UTILIZAÇÃO DE MÃO DE OBRA ESCRAVA E SOCIEDADE DE CONSUMO: DA LESÃO AOS DIREITOS HUMANOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS CONSTITUCIONALMENTE TUTELADAS PELO EMPREGO DE MÃO DE OBRA EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS ÀS DE ESCRAVO[1]

José Enéas Barreto de Vilhena Frazão[2]

SUMÁRIO: Introdução; 1 Análise conceitual: sociedade de consumo e trabalho em condições análogas às de escravo; 2 Da tutela nacional e internacional do trabalho e da dignidade do obreiro; 3 Caso Alcopan: análise do caso concreto à luz dos princípios tutelares juslaboralistas, da constituição federal e demais mecanismos internacionais de coibição do trabalho escravo; Conclusão; Referencial Bibliográfico.

Resumo

O presente desenvolvimento visa analisar a utilização de mão de obra escrava, na sociedade moderna, especificamente em âmbito nacional, como prática lesiva aos direitos humanos tutelados em âmbito internacional, bem como aos direitos e garantias fundamentais resguardados pela Carta Magna de 1988. Se tentará demonstrar, de que forma a sociedade de consumo moderna, com os seus grandes anseios por uma maior e menos custosa produção, propicia a perpetuação desta realidade, na qual os trabalhadores são submetidos a condições de trabalho extremamente degradantes e, por isso, lesivas à dignidade humana. Será feita, primeiramente, uma análise conceitual, a respeito do que se entende por sociedade de consumo, e, também, por condições de trabalho análogas à escravidão, sendo este segundo conceito relacionado com o primeiro, e analisado sempre à luz do ordenamento jurídico pátrio. Em um segundo momento, será feita uma análise a respeito da tutela constitucional e internacional do trabalho, explicitando-se os dispositivos legais disponíveis para tutela do trabalho e da dignidade do trabalhador. Por fim, analisar-se-á um caso concreto, da empresa ALCOPAN – Álcool do Pantanal Ltda, atuante no estado do Mato Grosso, considerado este uma das maiores potências agrícolas do país e, desta forma, região extremamente sujeita à instalação do trabalho em condições degradantes, análogas às de escravo.

Palavras – chave

Trabalho escravo; sociedade de consumo; direitos humanos; garantias fundamentais

Introdução

                                   É temerário afirmar que o Brasil, país com um dos mais vastos acervos legais do mundo, esteja em descompasso com outros, no que diz respeito à tutela legal deste ou daquele assunto. Legisla-se sobre tudo, e a intervenção estatal é percebida em todos os setores e níveis sociais (sempre com teórica observância aos direitos humanos e garantias fundamentais). Definitivamente, não estamos desamparados legalmente, porém, o mesmo não ocorre com a aplicação prática deste vasto arsenal legal.

                                   Por ser um país de dimensões continentais, e efetividade das leis é variável, dentro do território nacional. Todo e qualquer indivíduo pode constatar esta afirmativa, sem que haja necessidade de maiores divagações científicas a este respeito (e mesmo porque, fugiria ao objeto deste trabalho). Observa-se este fenômeno em maior ou menor grau, em todos os lugares. Basta verificar um exemplo moderno, citemos, a “lei seca”, promulgada em 2008, com o objetivo de coibir o consumo de bebidas alcoólicas em todo o país, diminuindo, assim, os riscos de acidentes de trânsito, pelo ir e vir de motoristas embriagados.

                                   A efetividade dos dispositivos legais inseridos no ordenamento jurídico, com a finalidade de coibir o consumo de bebidas alcoólicas e condução de veículos automotores em seguida, depende muito do aparato estatal empregado para fazer valer estes dispositivos legais. Nos estados do sul e sudeste, por exemplo, conforme é possível verificar nos mais assistidos telejornais, são realizadas inúmeras barreiras policiais, todos os dias, nos principais pontos das grandes cidades, e nestas, sempre aparelhadas com o dispositivo eletrônico necessário – o “bafômetro”, inúmeros motoristas são surpreendidos com porcentagem etílica acima do aceitável, e por isso são multados e, em alguns casos, presos em flagrante delito. O mesmo não ocorre em estados menores e menos aparelhados da federação.

                                   Nos estados do nordeste e norte do país, por exemplo, nos quais a polícia, em geral, é menos aparelhada, e conta com menos recursos para desempenhar sua função social, a situação é completamente diversa. Nada obsta que diversos motoristas continuem trafegando completamente embriagados, colocando em risco a própria vida e a dos demais indivíduos, sem que recebam qualquer investida estatal em seu desfavor. Um caso ou outro, de forma completamente pontual, é percebido – e logo veiculado na mídia, em nítida tentativa de corroborar o velho engodo do “estamos trabalhando duro em favor da coletividade”.

 

                                   Fala-se isso para demonstrar que, efetivamente, o que se necessita não é um maior número de leis para regular todo e qualquer assunto, mas sim, uma maior e mais efetiva atuação estatal no sentido de concretizar a letra da lei, ou seja, fazer valer, no caso concreto, as suas disposições. O mesmo problema que ocorre no caso da “lei seca”, é verificado em todos os âmbitos, inclusive, na tutela do trabalho e, principalmente, das condições de dignidade do trabalhador.

                                   O objeto deste trabalho, que consiste exatamente na tutela nacional e internacional da dignidade nas relações empregador-empregado, é um dos grandes exemplos da falta de efetividade estatal em diversas regiões geográficas do país. As dimensões de um país como o nosso dificultam uma tutela estatal homogênea, em toda a sua extensão, conforme já foi dito, mas talvez, em nenhum outro caso, o problema de demonstre de forma mais explícita.

                                   Dificilmente se chegará a observar um grande contingente de trabalhadores em condições degradantes, em uma região urbana. Tal seria postura extremamente temerária e arriscada, por parte do capital, pois nestas áreas a atuação estatal e a fiscalização são mais intensas. À medida que se vai adentrando o interior do país, no entanto, chegando em áreas rurais, distantes dos grandes centros urbanos, a situação vai mudando sensivelmente.

                                   Ainda se pode verificar a existência de grandes latifúndios, destinados à produção de gêneros agrícolas, empregando a mão de obra em condições análogas às de escravo. Trabalhadores maltrapilhos, sujos, laborando sem os necessários equipamentos de proteção individual – EPI´S, mal alimentados e o pior – sem receber a remuneração mínima devida, são figuras comuns neste cenário de degradação da pessoa humana. Não é difícil encontrar relatos, em quaisquer fontes informativas (revistas, internet, telejornais), de trabalhadores que chegaram a falecer, por terem sido submetidos a abusos que drenaram as suas energias por completo.

                                   O combate a tais situações é deveras dificultoso. Para começar, o próprio acesso a tais localidades, que geralmente se dá por meio de estradas vicinais (onde veículos comuns não trafegam, por serem trechos repletos de barro e lama), já é um fator que desencoraja quaisquer procedimentos de fiscalização, ou, ao menos, os torna ainda mais custosos e demanda maior planejamento. Afora estas questões práticas, ainda deparamo-nos com dificuldades de origem, inclusive, histórica, pois, conforme sabemos, não é de hoje que a mão de obra é explorada além dos limites da razoabilidade, em nosso país.

                                   Na gênese desta nação, período colonial e imperial, este foi um país que sustentou-se, basicamente, no trabalho escravo. O ombro negro carregou o fardo pesado, e edificou este país em seus primórdios, primeiramente, na exploração do pau-brasil (onde, de uma forma ou de outra, também explorou-se mão de obra indígena – seja por uso de violência ou em troca de presentes – apetrechos como espelhos e facas), e, em um segundo momento, na monocultura da cana de açúcar e do café, na qual foi empregada, basicamente, a mão de obra escrava.

                                   Todas estas dificuldades, práticas, e até de caráter histórico, contribuem para a ineficácia estatal na tutela da dignidade humana nas relações de trabalho, fora dos grandes centros, em especial em zonas rurais, onde a mão de obra em condições semelhantes à escravidão do passado, ainda é empregada.

                                   Esta situação perdura, entre os fatores já apontados, também pela perpetuação da cultura de consumo exacerbado que se verifica na sociedade moderna, por este motivo, também entendida como “sociedade de consumo”. O indivíduo está instruído a consumir o quanto puder, tal como um animal adestrado. As influências são inúmeras, e partem de todos os lados. Não basta ter um celular hi-tech, aparelho de congrega todas as funções que, há pouco tempo, eram realizadas com mais de 10 (dez) dispositivos eletrônicos diferentes, se, dentro de pouco tempo, o mesmo estará obsoleto, pois outro ligeiramente mais desenvolvido será colocado no mercado. Diante desta situação, a mídia e a sociedade impelem o indivíduo a consumir – se não o fizer, será praticamente “rejeitado” pelos grupos que já fazem uso da nova tecnologia.

                                   É de se notar que, muitos dos novos dispositivos eletrônicos (especialmente no caso das telecomunicações), não apresentam retrocompatibilidade, ou seja, não apresentam conectividade com dispositivos anteriores, especialmente no que diz respeito a alguns softwares mais populares entre os usuários do aparelho. Isso significa que, se o usuário negar-se a adquirir um novo bem de consumo, como um celular, logo estará impossibilitado de usar plenamente o referido aparelho, pois todos os outros indivíduos já serão usuários da nova tecnologia, que exclui as anteriores.

                                   Para fechar o ciclo argumentativo exposto até o momento, é necessário lograr uma visão “macro” a respeito do assunto. Precisa-se responder à pergunta fundamental; De que forma a sociedade de consumo moderna influencia a existência de “bolsões” de mão de obra em condições degradantes, semelhantes às de escravo? De que forma o anseio popular pelo consumo de bens ordinários, sejam eles celulares, bolsas, sapatos, televisores, ou quaisquer outros, tem influência na situação que atinge milhares de trabalhadores, ainda hoje?

                                   Ora, basta entender a cadeia de produção e consumo como um organismo, totalmente interligado. O trabalhador que se encontra no interior do país, laborando em condições degradantes de higiene e alimentação, completamente desprovido de equipamentos de proteção contra o sol que queima sua pele e lhe causará complicações futuras, este indivíduo trabalha, em muitos casos, na lavoura da cana de açúcar para produção de álcool combustível, e, conforme se sabe, grande parte do sistema de transporte de mercadorias no país é feito por meio rodoviário. É o combustível que ele ajuda a produzir que possibilitará que o seu novo celular chegue até você, depois das linhas de produção, e mesmo que você efetivamente não necessite substituir o seu aparelho antigo.

                                   A cruel realidade da sociedade de consumo desmedido, que possibilita aberrações nas relações de trabalho, ainda nos dias atuais, gerando lesões à dignidade humana, em afronta direta à tutela legal nacional e internacional das relações de trabalho, é o objeto deste desenvolvimento. Delimitado este, com as linhas necessárias a uma efetiva abordagem geral da temática, procede-se a uma análise conceitual, sem a qual não se poderá lograr perfeito entendimento a respeito do tema pretendido.

1          Análise conceitual: sociedade de consumo e trabalho em condições análogas às de escravo

                                   Feitas as considerações introdutórias, procede-se à uma análise conceitual de alguns aspectos essenciais do trabalho realizado. A abordagem científica compromissada não pode abster-se de aparelhar-se com um substrato teórico robusto, motivo pelo qual justifica-se inteiramente o presente capítulo.

                                   A “sociedade de consumo”, como conceito que merece registro no presente trabalho, já foi analisada em linhas gerais no tópico anterior. É um termo utilizado para designar a sociedade que já se encontra em avançado estágio de produção industrial e do capitalismo, caracterizada, principalmente, por uma massificada demanda por bens e serviços, possibilitada pela enorme produção. Em outras palavras, é aquela na qual verifica-se um elevado consumo, possibilitado (e fortemente estimulado) pela produção em massa, com emprego de grande quantidade de mão de obra e matéria prima. A mão de obra, em geral, deve ser sempre a mais barata possível, para maximização dos lucros, o que gera maiores riscos de inobservância aos direitos e garantias fundamentais.

                                   A sociedade de consumo está pautada na economia de mercado, regulada pela lei da oferta e da procura, onde, geralmente, a oferta supera a procura, dada a produção em massa dos bens. A manipulação midiática das massas visa exatamente reverter o referido quadro, aumentando a procura, incentivando o consumo irresponsável, desnecessário, por meio da aquisição de bens que são, no mais das vezes, supérfluos. É a principal característica do consumo de massa; Os indivíduos consomem o que está na moda, como forma de integração social.

                                   O consumo, então, acaba aumentando, por meio dos apelos das mídias de comunicação, incentivando o que se conhece como o fenômeno (patológico, porque não dizer? Chega a gerar anomalias comportamentais em alguns indivíduos!) do “consumismo”, que por sua vez, gera uma maior onda de endividamentos, dentre outros inúmeros problemas sociais.

                                   Outro conceito que merece atenção é aquele de “trabalho em condições análogas às de escravo”. Este conceito merece ser analisado à luz do ordenamento jurídico pátrio, que, em alguns dispositivos legais, regula a matéria. O primeiro diploma legal que merece atenção é exatamente o Código Penal Brasileiro, pois é o dispositivo que efetivamente conceitua o que seria “condição análoga à de escravo”. Assim, veja-se o dispositivo legal em comento:

Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: (Redação dada pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)

Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. (Redação dada pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)

§ 1o Nas mesmas penas incorre quem: (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)

I - cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003) (destacou-se).

                                   Conforme é possível perceber, a redução de trabalhador à condição análoga à de escravo é crime, tipificado no Código Penal Brasileiro, e sujeita a pena restritiva de liberdade que pode chegar a 08 (oito) anos, a depender do entendimento do magistrado e das circunstâncias do caso concreto, obviamente. O referido dispositivo legal é interessante pois, além de criminalizar a conduta indesejável, ainda delimita o conceito que se visa analisar.

                                   Conforme ensina Fernando Capez, em anotações sobre os dispositivos do Código Penal Brasileiro, a “ação nuclear”, caracterizadora do crime previsto no dispositivo legal retrocitado, é aquela que:

“consiste na submissão total do sujeito passivo ao poder de outrem, suprimindo o seu status libertatis. A Lei n. 10.803/2003 procurou elencar os modos pelos quais a redução a condição análoga à de escravo pode dar-se: mediante submissão a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, mediante sujeição a condições degradantes de trabalho, mediante restrição, por qualquer meio, de sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”[3]

                                   Trabalho escravo, então, é aquele forçado, ou seja, ao qual o trabalhador se submete por imposição, motivo alheio à sua vontade, sendo coagido fisicamente ou moralmente para o desempenho do mister. Ainda, é aquele que submete o trabalhador a condições degradantes, seja pela falta de equipamentos de proteção, pelo não recebimento de salários ou por quaisquer outros motivos que reduzam a dignidade do trabalhador. Ainda, o trabalho escravo é caracterizado pelo emprego de meios que impossibilitem ao obreiro deixar o ambiente de trabalho. Uma forma muito comum, é a aquisição de dívidas, pelo trabalhador, face ao patrão, sendo que este somente poderá deixar o local de trabalho após quitá-las, o que dificilmente ocorre.

                                   Analisados estes conceitos, procede-se à análise da tutela legal da dignidade nas relações de trabalho, seja em âmbito constitucional, ou em sede de tratados e convenções internacionais.

2          Da tutela nacional e internacional do trabalho e da dignidade do obreiro

                                   O presente tópico tem por finalidade apontar, na seara constitucional e, também em âmbito internacional, os mecanismos de proteção da dignidade humana e, principalmente, da dignidade laboral. Não será viável um aprofundamento demasiado, em cada um dos dispositivos constitucionais e pactos internacionais mencionados, pois tal extrapolaria as finalidades às quais se presta o presente desenvolvimento. O que se visa, neste momento, é somente identificar o arsenal normativo tutelar da dignidade do trabalhador, passando-se, então, à análise no âmbito nacional, primeiramente.

 

                                   Neste primeiro ponto de análise, tomando por base a Carta Magna de 1988, tem-se que um dos fundamentos da República Federativa do Brasil é a dignidade da pessoa humana, conforme infere-se do art. 1º, III, e um dos seus objetivos fundamentais é a construção de uma sociedade solidária, justa e livre. O Brasil rege-se, em suas relações internacionais, pelo supremo princípio da supremacia dos direitos humanos (art. 4º, II). Estes são os principais fundamentos constitucionais para a tutela da liberdade no trabalho e, ceifada esta, se estará diante, provavelmente, do crime de redução de indivíduo à condição análoga à de escravo, conforme tratado no tópico anterior.

                                   Há ainda outros fundamentos constitucionais de igual importância, como aquele previsto no art. 5°, II da Constituição Federal, segundo o qual ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei. O inciso imediatamente seguinte, seguindo a mesma esteira, determina que ninguém será submetido a tortura ou a tratamento desumano e degradante, conforme ocorre no caso das relações de trabalho eivadas do vício que se tem tratado. Por fim,tem-se os arts. 6° e 7°, também da Constituição Federal, que preveem os direitos sociais dos trabalhadores urbanos e rurais, visando garantir-lhes a dignidade da pessoa humana.

                                               Mencionados estes dispositivos, é necessário frisar que, dada a natureza de “macroprincípio” da dignidade da pessoa humana, não só os demais dispositivos constitucionais, mais todo o ordenamento jurídico infraconstitucional deverá ser analisado e interpretado de acordo com este mandamento fundamental. Neste ponto, verifica-se o fenômeno da constitucionalização do direito, que consiste, em linhas gerais, permeação de todo o ordenamento jurídico pelos valores fundamentais constitucionalmente tutelados.

                                   Peter Härberle, em sua obra intitulada “Hermenêutica Constitucional – A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição”, afirma que todo indivíduo que vive em um contexto social regulado por determinada norma, de forma direta ou indireta, é um intérprete desta norma[4]. Apesar de louvável o esforço para democratizar a hermenêutica constitucional, nenhuma interpretação será legítima, caso desfavoreça-se o mandamento basilar da preservação da dignidade humana. É de se dizer, toda norma presente no ordenamento jurídico deve ser encarada sob o prisma da dignidade da pessoa humana[5].

                                   Na seara internacional, a proteção da dignidade humana, no âmbito das relações laborais, também é ampla. Destaca-se a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, promulgada no Brasil pelo Decreto nº 678/92, que, em seu art. 6°, prevê que “ninguém pode ser submetido à escravidão ou à servidão, e tanto estas quanto o tráfico de escravos e o tráfico de mulheres são proibidos de todas as formas”. Há ainda a convenio suplementar sobre a abolição da escravidão, do tráfico de escravos e das instituições e práticas análogas à escravidão, de 1956, à qual o Brasil aderiu somente em 1966. Cita-se, ainda, a Convenção sobre a Abolição do Trabalho Forçado, de 1957, que figura entre outros diversos tratados e convenções que regulam a matéria.

                                   Em poucas palavras, seja em âmbito nacional, ou internacional, a tutela da dignidade humana no ambiente de trabalho, nas relações trabalhistas em geral, já se encontra em estado avançado. Não faltam disposições constitucionais ou esforços internacionais no sentido de reconhecer direitos, mas falta, isso sim (e retomando o que se falava no início deste trabalho), um maior esforço, em algumas regiões, para fazer valer, efetivar esses direitos da dignidade.

                                   Mas nem só de disposições constitucionais e tratados e convenções internacionais pode-se lançar mão para compreender a tutela da dignidade humana no âmbito laboral. Um dos maiores fundamentos – senão o maior deles, para enrijecer a tutela da dignidade do trabalhador é, certamente, o princípio[6] da isonomia (ou igualdade), que, no caso em tela, celebra a igualdade entre todos os homens – sejam eles detentores da força de trabalho, ou do capital.

                                   Fala-se de uma isonomia material, e não meramente formal, consistindo esta primeira em um reconhecimento das desigualdades existentes entre o capital e o trabalho, e propiciando a adoção de medidas positivas para suprimir as desigualdades entre as duas classes, quase sempre conflitantes. O reconhecimento da existência de diferenças entre os indivíduos implica na atribuição de um tratamento diferenciado entre estes, mas não no sentido de ampliar estas diferenças, naquilo que forem lesivas à“dignidade do homem”, mas sim no sentido de reduzi-las ou mesmo eliminá-las, por meio desta tutela jurídica diferenciada.

                                   Ada Pellegrini Grinover, ao tratar do princípio da isonomia, e da transição da isonomia meramente formal para a isonomia material, ensina que:

A absoluta igualdade jurídica não pode, contudo eliminar a desigualdade econômica, por isso, do primitivo conceito de igualdade, formal e negativa (a lei não deve estabelecer qualquer diferença entre os indivíduos), clamou-se pela passagem à igualdade substancial. E hoje, na conceituação positiva de isonomia (iguais oportunidades para todos, a serem propiciadas pelo estado), realça-se o conceito realista, que pugna pela igualdade proporcional, a qual significa, em síntese, tratamento igual aos substancialmente iguais[7].

                                   Peter Singer, em obra intitulada “Libertação Animal”, trata do princípio da isonomia ou igualdade, em inteiro capítulo dedicado ao tema. Em pese o interesse do autor em ampliar o “direito à igualdade” aos animais não humanos (assunto este, que foge completamente à temática do presente, e, por isso, será evitado), este trata de forma bastante satisfatória o referido princípio, afirmando (aqui, em linhas gerais), que um tratamento absolutamente igual deve ser atribuído a dois “seres” absolutamente iguais ou de grande semelhança, enquanto o tratamento desigual se justifica, por sua vez, entre dois “seres” que apresentem diferenças, exatamente na medida em que estas se manifestem. Isto nada mais é que a igualdade material, da qual falava-se nos parágrafos anteriores. Merece transcrição um trecho da mencionada obra:

As mulheres têm o direito de votar, por exemplo, porque são tão capazes de tomar decisões racionais acerca do futuro como os homens; por outro lado, os cães são incapazes de compreender o significado do voto, portanto não podem ter direito a votar. Há muitos outros aspectos óbvios em que os homens e as mulheres se assemelham muito, enquanto humanos, e os animais diferem consideravelmente. Portanto, poderia dizer-se que os homens e as mulheres são seres similares e deverão ter direitos similares, ao passo que os humanos e os não humanos são diferentes e não deverão ter direitos iguais. O raciocínio que subjaz a esta resposta à analogia de Taylor encontra-se correto até certo ponto, mas não vai suficientemente longe. Há importantes diferenças óbvias entre os humanos e os outros animais, e estas diferenças devem traduzir-se em algumas diferenças nos direitos que cada um tem[8].

                                   Aplicado, portanto, o princípio da isonomia material na relações de trabalho, significa vislumbrar uma configuração diferenciada entre os direitos do capital e da classe obreira, beneficiando-se, por óbvio, esta última, com medidas positivas, que impliquem em uma diminuição das desigualdades materiais existentes. Nesta medida, também se vislumbraria um combate às situações de inobservância aos direitos humanos, nas relações laborais, que certamente vitimam os trabalhadores, e não os patrões, via de regra. Paulo Bonavides, com simplicidade, faz afirmação muito acertada, de que “o princípio da isonomia é fundamental à sociedade para a realização da justiça”[9].

                                   Terminada esta análise da tutela legal da dignidade humana, e já feita uma análise anterior, de como verifica-se uma inobservâncias dos direitos humanos, nas relações de trabalho, propiciadas, em grande medida, pela sociedade moderna de consumo exagerado (conforme já foi tratado na gênese deste desenvolvimento), que prioriza a produção a baixo custo, e estimula a demanda por meio da mídia, tudo em detrimento das condições de trabalhos dignas (que aumentam custos), procede-se à análise do caso concreto relativo à empresa ALCOPAN – Álcool do Pantanal Ltda, onde foram encontrados diversos trabalhadores em situação análoga à escravidão.

3 Caso Alcopan: análise do caso concreto à luz dos princípios tutelares juslaboralistas, da constituição federal e demais mecanismos internacionais de coibição do trabalho escravo

                                   O caso concreto que passa a ser relatado diz respeito a inúmeras denúncias que dão conta de que a empresa ALCOPAN – Álcool do Pantanal Ltda., atuante na produção de álcool combustível, por meio do plantio e colheita de cana-de-açúcar e outras etapas produtivas, vinha mantendo trabalhadores em condições degradantes, exatamente nos moldes do art. 149 do Código Penal Brasileiro. Os problemas remetem a 2006, mas até o ano de 2012, ainda registrava-se denúncias de que a referida empresavinha incidindo nas mesmas práticas. Inúmeras notícias foram veiculadas, seja por meio de revistas ou telejornais, ou mesmo por meio da rede mundial de computadores, que atualmente é o meio mais eficiente de circulação de informações, dada a sua praticidade e rapidez, em que pese a menor confiabilidade dos dados acessados.

                                   Todo o pesadelo dos obreiros tinha início com a promessa de um trabalho digno. Lhes era prometido um salário base de cerca de R$ 600,00 (seiscentos reais, o que, na época, superava o mínimo legal), além de adicionais por produtividade, sendo que a informação que lhes era passada, era que muitos empregados chegavam a ganhar R$ 1.000,00 (mil reais por mês). Obviamente, tratava-se de um engodo, pois, quando chegavam ao local de trabalho, o que se concretizava era uma remuneração que não ultrapassava os R$ 0,10 (dez centavos) por metro quadrado de cana de açúcar cortada, além do que, lhes eram cobrados aluguéis pelo uso dos equipamentos de proteção, além de relevante quantia pela alimentação que era fornecida. Muitos se recusavam a trabalhar nestas condições, mas a falta de dinheiro os impedia de retornar para casa.

                                   Por mais de uma vez, fiscais do Ministério Público do Trabalho, acompanhados de policiais armados, repórteres e cinegrafistas que registravam a abordagem, depararam-se com trabalhadores cansados, sujos e famintos, atuando na colheita da cana-de-açúcar. Mesmo após inúmeras notificações e processos judiciais, a empresa continua aliciando trabalhadores, especialmente da região nordeste do país, para movimentar a usina que produzia, à época dos fatos, cerca de 20 (vinte) milhões de litros de álcool combustível por ano.

                                   Recentemente, a empresa teve a sua falência decretada, pelo acúmulo de dívidas vultosas, situação agravada pelo descaso com o qual tratava os empregados contratados, o que lhes gerou, inclusive, inúmeras dívidas trabalhistas.

                                   O álcool combustível é uma das fontes de energia que mantém a “roda viva” da sociedade de consumo. Os bens de consumo, de forma ou outra, necessitam chegar até os consumidores e, conforme falado outrora, grande parte do transporte de mercadorias no país ainda é feito por meio rodoviário, em que pese a sua comprovada ineficiência, em face a outros meios, como o ferroviário.

                                   Ocorre que, a sociedade, de forma geral, na qual impera o individualismo e a falta de consciência pelo consumo responsável, pouco se importa com as condições nas quais se encontram a força de trabalho empregada na produção deste ou daquele bem. O que importa é consumir, ser proprietário do que se poderia chamar do “estado-da-arte” de bugigangas tecnológicas muitas vezes inúteis e desnecessárias. Se o consumidor bitolado adquire um tênis de uma determinada marca, fabricado na china, com mão de obra baratíssima e pouco valorizada, satisfazendo-se com o bem adquirido, certamente não lembrará da mão de obra que impregnou o seu suor nos tecidos que compõem aquele objeto. Infelizmente, é a consciência coletiva que se percebe predominar, com exceção de poucos, com grau de instrução pouco mais elevado e compreensão mais ampla da realidade

                                   O acesso à informação de qualidade, ainda hoje, é um luxo para poucos. Por isso, não se pode atribuir a culpa pela situação descrita tão somente ao consumidor. Faltam programas (de iniciativa estatal) de educação para o consumo responsável, para que se possa gerar nas massas uma consciência mais apurada a respeito de suas próprias necessidades. Estes programas de educação necessitariam ser transmitidos por meio de mídias populares, já que estas, normalmente, só contribuem com o consumo desmedido.

                                   A situação relatada era lesiva não somente aos direitos e garantias fundamentais consagrados na Constituição Federal, como também inobservava diversas disposições de tratados internacionais de direitos humanos. Estes já foram objeto de análise, tendo sido apontados em tópico anterior, motivo pelo qual não precisam ser retomados neste.

                                   O relato da situação vivida pelos trabalhadores da Alcopan serve para verificar-se, primeiramente, que o trabalho escravo ainda é uma realidade nacional (há diversos outros casos similares, de outras empresas que, em sua grande parte, produtoras de gêneros agrícolas, fazem uso do trabalho em condições semelhantes à de escravo). Serve, ainda, para demonstrar, em caso prático, a lesão causada à dignidade humana, tudo para fazer funcionar uma sociedade onde o consumo está acima do próprio indivíduo, enquanto prioridade.

                                   A escravidão contemporânea, em sua grande parte, é produto da globalização econômica, e nas regiões do país onde a agricultura é a principal atividade econômica, e está inserida de forma substancial em uma economia de mercado, visando competitividade em níveis nacionais e internacionais, o trabalho escravo tende a se manifestar de forma mais explícita. Conforme ensina Jairo Lins de Albuquerque, trata-se de uma mazela do nosso modelo de desenvolvimento adotado[10].

                                   Não se nega a ação estatal no sentido de coibir estas práticas, mas estas ainda são insuficientes, pois não possuem, em geral, eficácia preventiva, mas tão somente repressiva, quando o direito já foi lesado. Note-se que, uma lesão à dignidade, deixa marcas no “ser” que são difíceis de apagar, não importando as represálias sofridas por aquele que ocasionou a lesão.

Conclusão

                                   O presente desenvolvimento teve o intento de relacionar a “cultura do consumo” com as lesões causadas aos princípios da dignidade da pessoa humana e da isonomia aplicada às relações trabalhistas, por propiciar o surgimento de aberrações sociais, como é o caso do trabalho escravo, ainda nos presentes dias.

                                   Acredita-se que restou demonstrado, apesar das limitações impostas pela própria natureza do trabalho pretendido (o que acarretou, inclusive, uma pequena superação dos limites impostos pela irretocável orientação acadêmica fornecida), que o trabalho escravo na sociedade moderna possui íntima ligação com o consumo irresponsável, pois o mercado em si representa um todo, completamente interligado. Quanto maior a produção, para atender os anseios sociais, maiores as necessidades de matéria prima e de combustíveis que alimentam esse sistema, e é nesses campos que constituem a “base” de toda economia, que normalmente verifica-se a mão de obra menos qualificada e mais explorada, até os limites da escravidão.

                                   Somente uma mudança de paradigma, de um consumo sem medidas, para um consumo responsável, poderá contribuir para a extinção desta modalidade de exploração de mão de obra que, inequivocamente, rasga os direitos fundamentais tutelados na Lei Maior, além de causar prejuízos sociais de toda sorte.

Referencial Bibliográfico

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direto Constitucional. 7ª ed. São Paulo: Malheiros editores, 1997.

CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 6. ed. Lisboa: Almedina, 2002.

CAPEZ. Fernando. PRADO. Stela. Código Penal Comentado. 3ª Ed. São Paulo. Saraiva. 2012.

CINTRA. Antônio Carlos de Araújo. GRINOVER. Ada Pellegrini. DINAMARCO. Teoria Geral do Processo. 24ª Ed. São Paulo. Malheiros Editores. 2008.

GAGLIANO. Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO. Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. Volume I: Parte Geral. 10ª Ed. São Paulo. Saraiva. 2008.

HÄRBERLE. Peter. Hermenêutica Constitucional – a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da constituição. Tradução Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre. Safe. 1997.

ALBUQUERQUE. Jairo Lins de.Trabalho Escravo no Brasil. São Paulo. LTr. 2001.

SINGER. Peter. Libertação Animal (Animal Liberation). Edição original de 1975.Lugano Editora. Porto Alegre. 2004.



[1] Trabalho apresentado pelo aluno José Enéas Barreto de Vilhena Frazão à disciplina “Direitos Humanos e relações sociais na sociedade de consumo”, parte da grade curricular da especialização em Direito do Consumidor do Centro Universitário Maranhense – CEUMA.

[2]Assessor no Ministério Público do Estado do Maranhão. Advogado, aprovado no VI Exame de Ordem Unificado da OAB. Bacharel em Direito, graduado na Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB.

[3] CAPEZ. Fernando. PRADO. Stela. Código Penal Comentado. 3ª Ed. São Paulo. Saraiva. 2012. p. 327.

[4]HÄRBERLE. Peter. Hermenêutica Constitucional – a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da constituição. Tradução Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre. Safe. 1997.

[5] Não se justifica, por exemplo, sob a alegação de gozo do direito à liberdade de expressão,  resguardado no art. 5°, IX, da Constituição Federal de 1988, fazer declarações públicas de caráter homofóbico ou racista.

[6]Cabe aqui, uma breve nota a respeito do próprio conceito de “princípio jurídico”. Segundo Pablo StolzeGagliano, princípios gerais “são postulados que procuram fundamentar todo o sistema jurídico, não tendo, necessariamente, uma correspondência positivada equivalente”. GAGLIANO. Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO. Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. Volume I: Parte Geral. 10ª Ed. São Paulo. Saraiva. 2008. p. 21. Neste mesmo sentido, ensina Celso Antônio Bandeira de Melo, para quem princípio jurídico é o “mandamento nuclear de um sistema” “disposição fundamental” ou “alicerce” de todo o ordenamento. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. Por fim, Canotilho considera que, ao contrário das normas jurídicas, que são impositivas (um “tudo ou nada”), os princípios são compatíveis com diversos graus de concretização, de acordo com os condicionamentos fáticos e jurídicos. CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 6. ed. Lisboa: Almedina, 2002.

[7] CINTRA. Antônio Carlos de Araújo. GRINOVER. Ada Pellegrini. DINAMARCO. Teoria Geral do Processo. 24ª Ed. São Paulo. Malheiros Editores. 2008. p.60.

[8]SINGER. Peter. Libertação Animal (Animal Liberation). Lugano Editora. Porto Alegre. 2004. Edição original de 1975. p. 19.

[9] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direto Constitucional. 7ª ed. São Paulo: Malheiros editores, 1997.

[10] ALBUQUERQUE. Jairo Lins de.Trabalho Escravo no Brasil. São Paulo. LTr. 2001.