A VAIDADE

de Romano Dazzi

 

- “Bartolomeu, além de costureiro e estilista genial,  sempre foi um bom sujeito..”

- “Um pouco pedante, talvez, mas bonzinho.”

- “Põe pedante nisso, era um chato....”.

- “Sim,, mas só porque queria tudo em ordem...”

- “E brigava quando não encontrava as coisas como queria...”

- “Na verdade, pensando bem, era teimoso...”

- “E bastante atrevido, também...”

-“ Ele sabia sempre o que queria...”

-“ Mas não cedia um milímetro...”

-“ Porém,  no fim, era um bom sujeito...”

-“ Seu maior defeito era a vaidade...”

-“ Vaidade, sim, é isso!”.

-“ Nisso todos concordamos: ele era um tremendo vaidoso...”

-“ Coitado, agora já foi, que Deus o tenha....

 

De pé, ao lado do caixão, tão pálida quanto o finado Bartolomeu, que tinha recém entrado no descanso eterno,  a alma  dele  escutava a conversa dos ex-amigos; ex, porque depois que a gente se vai, tudo vira “ex” , até o emprego, a esposa atual; as dividas, o título de eleitor, tudo vira passado remoto.  

Ouvindo-os, lamentou os comentários e ficou com raiva que não tivessem sido um pouco mais sinceros, quando deviam.

Pedante, teimoso, atrevido...o que mais diriam aqueles falsos, hipócritas, mentirosos, que tinham-se passado por amigos, a vida inteira e  agora, só agora, se revelavam mordazes e agressivos, venenosos como cobras?

 Ah, puxa! ; o chamavam de “Vaidoso” . Vaidoso, Eu? Eu? 

Parou um pouco para pensar; -“ Bem - disse  para si mesmo - isto é verdade, pelo menos em parte; Eu gosto muito ... isto é, gostava, de vestir uma roupa de corte perfeito, uma camisa de seda, uma gravata sóbria, combinando com as meias escuras. Aliás, estou muito bem, arrumadinho assim,  no caixão...

Nunca na vida vesti uma roupa de jeans, nunca calcei um tênis. Nunca ninguém me viu barbudo, desalinhado.” – e continuava: -“ mas isso é elegância, distinção; trajar uma roupa correta é privilégio de poucos; nada tem a ver com vaidade....”

Uma vozinha lá no fundo começou a reclamar; - “é vaidade, sim, é vaidade! Queria ser sempre o melhor, o mais distinto, o mais elegante...;usava o pente, a escova e o espelho mais em si mesmo que nas modelos que preparava.....”

Nisso, chegaram  dois anjos para levá-lo lá para cima.

- Bartolomeu, não é? Ótimo, venha, é por aqui! –

E lá se foram, um  de cada lado dele, puxando-o levemente para o azul,  num vôo tão suave,  que lhe parecia estar num planador...

Finalmente, chegou à porta do Céu; era tal como a imaginava, exagerada no tamanho, na imponência, no branco imaculado, nos frisos e gonzos, nas dobradiças douradas.

Sem lhe dar  tempo para nada, levaram-no  ao serviço de identificação, na ante sala.

Prá quê!  Bartolomeu  revoltou-se e começou a espernear imediatamente.

Foto minha, nestas condições, nunca!

Exijo um maquiador, um esteticista, quero que me “refaçam” o rosto, que corrijam a cor da pele – meu Deus, como estou pálido! – e as sobrancelhas; e veja em que condições está meu penteado! e as rugas, meu Deus! Rebocar, rebocar rápido!

Empacou e não teve Santo (literalmente falando) capaz de convencê-lo.

No Paraíso, ninguém usa a força; ou conseguimos convencer a pessoa, ou  aceitamos e concordamos. 

Foi requisitado um grupo de especialistas, e eles fizeram um trabalho de mestre no rosto do Bart, deixando-o novinho.

Ao mesmo tempo, alguém lhe lia uma preleção sobre vaidade e outra sobre obediência, às quais ele não prestou a mínima atenção. 

Finalmente satisfeito, ele foi fotografado por dentro e por fora, (isto é, de  corpo e  alma) e fichado.

Acrescentaram uma farta relação de tudo o que ele havia pensado, dito, escrito e feito na vida; e surpreendentemente, de tudo o que ele havia deixado de dizer e  fazer.

No julgamento do Céu, a ação é tão importante quanto a omissão.

 

O anjo plantonista entregou os papéis a Pedro, segredando-lhe:

“Caso difícil, este, Chefe; sugiro que chame o Jorge, que sabe lidar  com rebeldes...”

“ Eu me viro, Cló, obrigado. Se precisar,  chamo”

Deu uma rápida olhada nas fichas e mandou o Bart entrar.

A alma do Bartolomeu, entrou, mas  ficou parada na porta, visivelmente intimidada

“- Vaidade, ehm?-“   comentou o Pedro, suavemente.

“ – Não, excelência – respondeu Bartolomeu – absolutamente não.

“ – Então, você não é culpado de nada? Só os cuidados com a aparência, as roupas, o penteado, os sapatos , tudo prova que você é um vaidoso incorrigível...”

“ E desde quando vaidade é pecado?  Que mal fiz aos outros, que prejuízo causei, que culpa tão grave cometi? - Sua voz adquiria mais confiança enquanto ia falando - Vou lhe dizer  duas coisas, das quais o Céu se esquece, ao julgar os homens:

a primeira: o valor das palavras muda com o tempo e com o lugar; muda seu significado, seu peso, sua importância. Quando me julgar, tenha isso em conta;

a segunda:  em cada pecado há uma graduação de valores; há que se considerar com que espírito ele foi cometido. Lembre-se disso também.

a terceira :....

- “parado aí, Bart” – interrompeu-o Pedro – “eram duas coisas; esta é a terceira!...”

- “bem, não era mesmo nada de importante: só queria dizer que essa sua bata azul celeste, sandálias franciscanas e barba cinza estão chocantes, ultrapassadas,  impróprias para a solenidade deste local e precisam de substituição imediata .

Pedro, engolindo a custo  a observação do Bartolomeu, retornou:

Vou lhe  dizer duas coisas, das quais o Céu sempre se  lembra ao julgar os homens:

a primeira,: as mudanças de valores e a graduação da culpa, são de amplo conhecimento aqui em cima, e nunca deixaram de ser tomadas em conta.

a segunda: o passado dos homens é uma soma de pequenos atos, bons e menos bons; olhamos todos com atenção e carinho, porque perdoar é a nossa maior ambição; no seu passado não há nada de grave, salvo esta sua imensa  vaidade – e agora esta sua impertinência exagerada;  toleramos tudo o que não ofende nem prejudica ninguém. Portanto, você está admitido no Céu.

a terceira:....

- “parado ai, Excelência - disse Bart – “eram  duas coisas: esta é a terceira!..”

- “bem, não era mesmo nada de importante: só queria dizer que apreciaremos seu trabalho como conselheiro especial de moda....aqui no Céu!...

 “ Aceito, excelência” – declarou Bartolomeu, por nada surpreso – afinal sua vaidade permitia-lhe voar bem alto – “mas vou precisar de toda a necessária parafernália (desculpe; esta é uma palavra imprópria, nestas paragens?). ”

“ Não, não. É palavra aceita sem reservas. Concedido, Bart. Comece a sua obra!”

...............

 

Os amigos reunidos, que estavam olhando para o Bartolomeu pela última vez,  jurariam ter visto em seu rosto um leve sorriso de satisfação.

Seria a eterna, a incorrigível  Vaidade?