experiente entre
jovens) até que, certa vez, uma aluna adiantou-se na resposta e disse: "ora, vê se te enxerga!
Você é que é muito recente!"
Desde então, esse adjetivo, "recente"não me sai da cabeça. Realmente, nossos alunos são recentes, até mesmo para aqueles que ainda são jovens! Como então compreendê-los na
frescura de suas almas? Como chegar ao âmago de suas necessidades? Como entender que
têm anseios diferentes dos nossos, para atender a um mundo tão transformado, tão livre e
tão coercitivo, tão moderno mas com teorias tão líquidas? Como conceber que até há bem
pouco tempo atrás - quando iniciaram suas vidas escolares - ainda nos tinham como
referência e modelo? Quando foi que fomos destituídos de uma autoridade que a nós foi
imputada por seus próprios pais, mães, avôs, avós?
Como, onde, quando, por que perdemos essa autoridade? Será nos dado o direito de
recuperá-la?
Penso que não. Não podemos recuperar algo que nunca foi nosso. Ofereceram a nós um poder temporário necessário - e isso pode justificar o brilho nos olhos das crianças pequenas que frequentam a escola - mas precisamos transformá-lo. Como? Penso que tendo a mente
aberta, valorizando a criatividade, sabendo ouvir queixas e pedidos isentos de preconceitos,
mas sem deixar de assumir nosso próprio papel - não de iguais, não de amigos, mas de
detentores de um conhecimento solidário; não de velhos, nem de "recentes"; mas,
sobretudo de personalidades atentas às demandas, às deficiências, às habilidades e às
múltiplas inteligências; à mudança.
É na escola - e talvez este seja o único lugar em que ainda isso seja possível - que o
conhecimento poderoso e despretensioso pode circular democraticamente; posto que quem
o viabiliza é o professor, para quem - ao contrário do cientista - nenhuma teoria (nesse caso
sobre o seu objeto de estudo, o aluno) se postula em definitivo; a não ser a teoria de que
não há teoria alguma. É ele quem assume uma postura investigativa e parceira, capaz de
transformar o conhecimento em algo significativo, poderoso; mesmo que para isso tenha
que se destituir da própria (e frágil) autoridade. É ele quem reflete a interdisciplinaridade
nos corredores e nos cafés; posto que ainda nos falta uma cultura com valores e vontades
interdisciplinares, redimensionando seu conhecimento.
Não digo que isso seja fácil; tampouco óbvio, francamente compreensível. Ao contrário.
Acrescente a tudo isso o fato de que também nós, professores, não raramente nos
apartamos num "tempo e lugar"distantes - literalmente vivendo um saudosismo próprio dos
velhos; como se jamais tivéssemos sido "recentes" ou "jovens".

VELHOS, JOVENS E RECENTES
Como alunos, éramos certamente um desafio aos nossos professores. Quem não se lembra
daquela diretora, coordenadora ou professora pequenininha, cujos saltos ecoavam no
corredor como trombetas anunciando que o inferno estava por vir... Que atire a primeira
pedra aquele que nunca colou ou viu alguém colando, nunca provocou ou presenciou uma
provocação maldosa a um colega, nunca copiou uma lição ou deixou que alguém a copiasse,
nunca foi pego colando (ou quase); quiçá passando cola? Escrúpulo, onde?
Impossível esquecer das provocações e risinhos cúmplices dados pelas costas daquela
professora, já uma anciã muito antes de eu pensar em me sentar nos bancos de sua sala... E
o que dizer da grande lenda que seguia firme de que nos cabelos espessos de Dona Marta
tinha de tudo - de clipes à "cheetos"? Maldade, quanta maldade!
Isso sem falar no enorme grupo de sala, dos grandes amigos. Tão heterogêneos quanto
efêmeros: dele faziam parte o garoto mais popular da turma, para quem todas as meninas
jamais negavam sorrisos, o enigmático menino, cuja família nunca vinha às reuniões, embora
estivesse sempre ameaçado de repetir de ano mais uma vez... As garotas com seus papéis de
carta que sempre me pareciam caríssimos, a garota de fisiologia farta e generosa para a
idade e sua demasiada espontaneidade com os rapazes... O piadista, o retraído, o distraído,
o fumante, o eterno suspeito, o relapso, o inconveniente, o espertinho, o abandonado (pela
mãe ou pelo pai), o criado pela avó... O que apanhava se não tirasse a maior nota, a que
tirava sempre a maior nota e todos fingiam respeitar... Quanta diversidade! Quanto perigo à
espreita!
E, a despeito de todo zelo paterno ou materno, éramos uma turma. E nada podia impedir a menina mais inteligente da classe de jogar conversa fora com "o eterno suspeito", ou, quem sabe, com "as garotas dos papéis de carta" que comumente a rejeitavam... Ou "do retraído" sentar-se para uma conversa animada com o "inconveniente" e o "espertinho"... Tampouco não parecia impossível que, se assim o desejasse, o bom e esforçado moço que com frequência apanhava por não ter sido "o melhor da classe", risse às gargalhadas com
"a menina para quem a natureza foi tão generosa"... nada, nem ninguém os impedia, porque
assim era a vida, repleta de pequeníssimos perigos aos quais nos colocávamos
constantemente em contato, deixando-nos testar os limites, as vontades, os medos e
ansiedades.
Com certeza, a descrição que acabou de ler é bastante familiar. Tenha sessenta ou
trinta anos, deve reconhecer nela suas próprias referências, não é mesmo? Com talvez uma
diferença: aos jovens de hoje fica muito mais complicado exercitar os modelos de
personalidade; tamanho o cerceamento físico, cultural, afetivo e psicológico a que são
submetidos o tempo todo.
A unanimidade, nesse caso, fica a cargo da ideia de que, como ontem, os professores
(e também os pais) compõem um grupo uníssono e perplexo diante de nossos alunos (e filhos).
O fato é que alunos (e filhos) são, em todas as épocas, um paradoxo profundo, só explicado e
compreendido sob as lentes de um tempo e de um espaço que não são - e talvez nunca sejam
os nossos.
Diferentemente de um cientista que, em sua busca pela verdade se vale da
observação, da problematização, da formulação da hipótese e da experimentação para chegar
à teoria que desvendará o problema; para um educador o processo é muito mais complexo:
observamos nossos alunos, problematizamos suas demandas, formamos hipóteses acertadas
ou equivocadas, e com muita boa vontade experimentamos modelos e adequamos métodos.
Mas, jamais, como o cientista, somos capazes de formular uma teoria precisa sobre
eles, que perdure e sobreviva pelos tempos. Isto porque, o objeto de nosso estudo - o aluno - é
também sujeito de toda ação. É como se um cientista resolvesse estudar seu próprio coração.
Não seria possível, nesse caso, dissecá-lo para fins de mera observação; impossível
seria experimentar entupir uma artéria propositadamente só para formular uma hipótese;
posto que o coração é quem o mantém vivo e saudável.
Assim o é o aluno para o professor. Assim sempre o foi. Assim sempre o será. Um
paradoxo profundo, num ser impregnado de outro.
Mas, quem é, ou deveria ser esse professor, face à esse paradoxo? Certamente não
deve ser um cientista. Porque isso seria pouco.
Certamente não deve ter somente o espírito fraterno (ou materno). Porque ainda isso
seria pouco. Também não deveria ser moderno, ou pós-moderno, como sugerem alguns.
Porque ainda isso seria pouco.
Não deveria ser apenas um especialista, um mestre, um doutor de sua arte. Porque
isso seria pouco. Não deveria ser apenas aquele que se contenta com os limites de sua
disciplina. Porque isso seria pouco, muito pouco.
E certamente também seria muito pouco que esse professor pretendesse ser apenas e tão somente, uma autoridade. Ou que se esquecesse do falso protagonismo que vivem nossos
jovens nesses tempos de reality shows, de celulares, de chips, whatsapps, etc. Ou que se
olvidasse do cerco quase repressivo que os jovens sofrem em nome da modernidade, e
também de suas consequências; algumas vezes tão nocivas...
Um professor dessa nova era deve ser capaz de se desconstruir sem, contudo, destituir o valor de seu conhecimento. Deve ser tão paradoxal quanto o paradoxo que quer
compreender: valorizar o conhecimento - sem ser pretensioso; fazer-se invejado toda vez
toda vez que discursar uma teoria, resolver um teorema, analisar um livro ou um fato
histórico - sem desdenhar quem o escuta; ser criativo e até lunático - sem ser patético ou
provocar risos...
Certa vez, o Maestro Júlio Medaglia foi assim questionado num programa de televisão:
<maestro, o senhor, como uma pessoa da antiga geração, mais velha, poderia me dizer...>
Acho mesmo que o jovem nem conseguiu terminar a pergunta - e por isso talvez eu nem me
lembre dela com exatidão - posto que foi interrompido pelo maestro que retrucou: <garoto,
eu não sou velho. Sou jovem há mais tempo que você!> E eu teria repetido essa frase
inúmeras vezes, nesse contexto, toda vez que um jovem aluno fizesse esse comentário para
mim ( sempre a achei perfeita, reveladora na minha posição de pessoa experiente entre
jovens) até que, certa vez, uma aluna adiantou-se na resposta e disse: "ora, vê se te enxerga!
Você é que é muito recente!"
Desde então, esse adjetivo, "recente"não me sai da cabeça. Realmente, nossos alunos são recentes, até mesmo para aqueles que ainda são jovens! Como então compreendê-los na
frescura de suas almas? Como chegar ao âmago de suas necessidades? Como entender que
têm anseios diferentes dos nossos, para atender a um mundo tão transformado, tão livre e
tão coercitivo, tão moderno mas com teorias tão líquidas? Como conceber que até há bem
pouco tempo atrás - quando iniciaram suas vidas escolares - ainda nos tinham como
referência e modelo? Quando foi que fomos destituídos de uma autoridade que a nós foi
imputada por seus próprios pais, mães, avôs, avós?
Como, onde, quando, por que perdemos essa autoridade? Será nos dado o direito de
recuperá-la?
Penso que não. Não podemos recuperar algo que nunca foi nosso. Ofereceram a nós um poder temporário necessário - e isso pode justificar o brilho nos olhos das crianças pequenas que frequentam a escola - mas precisamos transformá-lo. Como? Penso que tendo a mente
aberta, valorizando a criatividade, sabendo ouvir queixas e pedidos isentos de preconceitos,
mas sem deixar de assumir nosso próprio papel - não de iguais, não de amigos, mas de
detentores de um conhecimento solidário; não de velhos, nem de "recentes"; mas,
sobretudo de personalidades atentas às demandas, às deficiências, às habilidades e às
múltiplas inteligências; à mudança.
É na escola - e talvez este seja o único lugar em que ainda isso seja possível - que o
conhecimento poderoso e despretensioso pode circular democraticamente; posto que quem
o viabiliza é o professor, para quem - ao contrário do cientista - nenhuma teoria (nesse caso
sobre o seu objeto de estudo, o aluno) se postula em definitivo; a não ser a teoria de que
não há teoria alguma. É ele quem assume uma postura investigativa e parceira, capaz de
transformar o conhecimento em algo significativo, poderoso; mesmo que para isso tenha
que se destituir da própria (e frágil) autoridade. É ele quem reflete a interdisciplinaridade
nos corredores e nos cafés; posto que ainda nos falta uma cultura com valores e vontades
interdisciplinares, redimensionando seu conhecimento.
Não digo que isso seja fácil; tampouco óbvio, francamente compreensível. Ao contrário.
Acrescente a tudo isso o fato de que também nós, professores, não raramente nos
apartamos num "tempo e lugar"distantes - literalmente vivendo um saudosismo próprio dos
velhos; como se jamais tivéssemos sido "recentes" ou "jovens".

VELHOS, JOVENS E RECENTES
Como alunos, éramos certamente um desafio aos nossos professores. Quem não se lembra
daquela diretora, coordenadora ou professora pequenininha, cujos saltos ecoavam no
corredor como trombetas anunciando que o inferno estava por vir... Que atire a primeira
pedra aquele que nunca colou ou viu alguém colando, nunca provocou ou presenciou uma
provocação maldosa a um colega, nunca copiou uma lição ou deixou que alguém a copiasse,
nunca foi pego colando (ou quase); quiçá passando cola? Escrúpulo, onde?
Impossível esquecer das provocações e risinhos cúmplices dados pelas costas daquela
professora, já uma anciã muito antes de eu pensar em me sentar nos bancos de sua sala... E
o que dizer da grande lenda que seguia firme de que nos cabelos espessos de Dona Marta
tinha de tudo - de clipes à "cheetos"? Maldade, quanta maldade!
Isso sem falar no enorme grupo de sala, dos grandes amigos. Tão heterogêneos quanto
efêmeros: dele faziam parte o garoto mais popular da turma, para quem todas as meninas
jamais negavam sorrisos, o enigmático menino, cuja família nunca vinha às reuniões, embora
estivesse sempre ameaçado de repetir de ano mais uma vez... As garotas com seus papéis de
carta que sempre me pareciam caríssimos, a garota de fisiologia farta e generosa para a
idade e sua demasiada espontaneidade com os rapazes... O piadista, o retraído, o distraído,
o fumante, o eterno suspeito, o relapso, o inconveniente, o espertinho, o abandonado (pela
mãe ou pelo pai), o criado pela avó... O que apanhava se não tirasse a maior nota, a que
tirava sempre a maior nota e todos fingiam respeitar... Quanta diversidade! Quanto perigo à
espreita!
E, a despeito de todo zelo paterno ou materno, éramos uma turma. E nada podia impedir a menina mais inteligente da classe de jogar conversa fora com "o eterno suspeito", ou, quem sabe, com "as garotas dos papéis de carta" que comumente a rejeitavam... Ou "do retraído" sentar-se para uma conversa animada com o "inconveniente" e o "espertinho"... Tampouco não parecia impossível que, se assim o desejasse, o bom e esforçado moço que com frequência apanhava por não ter sido "o melhor da classe", risse às gargalhadas com
"a menina para quem a natureza foi tão generosa"... nada, nem ninguém os impedia, porque
assim era a vida, repleta de pequeníssimos perigos aos quais nos colocávamos
constantemente em contato, deixando-nos testar os limites, as vontades, os medos e
ansiedades.
Com certeza, a descrição que acabou de ler é bastante familiar. Tenha sessenta ou
trinta anos, deve reconhecer nela suas próprias referências, não é mesmo? Com talvez uma
diferença: aos jovens de hoje fica muito mais complicado exercitar os modelos de
personalidade; tamanho o cerceamento físico, cultural, afetivo e psicológico a que são
submetidos o tempo todo.
A unanimidade, nesse caso, fica a cargo da ideia de que, como ontem, os professores
(e também os pais) compõem um grupo uníssono e perplexo diante de nossos alunos (e filhos).
O fato é que alunos (e filhos) são, em todas as épocas, um paradoxo profundo, só explicado e
compreendido sob as lentes de um tempo e de um espaço que não são - e talvez nunca sejam
os nossos.
Diferentemente de um cientista que, em sua busca pela verdade se vale da
observação, da problematização, da formulação da hipótese e da experimentação para chegar
à teoria que desvendará o problema; para um educador o processo é muito mais complexo:
observamos nossos alunos, problematizamos suas demandas, formamos hipóteses acertadas
ou equivocadas, e com muita boa vontade experimentamos modelos e adequamos métodos.
Mas, jamais, como o cientista, somos capazes de formular uma teoria precisa sobre
eles, que perdure e sobreviva pelos tempos. Isto porque, o objeto de nosso estudo - o aluno - é
também sujeito de toda ação. É como se um cientista resolvesse estudar seu próprio coração.
Não seria possível, nesse caso, dissecá-lo para fins de mera observação; impossível
seria experimentar entupir uma artéria propositadamente só para formular uma hipótese;
posto que o coração é quem o mantém vivo e saudável.
Assim o é o aluno para o professor. Assim sempre o foi. Assim sempre o será. Um
paradoxo profundo, num ser impregnado de outro.
Mas, quem é, ou deveria ser esse professor, face à esse paradoxo? Certamente não
deve ser um cientista. Porque isso seria pouco.
Certamente não deve ter somente o espírito fraterno (ou materno). Porque ainda isso
seria pouco. Também não deveria ser moderno, ou pós-moderno, como sugerem alguns.
Porque ainda isso seria pouco.
Não deveria ser apenas um especialista, um mestre, um doutor de sua arte. Porque
isso seria pouco. Não deveria ser apenas aquele que se contenta com os limites de sua
disciplina. Porque isso seria pouco, muito pouco.
E certamente também seria muito pouco que esse professor pretendesse ser apenas e tão somente, uma autoridade. Ou que se esquecesse do falso protagonismo que vivem nossos
jovens nesses tempos de reality shows, de celulares, de chips, whatsapps, etc. Ou que se
olvidasse do cerco quase repressivo que os jovens sofrem em nome da modernidade, e
também de suas consequências; algumas vezes tão nocivas...
Um professor dessa nova era deve ser capaz de se desconstruir sem, contudo, destituir o valor de seu conhecimento. Deve ser tão paradoxal quanto o paradoxo que quer
compreender: valorizar o conhecimento - sem ser pretensioso; fazer-se invejado toda vez
toda vez que discursar uma teoria, resolver um teorema, analisar um livro ou um fato
histórico - sem desdenhar quem o escuta; ser criativo e até lunático - sem ser patético ou
provocar risos...
Certa vez, o Maestro Júlio Medaglia foi assim questionado num programa de televisão:
<maestro, o senhor, como uma pessoa da antiga geração, mais velha, poderia me dizer...>
Acho mesmo que o jovem nem conseguiu terminar a pergunta - e por isso talvez eu nem me
lembre dela com exatidão - posto que foi interrompido pelo maestro que retrucou: <garoto,
eu não sou velho. Sou jovem há mais tempo que você!> E eu teria repetido essa frase
inúmeras vezes, nesse contexto, toda vez que um jovem aluno fizesse esse comentário para
mim ( sempre a achei perfeita, reveladora na minha posição de pessoa experiente entre
jovens) até que, certa vez, uma aluna adiantou-se na resposta e disse: "ora, vê se te enxerga!
Você é que é muito recente!"
Desde então, esse adjetivo, "recente"não me sai da cabeça. Realmente, nossos alunos são recentes, até mesmo para aqueles que ainda são jovens! Como então compreendê-los na
frescura de suas almas? Como chegar ao âmago de suas necessidades? Como entender que
têm anseios diferentes dos nossos, para atender a um mundo tão transformado, tão livre e
tão coercitivo, tão moderno mas com teorias tão líquidas? Como conceber que até há bem
pouco tempo atrás - quando iniciaram suas vidas escolares - ainda nos tinham como
referência e modelo? Quando foi que fomos destituídos de uma autoridade que a nós foi
imputada por seus próprios pais, mães, avôs, avós?
Como, onde, quando, por que perdemos essa autoridade? Será nos dado o direito de
recuperá-la?
Penso que não. Não podemos recuperar algo que nunca foi nosso. Ofereceram a nós um poder temporário necessário - e isso pode justificar o brilho nos olhos das crianças pequenas que frequentam a escola - mas precisamos transformá-lo. Como? Penso que tendo a mente
aberta, valorizando a criatividade, sabendo ouvir queixas e pedidos isentos de preconceitos,
mas sem deixar de assumir nosso próprio papel - não de iguais, não de amigos, mas de
detentores de um conhecimento solidário; não de velhos, nem de "recentes"; mas,
sobretudo de personalidades atentas às demandas, às deficiências, às habilidades e às
múltiplas inteligências; à mudança.
É na escola - e talvez este seja o único lugar em que ainda isso seja possível - que o
conhecimento poderoso e despretensioso pode circular democraticamente; posto que quem
o viabiliza é o professor, para quem - ao contrário do cientista - nenhuma teoria (nesse caso
sobre o seu objeto de estudo, o aluno) se postula em definitivo; a não ser a teoria de que
não há teoria alguma. É ele quem assume uma postura investigativa e parceira, capaz de
transformar o conhecimento em algo significativo, poderoso; mesmo que para isso tenha
que se destituir da própria (e frágil) autoridade. É ele quem reflete a interdisciplinaridade
nos corredores e nos cafés; posto que ainda nos falta uma cultura com valores e vontades
interdisciplinares, redimensionando seu conhecimento.
Não digo que isso seja fácil; tampouco óbvio, francamente compreensível. Ao contrário.
Acrescente a tudo isso o fato de que também nós, professores, não raramente nos
apartamos num "tempo e lugar"distantes - literalmente vivendo um saudosismo próprio dos
velhos; como se jamais tivéssemos sido "recentes" ou "jovens".