UTILIDADE DA DICOTOMIA VONTADE DA LEI X VONTADE DO LEGISLADOR NA ATUALIDADE: A divergência entre a interpretação do STF do conceito de família e a redação do art. 1.723 do Código Civil no Brasil e a interpretação do conceito na Inglaterra¹

 

Vanessa Veiga

Yago Mello²

Thiago Mathias³

 

Sumário: Introdução; 1 O conceito de vontade da lei e vontade do legislador; 2 O retrato da divergência do conceito de família no Brasil entre a interpretação do STF e CC; 3 A comparação entre a interpretação do conceito de família na Inglaterra e no Brasil; Referências.

 



RESUMO

O objetivo deste artigo é analisar o conceito de família tendo como base a definição dada pelo art. 1.723 do Código Civil e jurisprudências do STF, além de estudos realizados na doutrina especializada. Nesse diapasão, utiliza-se a dicotomia vontade da lei X vontade do legislador como metodologias de análise de interpretação hermenêutica do conceito jurídico de família. Ainda como direito comparado, realiza-se uma comparação entre o conceito de família no Brasil e na Inglaterra a fim de apontar suas semelhanças e diferenças.

 

PALAVRAS-CHAVE

Família; Hermenêutica jurídica; Vontade da Lei; Vontade do Legislador.

 

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¹Paper

apresentado à disciplina de Hermenêutica da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco-UNDB

²Alunos do 4º período do Curso de Direito, da UNDB

³Professor Mestre, Orientador

 Introdução

A família é uma das entidades mais arcaicas que existe na história e que está presente nos mais diversos países. Tal entidade adquiriu novos contornos ao longo da história e o mesmo fenômeno se repete no presente momento.

Para uma maior compreensão dos contornos, se faz necessária uma análise dos conceitos de vontade da lei e de vontade do legislador e de como a adoção de tais pode influenciar nos métodos de interpretação utilizados e nos resultados da mesma.

Abordar-se-á no presente artigo qual é o entendimento dominante do Supremo Tribunal Federal contrapondo-o com o conceito descrito no art. 1723 do Código Civil de 2002, apontando as divergências existentes entre os conceitos após sua interpretação.

Ainda nesse contexto, realizar-se-á uma análise comparativa entre o conceito de família da Inglaterra e do Brasil, observando suas Constituições e como tais conceitos são aplicados nos casos concretos.

 

1. O conceito de vontade da lei e vontade do legislador

Primeiramente, cumpre apontar que o Brasil adota o direito codificado e diante dessa característica, há abertura para o surgimento das teorias objetivista e subjetivista de interpretação (CAMARGO, 2003, p.127-128).

A Escola da Exegese privilegia a palavra escrita nas leis, o que funcionaria como garantia contra a arbitrariedade judicial. A vontade do legislador é vista como algo supremo, sagrado, o que implica na recusa da modificação dos textos em função da idealização desse legislador.

Em geral, o intérprete vale-se de considerações teleológicas e axiológicas para fundar o raciocínio. Supõe, assim, que a mera interpretação especificadora não atinge os objetivos da norma, pois lhe confere uma amplitude que prejudica os interesses ao invés de protegê-los (FERRAZ JUNIOR, 2001, p.191).

Já sob outra perspectiva, no século XX é a vontade da lei que acaba por prevalecer sobre a vontade subjetiva do legislador. A norma gozaria de um sentido próprio que é determinado por fatores objetivos, que, em certa medida, independeria do sentido que o legislador tenha pretendido dar a ela. Na vontade da lei são ressaltados os aspectos estruturais da norma, assim como as técnicas apropriadas a sua captação, acredita-se em um processo hermenêutico capaz de atualizar o Direito conformando-o com a realidade social, atualizando institutos jurídicos. (CAMARGO, 2003, p.129-131).

A vontade do legislador preocupa-se principalmente com a vontade legislativa intrínseca na norma desde seu aparecimento, no sentido do princípio da unidade do ordenamento jurídico exigir a adaptação das leis antigas às leis novas, havendo coerência na interpretação (CAMARGO, 2003, p.130).

 Porém, a defesa da vontade objetiva da lei abre espaço para o método de interpretação teleológico-axiológico, “uma vez que a visão objetiva da lei conduz o intérprete para busca do fim nela contido, mediante a investigação das condições sociais de seu tempo e dos valores preponderantes” (CAMARGO, 2003, p.134).

 

2. O retrato da divergência do conceito de família no Brasil entre a interpretação do STF e CC

Na interpretação do Supremo Tribunal Federal sobre família, há um grande número de jurisprudências no STF envolvendo a questão da união homoafetiva. O STF em suas decisões realiza uma interpretação hermenêutica apoiando-se em princípios como o da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da autodeterminação, da igualdade, do pluralismo, da intimidade, da não-discriminação e da busca da felicidade (Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 477.554 MG, STF, 2011).

Há o reconhecimento de assistir a qualquer pessoa o direito fundamental à orientação sexual, assim como já foi proclamada a legitimidade plena ético-jurídica da união homoafetiva em decisões mais recentes como uma entidade familiar, o que conferiu a tal um status de cidadania, trazendo relevantes consequencias no campo do Direito, além dos campos sociais e familiares (Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 477.554 MG, STF, 2011).

Cite-se como exemplo jurisprudência consagrada no STF:

 

A família resultante da união homoafetiva não pode sofrer discriminação, cabendo-lhe os mesmos direitos, prerrogativas, benefícios e obrigações que se mostrem acessíveis a parceiros de sexo distinto que integrem uniões heteroafetivas. A DIMENSÃO CONSTITUCIONAL DO AFETO COMO UM DOS FUNDAMENTOS DA FAMÍLIA MODERNA. - O reconhecimento do afeto como valor jurídico impregnado de natureza constitucional: um novo paradigma que informa e inspira a formulação do próprio conceito de família (Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 477.554 MG, STF, 2011, grifo nosso).

 

No mesmo sentido a Suprema Corte já decidiu:

 

O sexo das pessoas, salvo disposição constitucional expressa ou implícita em sentido contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica. Proibição de preconceito, à luz do inciso IV do art. 3º da Constituição Federal, por colidir frontalmente com o objetivo constitucional de “promover o bem de todos”. Silêncio normativo da Carta Magna a respeito do concreto uso do sexo dos indivíduos como saque da kelseniana “norma geral negativa”, segundo a qual “o que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente permitido” [...]. A Constituição de 1988, ao utilizar-se da expressão “família”, não limita sua formação a casais heteroafetivos nem a formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa. Família como instituição privada que, voluntariamente constituída entre pessoas adultas, mantém com o Estado e a sociedade civil uma necessária relação tricotômica (ADPF 132-RJ, STF, 2011, grifo nosso).

 

A Constituição Federal de 1988 já havia reconhecido a família como base de toda sociedade, merecendo especial atenção estatal. Foram consagradas outras formas de convívio, inclusive entre relacionamentos não matrimonias. No conceito de entidade familiar estão inclusas as uniões estáveis e os vínculos monoparentais (DIAS, 2009. p.126).

Corroborando tal pensamento cite-se:

[...] é inadmissível contra a dignidade humana, assegurada constitucionalmente, contra realidade social viva e presente da vida e igualdade, contra os avanços da contemporaneidade, que restariam tolhidos, emoldurados numa ambientação previamente delimitada. Por isso, estão admitidas no direito de Família todas as entidades fundadas no afeto, na ética e na solidariedade recíproca, mencionadas ou não, expressamente pelo comando do art.226 da Carta Maior (FARIAS; ROSENVALD, 2008, p.35, grifo nosso)

 

A questão do afeto não existe no Código Civil de 2002, o próprio art. 1.723 do CC ao abordar a entidade familiar constituída pela união estável a define como àquela constituída entre “homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”. Porém, não se pode realizar uma abordagem reducionista acerca do assunto. Recorrente nos tribunais o que ocorre é uma interpretação ampliativa deste conceito: “Imperiosidade da interpretação não-reducionista do conceito de família como instituição que também se forma por vias distintas do casamento civil” (ADPF 132-RJ, STF, 2011).

É mister ressaltar que o locus da proteção do instituto família situa-se na realização e desenvolvimento da pessoa humana que é indispensável e ocorre mediante o princípio do melhor interesse da pessoa. Sendo assim, excluir algumas das entidades familiares corresponderia a comprometer a efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana (DIAS, 2009, p. 126-127).

 

3. A comparação entre a interpretação do conceito de família na Inglaterra e no Brasil

A Constituição da Inglaterra não é escrita e unificada como a brasileira, ela é constituída pela tradição e possui como base as leis produzidas pelo parlamento, as decisões judiciais e as convenções constitucionais, que são acordos políticos efetuados no parlamento (THE NATIONAL ARCHIEVES, 2011).

Em 1971, foi instituído o “Nullity of Marriage Act”, que baniu explicitamente casamentos homossexuais na Inglaterra. Foi a primeira vez no país que o casamento foi definido como sendo entre homem e mulher. O casamento seria anulado se os parceiros não fossem respectivamente homem e mulher (THE NATIONAL ARCHIEVES, 2011).

Esse ato foi depois substituído pelo “Matrimonial Causes Act 1973”, que é vigente até hoje, e que também declara que o casamento é nulo se as partes não forem um homem e uma mulher: “Grounds on which a marriage is void: (c)that the parties are not respectively male and female;” (THE NATIONAL ARCHIEVES, 2011).

Apesar de casamentos entre pessoas do mesmo sexo não ser atualmente legal na Inglaterra, desde 2005 existe o “Civil Partnership”, um contrato onde casais homossexuais podem realizar um registro de parceria civil, que traz as consequências legais do casamento (THE NATIONAL ARCHIEVES, 2011).

O governo inglês afirma que não se trata de um casamento, mas sim de um registro de parceria civil, mas o casamento gay, segundo alguns, pode ser considerado instituído na Inglaterra, em face da análise dos efeitos jurídicos desta contratação e de seu registro, onde os casais homossexuais que realizarem o contrato, vão ter direitos similares aos casados (THE NATIONAL ARCHIEVES, 2011).

É permitido ao casal homossexual adotar uma criança na Inglaterra, e ao celebrar o “Civil Partnership”, cada parte da união, passa a ser uma figura da família e pode ser responsável legalmente pelas crianças que qualquer um dos dois tenha. Além disso, os filhos têm direitos assim como os dos casais heterossexuais, como por exemplo, a herança (THE NATIONAL ARCHIEVES, 2011).

O conceito de família, portanto, não vem explícito na Inglaterra como é no Brasil, mas através das leis como a da união dos casais homossexuais, percebe-se que a interpretação do conceito de família não é definida apenas por homens e mulheres. Houve uma adaptação deste conceito de acordo com as relações sociais,  não sendo a união apenas de homens e mulheres, mas também seria a união entre dois homens ou duas mulheres, que poderiam constituir família e serem amparadas legalmente (THE NATIONAL ARCHIEVES, 2011).

 

Considerações finais

Os métodos de interpretação da lei são vários e se observa na atualidade uma forte tendência da adaptação das leis às novas realidades surgidas pelas modificações nas relações sociais, como supra bordado a defesa da vontade objetiva da lei se dá através da busca da concretização do fim contido intrinsecamente na norma (CAMARGO, 2003, p.134).

Percebe-se que mesmo havendo divergência entre as Constituições inglesa e brasileira, sendo esta última escrita e codificada, no que diz respeito as decisões jurisprudenciais acerca do conceito de família, estas se assemelham no que se refere ao reconhecimento de novas constituições familiares que não o modelo tradicional representado por um homem e uma mulher unidos por matrimônio.

Desse modo, tem-se utilizado o método de interpretação sistemático e axiológico/teleológico a fim de alcançar a finalidade intrínseca da norma através da atualização dos valores contidos nela.

A delimitação da entidade familiar descrita no art. 1.723 do CC como sendo a união estável entre homem e mulher tem sido desconsiderada nas análises jurisprudenciais, o que ocorre são interpretações ampliativas do conceito que abrangem as novas relações sociais, não se restringindo apenas a união homoafetiva, mas também às famílias monoparentais, embora a “visão institucional da família como instrumento de organização social acabe sacralizando a ideia do casamento” (DIAS, 2009, p.134).

Nesse sentido, mesmo que o Código Civil silencie sobre a união de pessoas do mesmo sexo no Livro de Direito de Família e no direito sucessório, o que se observa é que mesmo tendo havido uma resistência no passado de os juízes reconhecerem a juricidade às uniões extramatrimoniais, a jurisprudência mais atual a tem reconhecido, além de à família monoparental, pois o juiz deve cumprir o preceito constitucional que consagra a dignidade da pessoa humana como fundamento estatal (DIAS, 2009, p.139-141).

 

REFERÊNCIAS

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 477.554 da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, 16 de agosto de 2011. Lex: Jurisprudência do STF e Tribunais Regionais Federais. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=conceito+de+familia&base=baseAcordaos >. Acesso em: 05 nov. de 2011.

 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132 da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, 13 de outubro de 2011. Lex: Jurisprudência do STF e Tribunais Regionais Federais. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=conceito+de+familia&base=baseAcordaos >. Acesso em: 05 nov. de 2011.

 CAMARGO, Maria Berenice Lacombe. Hermenêutica e Argumentação: Uma contribuição ao estudo do Direito. 3. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

 DIAS, Maria Berenice. União Homoafetiva: O preconceito e a justiça. 4. ed. rev. atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

 FARIAS, Cristiano chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das Famílias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: Técnica, decisão e dominação. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2001.

 THE NATIONAL ARCHIEVES. Disponível em:< http://www.legislation.gov.uk/ukpga/1973/18#pt1-pb2>. Acesso em: 04 nov. 2011.