Utilização da licença poética como recurso estilístico em letras de música da MPB

Gilson Sousa Silva

RESUMO

A criatividade dos artistas brasileiros que lidam com a produção de letras musicais, principalmente quando empregam o recurso da licença poética, é alvo desta atividade acadêmica que busca na Estilística literária a explicação lógica para os possíveis desvios na utilização da língua portuguesa. Aliado a isso, destaca-se a tolerância desta língua para casos em que a falta de manutenção da pessoa gramatical em versos de letras de música são constantemente apontados. No entanto, assinala o trabalho, nenhum desses desvios causa prejuízo ao bom desempenho da expressividade linguística. Pelo contrário. Em muitos casos são capazes de enriquecer ainda mais o poder de comunicação empreendido pela força da música.

PALAVRAS-CHAVE

Letra. Música. Licença poética. Estilística. Linguagem.

RESUMEM

La creatividad de los artistas brasileños que lidam con la producción de letras musicales, principalmente cuando emplean el recurso de la licencia poética, es alvo de esta actividad académica que busca en la Estilística literaria la explicación lógica para los posibles desvíos en la utilización de la lengua portuguesa. Aliado a eso, se destaca la tolerancia de esta lengua para casos en que la falta de mantenimiento de la persona gramatical en versos de letras de música son constantemente apuntados. Sin embargo, señala el trabajo, ninguno de esos desvíos causa perjuicio al buen desempeño de la expressividade lingüística. Por el contrario. En muchos casos son capaces de enriquecer aún más el poder de comunicación emprendido por la fuerza de la música.

1. INTRODUÇÃO

         A riqueza cultural expressa no repertório da música popular brasileira, em todos os tempos, configura-se num material vasto a ser explorado no campo acadêmico e cientifico do mundo inteiro. Letras, melodias e diversidade rítmica são apenas alguns dos elementos que compõem esse citado universo de análises. Diante disto, este trabalho acadêmico pretende direcionar seu foco para a apreciação do uso da licença poética como recurso estilístico em letras de música da referida MPB.

         Para tanto, considera-se o fato de compreender uma determinada letra de música como peça literária. Uma produção artística que contém elementos característicos da literatura brasileira, muito próxima aos tradicionais poemas de língua portuguesa das mais variadas épocas e escolas literárias. Em ensaio produzido pela pesquisadora Cimara Valim de Melo (2001), é evidenciada a integração entre música e literatura, as quais têm muito em comum por serem manifestações artísticas infinitamente ricas. “Sua distinção se dá, principalmente, pela forma como conduzem as criações humanas: uma pelo jogo de sons, a outra pelo jogo de palavras”.

         Neste trabalho, o objetivo, a princípio, é relacionar frases e versos retirados de letras musicais variadas – de variados compositores nacionais - que se encaixam perfeitamente no que diz respeito à licença poética. Tanto na semântica quanto na ortografia, passando pela estilística, sintaxe e outros elementos da literatura e gramática, a análise buscará compreender por que o autor abre mão da linguagem “correta” para se utilizar de expressões rejeitadas pela “formalidade” da língua.

         É importante lembrar que de forma natural as letras de música e os poemas estão impregnados de metáforas. Algumas de muito bom gosto, outras nem tanto. E é justamente neste ponto que buscamos conceituar o que chamamos de ‘licença poética’ para que possam ser esclarecidas muitas questões. Segundo o dicionário, essa licença representa uma “liberdade que toma o poeta, algumas vezes, de transgredir as normas da poética ou da gramática”.

         Isso significa dizer que a licença poética concede certa liberdade ao artista para que ele possa expressar toda a sua criatividade, sem estar preso às regras gramaticais ou métricas. “O artista pode manipular as palavras para obter vários resultados intencionalmente: semântico, ideológico, técnico” (GOMES, 2008).

         No entanto, para o crítico literário Luka Magalhães (2008), essas observações devem estar sempre claras ao escritor/compositor, para não cometerem certos erros sob a justificativa de se estar usando a licença poética como escudo da ignorância às normas cultas da linguagem. “Só temos a licença poética quando escrevemos algo e sabemos o porquê de termos escrito de tal maneira”.

         Quanto ao recurso estilístico a ser abordado, diz-se que é justamente o estilo o que particulariza e eleva os compositores/poetas à condição de verdadeiros artistas da palavra. De acordo com estudo de Guilherme Ribeiro (2010), na produção artística textual é comum distribuir as figuras de estilo em três grandes categorias: Figuras de Sintaxe ou de Construção (Elipse, Zeugma, Pleonasmo, Anáfora, Anástrofe, Hipérbato, Anacoluto, Assíndeto, Silepse); Figuras de Pensamento - Interrogação (Pergunta de Retórica), Exclamação, Hipérbole, Apóstrofe, Prosopopeia (Personificação ou Animismo), Perífrase, Antítese, Oxímoro, Paradoxo, Gradação; Tropos (Comparação, Metáfora, Imagem, Alegoria, Ironia, Eufemismo, Disfemismo, Sinédoque, Metonímia).

1.1.  A ESTILÍSITCA E A INTENCIONALIDADE DO TEXTO

         Duas das três funções primordiais da linguagem (representação, expressão e apelo), de acordo com estudos do alemão Karl Buhler (1879 – 1963), representam a base da Estilística enquanto ciência da expressividade. Para ele, os recursos estilísticos empregados na linguagem estão centrados na expressão e no apelo, o que correspondem à sensibilidade e ao desejo ou vontade. Todavia, na prática, essas três funções se integram aos mais variados tipos de textos informativos ou literários.

         A Estilística aponta que os “erros” empregados nos textos são intencionais. No livro Oficina de texto, de Carlos Alberto Franco e Cristóvão Tezza, os autores afirmam que na escrita cada texto tem uma intenção, e justamente essa intenção determina muitos aspectos do que se escreve. “Tão importante quanto saber qual o assunto, é saber qual a nossa intenção ao escrever sobre um assunto qualquer”. (p. 155).

         Para os autores, há sempre uma série de fatores envolvidos na produção do texto, que também podem interferir no resultado final. No caso deste estudo, a busca pela rima adequada ou o encaixe da linha melódica são os fatores mais recorrentes. “Isto é, nada do que se fala e se escreve consegue escapar de suas circunstâncias, e as circunstâncias são infinitas, como infinito é o potencial da linguagem” (p. 156)

         Em letras de música, assim como nos poemas, a frequente utilização da licença poética é apontada como algo natural. Palavras ou expressões que modificam um sentido são empregadas sempre com um estilo correspondente à intencionalidade. “E, de acordo com a nossa intenção, toda a estrutura do texto se modifica: seleção do vocabulário, extensão da sentença, organização dos parágrafos, etc”. (FRANCO, TEZZA, 2010). “Por princípio, a literatura é o território da liberdade de linguagem”. (p. 162).

         Sobre o Estilo, o doutor em Letras e membro da Academia Brasileira de Letras, Domício Proença Filho (2007), aponta a existência de dois posicionamentos entre os estudiosos da língua portuguesa: aqueles que consideram o estilo como resultante de um conjunto de escolhas em relação à língua; e aqueles que entendem que se trata de um desvio em relação à norma gramatical. No nosso entendimento, os dois pontos se encaixam adequadamente na produção de letras musicais, considerando o fato de se estar produzindo uma arte para a massa.

1.2. MÚSICA E LITERATURA

         Para o poeta e compositor Tavinho Paes (2007), quando se pergunta se uma letra musical é poesia, o melhor é responder com outra pergunta: Sheakspeare fazia ou não poesia quando escrevia suas peças teatrais?

No meu humilde e obstinado posicionamento, a chamada Letra de Música é um tipo manifesto de Poesia, como aconteceu com a Poesia Concreta, a Poesia Processo e outras invenções nas quais o suspiro da Poesia respirava sadio e sensível no conteúdo factível por trás da forma. (PAES)

         Atualmente considerado uma referência nos estudos sobre a relação entre música e literatura, o professor José Miguel Wisnik afirma que “sob o domínio da tonalidade, música e literatura são artes que se procuram, como se quisessem suprir a falta de um signo total sobre o qual se deslocam num movimento sem fim”.

Entre a reposição da divisão que as afasta, e a superação desta, a música e a literatura se concebem como partes complementares ou cindidas de uma linguagem una, perseguida ou evocada pela poesia, pela prosa poética, pela ópera, pela canção. (WISNIK, 1999, pags. 166-167). Ao final dessa alquimia estrutural a música vem a ser, assim entendida, uma combinação singular de som e sentido, na qual o termo quase dispensado seria a própria língua. (WISNIK, 1999, pag. 269)

         Na história recente da música popular brasileira, há casos em que a música adapta aos seus compassos poemas que foram previamente publicados em livros. Nesse contexto, Caetano Veloso musicou Castro Alves (Navio negreiro); Raimundo Fagner musicou Cecília Meireles (Canteiros) e Florbela Espanca (Fanatismo); Renato Russo musicou Camões (Monte castelo), Luiz Gonzaga musicou Patativa do Assaré (A triste partida), Paulo Diniz musicou Carlos Drummond de Andrade (E agora, José?), além de vários outros exemplos.

         Existe também a possibilidade de a letra de música virar poema. No seu artigo sobre música e poesia, Tavinho Paes revela que em 2003, no evento PoemaShow, Luana Carvalho, filha da sambista Beth Carvalho, surpreendeu o público ao recitar um poema longo, muito bem estruturado e capaz de produzir um efeito desconsertante na audiência. “Seguiram-se outros dois: ambos de alto impacto. No terceiro, desconfiou-se que ela estava recitando letras de sambas, pois os versos de Nélson Cavaquinho repercutiram no repertório mnemônico da platéia, arrepiando pelos do braço de muita gente”.

Os anteriores tinham sido pérolas desconhecidas, coletadas na discoteca da mãe, assinados por Luís Carlos da Vila e Candeia. Sem pretensão alguma, ela inaugurou um fato que passou a ser notado nos saraus: deu à chamada Letra de Música, qualidades típicas de nobres poemas, recitando os versos daqueles sambas com outra respiração, outro ritmo e outra harmonia. (PAES, 2007)

         No livro Ao encontro da palavra cantada (2001), organizado por Cláudia Neiva de Matos, Elizabeth Travassos e Fernanda Teixeira de Medeiros, existe a afirmação de que nas últimas décadas vem acontecendo um aumento do interesse pela poética da canção, retomando-se assim uma aliança ancestral entre poesia e música.

         Fernanda Medeiros diz que texto e música podem dialogar de forma quase didática, um elucidando o outro, estabelecendo uma relação que poderia se classificar como de complementaridade explicativa. A palavra cantada é fato de comunicação estética dotada de propriedades especificas, relacionadas à interação entre poesia verbal, música e performance vocal. E por isso, a canção pertence, necessariamente, a um terreno interdisciplinar envolvendo letra e música – terreno não muito diferente do da poesia.

1.3. A METÁFORA

         Todas as análises feitas a partir do objeto de estudo deste trabalho acadêmico apontam que é praticamente inevitável a presença da metáfora nas composições musicais. Até porque, trata-se de uma figura de estilo que consiste na comparação de dois termos sem o uso de um conectivo. E isso é resultado da imaginação e da subjetividade de quem cria a metáfora, figura tão presente nos versos das letras de música enquanto objeto da literatura.

“É claro que os versos remetem a uma realidade dos homens e do mundo, mas para além da realidade imediatamente perceptível e traduzida no discurso comum das pessoas. É o que acontece com essa modalidade de linguagem, a linguagem da literatura, tanto na prosa como nas manifestações em verso”. (PROENÇA FILHO, p. 7)

         Para ilustrar esse contexto, o compositor baiano Gilberto Gil mergulhou no universo da criação literária, em forma de letra musical, e produziu a canção Metáfora, gravada em 1999 no disco Gil Luminoso:

Uma lata existe para conter algo
Mas quando o poeta diz: "Lata"
Pode estar querendo dizer o incontível.

Uma meta existe para ser um alvo
Mas quando o poeta diz: "Meta"
Pode estar querendo dizer o inatingível.

Por isso, não se meta a exigir do poeta
Que determine o conteúdo em sua lata
Na lata do poeta tudonada cabe
Pois ao poeta cabe fazer
Com que na lata venha caber
O incabível

Deixe a meta do poeta, não discuta
Deixe a sua meta fora da disputa
Meta dentro e fora, lata absoluta
Deixe-a simplesmente metáfora.

         Toda essa conceituação foi intencionalmente construída para aproximar ainda mais a arte literária da música. De acordo com o próprio Gilberto Gil (2009), “queria falar da independência do poeta; do fato de a poesia e a arte em geral pertencerem ao mundo da indeterminação, da incerteza, da imprevisibilidade, da liberdade, do paradoxo”.

         E independentemente da força semântica apresentada na música, alcançando o universo das figuras de linguagem e reforçando a utilização da licença poética enquanto recurso estilístico neste tipo de criação, a obra Metáfora ainda brinda a língua brasileira com a presença de neologismos absolutamente cabíveis: tudonada e incontível.

"Enquanto escrevia, eu relutei em usar 'tudo-nada' como uma palavra só, mas resolvi mantê-la assim para marcar a ideia da condensação dos sentidos, por mais opostos, num mesmo e único termo; só faltou radicalizar tirando o hífen e deixando 'tudonada', grafia que passo a adotar. A palavra incontível é um neologismo literário, em referência a algo não contível. (GIL, 2009)

2. O USO PERMITIDO: DÁ LICENÇA!

         Neste estudo, um dos exemplos mais encontrados como licença poética é a falta de manutenção da pessoa gramatical em versos de letras de música. Todavia, outros como paradoxos, metáforas, ortografia e concordância também são bastante utilizados pelos autores/compositores.

         Um dos exemplos mais emblemáticos está contido na letra de Faltando um pedaço, de Djavan, gravada em 1980. Já na primeira estrofe o compositor alagoano diz: “Um lobo correndo em circulo pra alimentar a matilha”. Naturalmente, o emprego da palavra matilha serviu para rimar com armadilha, posta anteriormente. Nesse caso, Djavan usou um recurso de imagem equivocado, já que matilha é coletivo de cachorros, e não de lobos. Alcateia, de fato, é o coletivo de lobos.

         Em Cheiro da terra, do compositor sergipano Cláudio Miguel, gravada pelo grupo Cata Luzes no disco Viagem Cigana, em 1983, a letra homenageia a cidade de Aracaju, capital de Sergipe, que fica no litoral nordestino. Nela, o artista comete uma falha geográfica ao dizer os seguintes versos: “Eu quero o cheiro das manhãs da minha terra/Ver o sol nascer na serra e o vento norte soprar”. Ora, em se tratando da posição geográfica de Aracaju, o sol jamais nasce na serra, e sim no mar. Nesse caso, novamente, o compositor buscou o recurso da licença poética para garantir a rima da palavra terra do verso anterior ao analisado.

         Na letra de Casa no campo, composta por Zé Rodrix e imortalizada na voz de Elis Regina, há um verso que diz: “Eu quero plantar e colher com a mão a pimenta e o sal”. Naturalmente o artista sabia que esse sal, que significa o cloreto de sódio, não se planta feito pimenta. No entanto, Zé Rodrix utilizou o termo para rimar com a palavra legal, empregada no verso anterior, alterando completamente a natureza do produto.

         Para o crítico literário Luka Magalhães (2010), o que aqui chamamos de licença poética representa uma incorreção de linguagem permitida na poesia. Em sentido mais amplo, são opiniões, afirmações, teorias e situações que não seriam aceitáveis fora do campo da norma culta da língua.

A licença poética é permitida para que o escritor tenha toda a liberdade para manipular as palavras, para que ele possa passar tudo o que pensa ao leitor. O escritor se utiliza do que a norma culta consideraria erro, para compor  seus versos de forma criativa, dando um contexto ao escrito, muitas vezes por sua criatividade, ou para manter métrica e ritmo, porém o autor tem o conhecimento do que ditam as normas gramaticais. (MAGALHÃES, 2008).

         A letra de Amor não faz mal a ninguém, música gravada pelo Trio Nordestino ainda na década de 1970, apresenta um erro de conjugação verbal muito comum na oralidade: “Se casamento fosse bom, não precisava testemunha”. Nota-se que na referida frase o verbo precisar está conjugado no imperfeito do indicativo (ele precisava). No entanto, no modo subjuntivo, quando o verbo indica incerteza (se), a articulação verbal correta seria “Se casamento fosse bom, não precisaria de testemunha”, alinhando o imperfeito do subjuntivo com o futuro do pretérito do indicativo.

         Uma questão de concordância verbal é apontada na música Peixinhos do mar, com letra recolhida do folclore mineiro e gravada por Milton Nascimento na década de 1980. Na estrofe que diz: “Quem me ensinou a nadar/Quem me ensinou a nadar/Foi, foi marinheiro/Foi os peixinhos do mar”, nota-se que o verbo ir no último verso é utilizado na 3ª pessoa do singular. Pela regra gramatical, o emprego desse verbo teria que combinar em número com o substantivo da frase: peixinhos. Sendo assim, o verso ficaria Foram os peixinhos do mar, mas isso certamente atrapalharia a desenvoltura rítmica da canção.

         Outro exemplo de concordância verbal está na famosa marchinha de carnaval, Saca-rolha, composta nos anos 1940 por Zé da Zilda-Zilda do Zé-Waldir Machado. No último verso do refrão está grafado: “Deixa as águas rolar”. Ora, se o termo as águas está evidentemente no plural, é claro que o verbo rolar também deveria estar. Sendo assim, o verso correto, de acordo com a norma culta, seria “Deixa as águas rolarem”. Mas qual folião iria cantar a tradicional marchinha dessa forma?

         Em "O ronco da cuíca", o compositor mineiro João Bosco canta: “A raiva dá pra parar, pra interromper/ A fome não dá pra interromper/ A raiva e a fome é coisa dos home”. Neste exemplo observamos duas questões. Primeiro, a concordância no último verso da estrofe, já que a raiva e a fome seriam coisas, e não coisa. Depois, a grafia empregada na palavra home, naturalmente em alusão a homem. Neste caso, o autor se utiliza do recurso da linguagem oral, muito comum no emprego do regionalismo, para definir o seu verso.

         Um dos maiores sucessos musicais da dupla sertaneja Chitãozinho e Chororó, gravado com a participação de Zé Ramalho, chama-se Sinônimos. No seu refrão, o compositor anota: “O amor é feito de paixões/E quando perde a razão/ Não sabe quem vai machucar/ Quem ama nunca sente medo/De contar o seu segredo/ Sinônimo de amor é amar”. Pois bem. De acordo com a gramática normativa, sabe-se que sinônimo de amor é afeição, zelo, dedicação, sentimento apaixonado, paixão (substantivos). Amar é a forma infinitiva do verbo. No entanto, mais uma vez, havia aí a necessidade de rimar a palavra machucar, posta no terceiro verso da estrofe citada.

         Um clássico desrespeito à norma culta da língua brasileira é apontado já no título da música Me dê motivo, composta por Michael Sullivan e Paulo Massadas e gravada por Tim Maia em 1983. Muito comum na linguagem oral, o uso do pronome antes do verbo em início de frases é condenado pela gramática normativa. Portanto, fosse seguir à risca essa norma, Tim Maia teria que cantar “Dê-me motivo/ Para ir embora/ Estou vendo a hora, de te perder”.

         Em parceria com a carioca Marisa Monte, o compositor, escritor e cantor Arnaldo Antunes escreveu: “Beija eu”. No mesmo aspecto de análise sob o olhar da norma culta, temos que: a forma refletiva do verbo exige o uso de um pronome pessoal do caso oblíquo. Neste caso, teríamos então a frase Beije-me ou mesmo Beija-me. Jamais Beija eu, o que significa um recurso de sonoridade muito adequado à melodia da música em questão. A propósito, em entrevista na TV Cultura, no programa “Nossa Língua Portuguesa”, Arnaldo Antunes falou sobre a norma culta, mas justificou o uso do Beija eu dizendo: “Fiz a música, inspirado em minha filha que, quando pequena dizia pega eu, abraça eu e beija eu”.

         Curioso dizer que no cancioneiro popular do Brasil já existe uma outra canção chamada justamente “Beija-me”. Trata-se da gafieira composta por Roberto Martins e Mário Rossi que foi gravada em 8 de fevereiro de 1943 e lançada em abril do mesmo ano por Ciro Monteiro. Beija-me/ Deixa o teu rosto coladinho ao meu/ Beija-me/ Que eu dou a vida pelo beijo teu/ Beija-me/ Quero sentir o teu perfume/ Beija-me com todo o teu amor/ Se não eu morro de ciúme. Mais recentemente também foi gravada por Zeca Pagodinho, Elza Soares, além de outros artistas.

2.1. SONORIDADE DA LÍNGUA DO POVO

         Os exemplos de tolerância no uso da linguagem coloquial em letras de música são vastos e representam uma prática muito antiga no campo das artes. Com criatividade, muitos compositores modernos constroem seus textos seguindo fielmente a sonoridade da língua usada no cotidiano do povo. No entanto, em ensaio escrito por Solange Ribeiro de Oliveira (2001), cujo título é “Leituras intersemióticas: a contribuição da Melopoética para os Estudos Culturais”, a autora identifica a ocorrência de orientações recentes da Literatura Comparada que têm conferido impulso às aproximações entre a literatura e as outras artes.

         Segundo ela, o estudo dessas relações passa a constituir uma disciplina que Steven Paul Scher, pesquisador da área, denomina Melopoética - do grego melos (canto) + poética. Esta conceituação supõe a existência de um passado quase lendário, quando música, literatura e dança integrariam uma única atividade, anterior à própria definição de arte.

Na origem dessa relação, muitas composições que hoje são definidas como literárias eram vinculadas à música: as baladas (líricas ou narrativas), as barcarolas, as canções trovadorescas em seus diferentes tipos, as odes, madrigais, as cantigas, as pastorelas, os rondós etc. Desvinculadas posteriormente, Música e Literatura apresentam-se como artes distintas. Mas continuam a manter ligações, variáveis de acordo com diferentes épocas e culturas. As duas formas artísticas têm como base material a sonoridade e essa ligação ainda é comprovada com o uso de vocábulos antes pertencentes somente a um tipo de expressão. (OLIVEIRA, 2001).

         Nessa aproximação entre linguagem popular, literatura e letra de música podemos incluir a canção Samba do Arnesto, de Adoniran Barbosa. Trata-se de um exemplo clássico de licença poética no que diz respeito à sociolinguística: O Arnesto nos convidou/ pra um samba, ele mora no Brás/Nós fumos não encontremos ninguém/Nós voltermos com uma baita de uma reiva/Da outra vez/ nós num vai mais/Nós não semos tatu!/No outro dia encontremo com o Arnesto/Que pediu desculpas/mais nós não aceitemos/Isso não se faz, Arnesto,/nós não se importa/Mas você devia ter ponhado um recado na porta/Um recado assim ói: "Ói, turma, num deu pra esperá/Aduvido que isso, num faz mar, num tem importância. Assinado em cruz porque não sei escrever".

         Notadamente, várias das palavras usadas pelo compositor paulistano fogem à ortografia ditada pela norma culta da língua brasileira. Entre elas Arnesto (Ernestro), reiva (raiva), encontremo (encontramos), ponhado (posto), esperá (esperar). No programa Ensaio, da TV Cultura (São Paulo), gravado na década de 1980, o próprio Adoniran Barbosa, entrevistado sobre o “Samba do Arnesto”, disse o seguinte: “Sei que o certo é “Ernesto”, “fomos” e “encontramos”, mas prefiro dizer “Arnesto”, “fumo” e “encontremo”. Isso é a licença poética.

         Em Asa Branca, clássico do cancioneiro nordestino, composta por Luiz Gonzaga, Humberto Teixeira, em 1947, a linguagem popular também predomina na criação da letra. “Quando oiei a terra ardendo/ Qual fogueira de São João/ Eu perguntei a Deus do céu, ai/ Por que tamanha judiação/ Que braseiro, que fornaia/ Nem um pé de prantação/ Por farta d’água perdi meu gado/ Morreu de sede meu alazão/ Inté mesmo a asa branca/ Bateu asas do sertão/ Entonce eu disse, adeus Rosinha/ Guarda contigo meu coração”.

         Percebe-se que neste caso os compositores nordestinos transferiram, propositalmente, o linguajar do povo do sertão para a letra da música. Esse recurso ajuda a aproximar o público à arte proposta. Expressões como oiei (olhei), fornaia (fornalha), prantação (plantação), inté (até), fazem parte da rotina do citado povo. Curiosamente, o termo entonce (então), também muito falado até hoje no Nordeste, é herança fiel da língua espanhola, apesar de não fazer parte do nosso vocabulário oficial.

         Há casos de licença poética em letras de música em que as mais simples regras gramaticais são quebradas em nome da sonoridade perfeita. É o fato da canção “Aonde você mora”, gravada originalmente pelo grupo carioca Cidade Negra. De acordo com a regra, não se pode usar o termo aonde com o verbo morar, pois esse advérbio indica movimentação, transitoriedade. Neste caso, o certo seria o emprego da palavra onde. O problema é que musicalmente falando, seria muito difícil encaixar os acordes da canção, utilizando a mesma melodia, numa letra que diz “Onde você mora/ Onde você foi morar...”.

         Mas existe também o uso indevido da palavra onde. Na letra do compositor cearense Belchior, “Divina Comédia Humana”, ele escreve: “....viver a Divina Comédia Humana/ onde nada é eterno....”. A questão é que neste “viver a Divina Comédia Humana”, segundo consta a semântica, não existe a ideia de lugar. Trata-se apenas de uma situação que seria vivida por um personagem. Portanto, entende-se que nesta Divina Comédia Humana nada é eterno, e o correto então seria não usar a palavra onde, substituindo-a por “em que” ou “na qual”. Ou seja, não se pode usar a palavra onde para ligar ideias que não guardem entre si a relação de lugar.

         Como dissemos anteriormente, a falta de manutenção da pessoa gramatical em versos de letras de música é uma constante. Na canção Evidências, gravada por Chitãozinho e Xororó, encontramos um exemplo característico: “Quando digo que não quero mais você, é porque te quero”. Ora, de acordo com a gramática a palavra “você” é considerada terceira pessoa (por reger o verbo em tal pessoa gramatical) e o pronome “te" se refere à segunda pessoa (tu). Portanto, uma mistura indevida, só cabível numa peça artística.

         Caso semelhante acontece na música Verdade, de Nelson Rufino e Carlinhos Santana, com grande sucesso na voz de Zeca Pagodinho. “Descobri que te amo demais/ descobri em você minha paz/ descobri, sem querer, a vida/ verdade/. Pra ganhar teu amor fiz mandinga/ e fui à ginga de um bom capoeira/ dei rasteira na sua emoção/ com o teu coração fiz zoeira”. Eis mais uma vez a mistura de segunda e terceira pessoa em frases correlatas, o que não é permitido pela norma culta da língua.

3. CONCLUSÃO

         Não é preciso ir muito a fundo para constatar que ainda existem centenas de outros exemplos semelhantes aos utilizados neste trabalho integrando o cenário musical do Brasil. Letras de música em que a licença poética ganha espaço como recurso estilístico surgem a todo instante. Sendo assim, ao analisarmos esse gênero artístico com foco na liberdade de criação, chegamos à conclusão de que o predomínio da arte sustenta qualquer transgressão possível nos parâmetros da língua normativa. A literatura, seja através de poemas ou letras de música, lida muito bem com essa tolerância sem causar prejuízo algum ao princípio da linguagem e sobretudo da comunicação.

         Além do mais, ressaltamos a importância da música como forma de estimular os estudantes e até pesquisadores ao prazer da leitura literária. Isso porque o poder que tem o poeta/compositor, quando se utiliza da licença poética em suas criações, não representa risco algum ao bom uso da língua fora dos eixos da arte.  Pelo contrário. Proporciona situações em que as figuras de linguagem acabam ganhando certo destaque para que possamos valorizar essa possível proeminência em relação à criação artística.

         Portanto, embasado e legitimado por vários teóricos nas mais variadas formas de expressão da língua portuguesa, podemos concluir que nos casos apresentados, o recurso da estilística literária resguarda os poetas/compositores de possíveis ‘erros’ na composição de suas obras. Em outros, o expediente da licença poética abraça a referida criação artística, envolvendo-a diretamente com figuras de linguagem, semântica, sintaxe, ortografia, etc. E nesse contexto, a intencionalidade dos desvios no uso da língua justifica a utilização lógica da licença poética em letras de música.

REFERÊNCIAS

Oficina de texto. FRANCO, Carlos Alberto. TEZZA, Cristóvão. Editora Vozes, 8ª edição. Petrópolis, RJ. 2010.

O som e o sentido. WISNIK, José Miguel. Uma outra história das músicas. Companhia das Letras. São Paulo. 1989.

A linguagem literária. PROENÇA FILHO, Domício. Série Princípios. Editora Ática. São Paulo. 2007.

Licença poética – Cristina Gomes, disponível em http://www.infoescola.com/literatura/licenca-poetica/, acesso em 20.04.2012

Luka Magalhães, crítico literário, disponível em http://www.recantodasletras.com.br/teorialiteraria/1244135, acesso em 21.04.2012.

Letra de música é poesia?. Tavinho Paes, disponível em http://www.cronopios.com.br/site/artigos.asp?id=2503, acesso em 21.04.2012.

Estilística, a ciência da expressividade, disponível em www.videoaulasonline.com.br, acesso em 27.04.2012.

Música popular brasileira e literatura: um estímulo interdisciplinar através

dos textos. Cimara Valim de Melo, disponível em http://ensino.univates.br/~4iberoamericano/trabalhos/trabalho069.pdf, acesso em 28.04.2012

RECURSOS ESTILÍSTICOS. Guilherme Ribeiro, disponível em http://esjmlima.prof2000.pt/figuras_estilo/figurestil.htm, acesso em 25.05.2012 

Metáfora. Gilberto Gil, disponível em http://www.gilbertogil.com.br/sec_disco_info.php?id=585&letra, acesso em 28.05.2012