Introdução

As arritmias cardíacas podem, do ponto de vista prognóstico, apresentarem-se de forma benigna ou maligna. Da mesma forma pode se comportar o tratamento medicamentoso.

Com o aumento da sobrevida da população nos últimos anos devido ao melhor tratamento preventivo e curativo das doenças cardiovasculares1 , bem como ao aumento da chance de recuperação de pacientes com parada cardíaca, aumentou o número de pessoas que procura tratamento médico e com isto, o diagnóstico e a necessidade de tratamento de arritmias cardíacas. Em indivíduos sobreviventes de parada cardíaca ou na fase pós-infarto do miocárdio, em pacientes com miocardiopatia dilatada idiopática com disfunção ventricular, as arritmias ventriculares são mais freqüentes e complexas quanto maior for o grau de comprometimento da fração de ejeção e mais intensos forem os fatores de compensação hemodinâmica da insuficiência cardíaca2. Além disso, quanto mais complexa for a arritmia a ser tratada, maiores as chances de ineficácia do fármaco e maiores os riscos de efeitos pró-arrítmicos graves3-7 . O tipo de arritmia o qual se apresenta o paciente pode ser um fator determinante do seu prognóstico a medio prazo, entretanto, o estado da função ventricular é o que apresenta o mais forte valor preditivo para morte arritmica ou parada cardíaca8 .

A definição de insuficiência cardíaca como síndrome clínica  é complexa e envolve uma série de variáveis. Esta pode ser identificada a partir da informação do estado do grau de disfunção ventricular ou distúrbio hemodinâmico (definição fisiológica); a partir de sinais e sintomas clínicos (classe funcional como a da NYHA); a partir de conhecimentos dos mecanismos de compensação (influências neurohumorais, como sistema renina-angiotensina, sistema nervoso autônomo) ou até mesmo metabólico (niveis plasmáticos de sódio, creatinina, enzimas hepáticas, etc) 9. Especificamente sobre os dois primeiros ítems, é importante salientar que nem sempre uma disfunção ventricular esquerda causa sintomas clínicos. Do mesmo modo, dado a subjetividade da avaliação dos sintomas, nem sempre estes estão diretamente relacionados com os distintos graus de disfunção ventricular.

Um fármaco com efeito inotrópico negativo pode não desencadear insuficiência cardíaca clinicamente significativa se, ao mesmo tempo, provocar alterações sobre a circulação periférica, como a queda da resistência vascular acompanhada de reflexos simpáticos que mascaram as ações depressores do medicamento sobre a função ventricular. Exemplo disto é o efeito inotrópico negativo causado pelo verapamil, que em algumas condições não se acompanha de redução do débito cardíaco devido à queda da resistência periférica secundária à vasodilatação (redução da pós-carga).

O efeito dos fármacos pode diferir na dependência do estado da fração de ejeção e da sua dose. A disopiramida pode causar insuficiência cardíaca quando administrada a pacientes com função ventricular já comprometida (fração de ejeção abaixo de 40%) e em menor grau em indivíduos com fração de ejeção normal10. Este efeito é agravado, não só pelo inotropismo negativo, mas também pelo aumento da resistência periférica, o que piora o desempenho ventricular11 .

De maneira geral, todos os medicamentos antiarrítmciso causam algum grau de disfunção ventricular, entretanto, a importância deste fato varia nas diferentes condições em que são administrados. Deve ser considerado desde a condição clínica do paciente (grau funcional), fração de ejeção, associações com outros fármacos  (digital, diuréticos, inibidores da enzima de conversão), forma de administração (oral ou venosa) e, provavelmente, do tipo de cardiopatia subjacente, responsável pela origem da arritmia (se associada ou não à isquemia).

Baseado nos comentários iniciais, torna-se claro que os pacientes com disfunção ventricular são aqueles que apresentam os tipos de arritmias mais graves e complexas. Do mesmo modo, muitos estudos tem demonstrado que quanto pior o estado da função ventricular ou a classe funcional, menos responsivo tais pacientes serão ao tratamento antiarrítmico. O objetivo desta monografia será discutir a utilização dos fármacos antiarrítmicos em pacientes com difunção ventricular.

Mecanismos de Aparecimento das Arritmias Cardíacas na Disfunção Ventricular

O surgimento de arritmias ventriculares depende da interação de vários fatores, conforme demonstrado no esquema abaixo12 :

 

Os  fatores moduladores são representados pela influência do sistema nervoso autônomo (principalmente atividade simpática), eletrólitos (potassio e magnésio), sistema renina angiotensina, presença de radicais livres e equilíbrio ácido básico. Neste caso, os mecanismos de compensação hemodinâmica são os responsáveis por tais efeitos. Podem influenciar também, medicamentos empregados no tratamento da disfunção ventricular e insuficiência cardíaca. Os gatilhos correspondem às extra-sístoles ventriculares; o substrato corresponde ao tecido miocárdico formado por  células saudáveis, entremeadas com células com baixo potencial de repouso transmembrana (isquêmicas) e áreas de fibrose, estando portanto, relacionados ao próprio múscula cardíaco (tabela 1).

Tabela 1 - Causas de arritmias ventriculares em pacientes com disfunção ventricular

     Mecanismos de compensação hemodinâmica

         Ativação do sistema nervoso autônomo central e cardíaco (catecolaminas)

         Ativação do sistema renina-angiotensina (retenção hídrica)

     Medicamentos utilizados

         Digitálicos

         Diuréticos (hipopotassemia, hipomagnesemia)

         Beta-agonistas (amrinone, salbutamol)

         Antiarrítmicos (efeitos pró-arrítmicos)

     Alterações inerentes ao músculo cardíaco

         Disfunção ventricular

         Aneurismas, Hipocinesias, Fibrose

         Dilatação ventricular

         Isquemia miocárdica

Efeitos dos Mecanismos de Compensação

A freqüência das arritmias ventriculares aumenta quanto maior o grau de disfunção ventricular e, consequentemente,  dos níveis de catecolaminas circulantes13. O aumento da atividade simpática causa aumento da freqüência cardíaca, aumento do consumo de oxigênio miocárdico, diminuição da perfusão sanguínea ao subendocárdio (devido ao encurtamento da diástole), e aparecimento de isquemias regionais seguidas de dilatação ventricular e deterioração da função contrátil14.

As catecolaminas circulantes em excesso atuam sobre o miocárdio deteriorado, aumentando sua vulnerabilidade à arritmias graves, como taquicardia e fibrilação ventriculares. Nos tecidos, as catecolaminas interagem com os receptores beta-adrenérgicos, que encontram-se diminuídos (dowregulation) quando há disfunção ventricular. Os baixos níveis intracelulares de AMP cíclico, causam diminuição de cálcio e da ativação dos canais que transportam este íon durante a sístole. Na diástole, o cálcio não é recapturado pelo retículo sarcoplasmático, permanecendo acumulado, causando disfunção diastólica. As oscilações dos níveis intracelulares de cálcio favorecem o aparecimento de arritmias ventriculares por pós-potenciais tardios15 . O acúmulo intracelular de cálcio retarda a condução através dos discos intercalares (desacoplamento elétrico celular), que se manifesta por condução lenta ou bloqueio na condução do impulso, fatores importantes para gerar arritmias por reentrada16.

Miocárdio com função deprimida apresenta incremento da atividade neural simpática17. Nas áreas de fibrose produzidas pela cardiopatia subjacente, há destruição concomitante de fibras simpáticas resultando em hipersensibilidade por denervação, intensificando a heterogeneidade elétrica celular, com alterações locais da refratariedade e da condução do impulso elétrico18. A dispersão de refratariedade e de recuperação da atividade elétrica celular além do prolongamento do tempo de condução local podem causar arritmias ventriculares19.

 O sistema renina-angiotensina, quando ativado, aumenta a concentração plasmática de angiotensina e as ações desta substância refletem-se de diversas maneiras20. Há efeito direto sobre o miocárdio, facilitando o estado adrenérgico, gerando arritmias. Há efeito direto sobre os fatores genéticos celulares que controlam o seu crescimento, induzindo à hipertrofia ventricular e aumento do consumo de oxigênio. Finalmente, efeitos sistêmicos sobre os rins e vasos periféricos, aumentando a pré-carga com reabsorção de sódio e água e eliminação de potássio. Sobre as arteríolas, a angiotensina provoca aumento da pós-carga por aumento da resistência vascular periférica. Os efeitos arritmogênicos secundários à intensificação da atividade do sistema renina-angiotensina devem-se, portanto, às alterações eletrolíticas, aumento do volume vascular, do volume e pressão ventriculares.

Efeitos de Medicamentos

Os digitálicos, embora melhorem o estado hemodinâmico dos pacientes, podem predispor ao aparecimento ou agravamento de arritmias ventriculares21. Pacientes com arritmias ventriculares graves (taquicardia ou fibrilação ventricular) tem maior risco de efeito pro-arrítmico de antiarrítmicos quando estes estão associados ao digital3. Em pacientes com insuficiência cardíaca, os níveis terapêuticos de digital para se alcançar efeito hemodinâmico satisfatório, são próximos daqueles que causam intoxicação22. Os mecanismos envolvidos são a diminuição dos níveis intracelulares de potássio e acúmulo do cálcio, que podem gerar arritmias através de pós-potenciais tardios.

A hipopotassemia é causada por diuréticos, secundariamente à ativação do sistema renina-angiotensina e à hiperestimulação simpática sobre receptores beta-223. Nesta última condição, há tendência deste íon de migrar para o interior das células musculares. Em pacientes com insuficiência cardíaca, a incidência de hipopotassemia causada por diuréticos varia de 20 a 25% 24. A hipomagnesemia, que ocorre em até 65% dos casos, geralmente acompanha os quadros de hipopotassemia25. O magnésio tem influência sobre os níveis intracelulares de potássio, pois é um cofator importante na atividade da enzima ATPase, que regula o transporte transmembrana de potássio.

Os medicamentos antiarrítmicos, utilizados para o tratamento de extra-sístoles ou taquicardia ventricular, podem gerar arritmias ou intensificarem as já existentes (efeitos pró-arrítmicos). Estes efeitos ocorrem devido ao prolongamento do intervalo QT agravado pelo desequilíbrio eletrolítico, provocando taquicardia ventricular do tipo torsades de pointes. Esta complicação é observada com antiarrítmicos do grupo IA (quinidina, disopiramida, procainamida). Além disto, estes medicamentos podem alterar o substrato arritmogênico, precipitando e perpetuando a taquicardia ventricular sustentada26 através do prolongamento do tempo de condução do impulso ná área de condução lenta do circuito reentrante ou causando bloqueio unidirecional do impulso elétrico dentro do mesmo circuito. Este efeito é mais comumumente observado com os fármacos do grupo IC (propafenona).  O agravamento da disfunção ventricular pelos antiarrítmicos pode ser causa de arritmias cardíacas em ventrículos com baixa fração de ejeção.

Fatores Relacionados ao Coração

 A hipóxia causada pela insuficiência coronária, tem papel importante na gênese de arritmias. Alterações do pH tecidual pelo metabolismo anaeróbico, associadas ao desequilíbrio eletrolítico, podem influenciar o substrato arritmogênico alterando a condução e refratariedade tissulares, gerando arritmias através da reentrada do impulso elétrico.

A distensão da parede ventricular em corações normais diminui o período refratário celular, intensifica o automatismo por exacerbação da fase 4 do potencial de ação, propiciando ao aparecimento de focos ectópicos ventriculares27-29. Em cães submetidos à disfunção ventricular exeprimental com estimulação ventricular rápida, observa-se prolongamento da duração do potencial de ação e da repolarização ventricular quando recebem volumes extras de solução salina30. Estas alterações não são revertidas por medidas que diminuem a sobrecarga ventricular, o que pode explicar a ineficácia de inibidores da enzima de conversão em abolir arritmias ventriculares em pacientes com isuficiência cardíaca31. Este tipo de alteração pode provavelmente induzir ao aparecimento de arritmias causadas pelo estiramento muscular. O estiramento muscular causa despolarização diastólica celular e  redução da velocidade de condução do impulso, favorecendo o aparecimento de arritmias por reentrada. Além disto, o aumento da pressão intraventricular causada pela dilatação ventricular, diminui o fluxo sanguíneo no subendocárdio, agravando a função ventricular, levando a um ciclo vicioso que aumenta a chance de arritmias. A taquicardia  que muitos destes pacientes apresenta, encurta o tempo de diástole, intensificando os efeitos da isquemia subendocárdica. Este mecanismo pode estar operante em pacientes com miocardiopatia congestiva idiopática32 .

Efeitos dos Fármacos Antiarrítmicos sobre a Função Ventricular

Fatores que Afetam a Ação do Fármaco sobre o Miocárdio

O sucesso do tratamento antiarrítmico depende principalmente do tipo de arritmia a ser tratada e do estado da função ventricular. Quanto mais complexa e grave a arritmia, menor a chance de sucesso terapêutico. Do mesmo modo, quanto pior o estado da função contrátil, menor o índice de sucesso, e maior o risco de efeito pró-arrítmico4-8 . Num estudo retrospectivo, envolvendo 246 pacientes com arritmias ventriculares complexas, a abolição de arritmias ventriculares e taquicardia ventricular não sustentada com fármacos antiarrítmicos (grupos IA, IB, IC e III) foi duas vezes maior no grupo de pacientes com fração de ejeção maior que 30% em comparação com os pacientes com fração de ejeção menor que 30% (67% versus 36%; p=0,0008). Neste mesmo estudo, o risco de agravamento das arritmias ventriculares foi sete vezes maior no grupo de pacientes com arritmia ventricular mais grave (taquicardia ventricular não sustentada) e fração de ejeção abaixo de 30% em comparação aos pacientes sem estas características (18% versus 2,3%; p=0,003) 8.

A supressão de arritmias ventriculares é menor em pacientes com baixa fração de ejeção e insuficiência cardíaca congestiva do que em pacientes com apenas baixa fração de ejeção sem evidências de insuficiência cardíaca. No estudo CAST, 76% dos pacientes envolvidos apresentaram reposta à medicação antiarrítimica; apenas 58% dos pacientes com insuficiência cardíaca apresentaram supressão da arritmia em comparação com 75% sem insuficiência cardíaca. Quando se acrescentou o critério de baixa fração de ejeção (menor que 30%) somente 50% apresentaram sucesso na supressão de arritmias ventriculares com medicamentos. Esta observação indica que a classe funcional (presença de insuficiência cardíaca clínica) tem maior valor preditivo do que a fração de ejeção isolada para indicar a supressão de arritmias. Este fato destaca a importâcia dos fatores de compensação hemodinâmica sobre o risco de aparecimento de arritmias ventriculares complexas 33. Estes achados confirmam outras observações preliminares que destacavam a importância do grau funcional, mais do que a fração de ejeção como de maior valor prognóstico nesta população de alto risco 34  

Quando se decide pelo o emprego de antiarrítmicos em pacientes com disfunção ventricular deve-se levar em consideração as alterações da farmacocinética e farmacodinâmica dos mesmos nesta condição 35. A redução do volume distribuição na insuficiência cardíaca aumenta os níveis plasmáticos da maioria dos agentes, o que pode intensificar seus efeitos sobre o miocárdio. O mesmo ocorre quando há redução do fluxo sanguíneo hepático e renal, acompanhado de redução do clearance das drogas com acúmulo da forma livre no plasma.

Para que o efeito antiarrítmico seja exercido sobre as células é importante que o agente seja distribuido nas cercanias do circuito arritmogênico. A presença de isquemia ou qualquer outro processo que altere o fluxo sanguíneo miocárdico, torna heterogênea a distribuição do antiarrítmico diminuindo sua ação terapêutica. Este efeito é mais marcante em miocárdios hipoperfundidos, como na miocardiopatia isquêmica36.

Os fatores de compensação  hemodinâmica podem alterar os efeitos dos antiarrítmicos. Niveis elevados de catecolaminas revertem a ação antiarrítmica de fármacos, como por exemplo, a quinidina e a procainamida, particularmentre por ação daquelas  sobre o circuito arritmogênico, causando aceleração da velocidade de condução do impulso37 .

Lesões celulares, alteração da arquitetura celular miocárdica, destruição de canais iônicos, redução do potencial de repouso transmembrana, todos podem de maneira direta ou indireta causarem redução da eficácia antiarrítmica em pacientes com disfunção ventricular.

Classificação dos Fármacos Antiarrítmicos

A classificação proposta por Vaughan-Williams (quadro 2) é a mais utilizada por sua simplicidade38. Os critérios desta classificação consideram as ações dos fármacos especificamente sobre os canais de membrana (canais de sódio,  potassio e cálcio). Por outro lado, a separação dos agentes nesta classificação não está bem delineada pois drogas de um mesmo grupo podem atuar tanto sobre um tipo de canal quanto em outro, de modo que apresentem propriedades de grupos diferentes.

Na dependência dos efeitos eletrofisiológicos, os fármacos antiarrítmicos são classificadas em quatro grupos. O primeiro é subdividido em três subgrupos, baseados nas suas ações sobre  sobre os canais de sódio e, consequentemente, sobre a Vmax da fase zero do potencial de ação, sobre a refratariedade e repolarização celulares. Os agentes do grupo IA (quinidina, procainamida e disopiramida) reduzem moderadamente a Vmax e prolongam a repolarização e refratariedade celulares. Os do  grupo IB (lidocaína, mexiletine) causam menor redução da Vmax e encurtam a repolarização e refratariedade celulares. A propafenona é o único fármaco do grupo IC disponível no Brasil. Este agente causa redução importante da Vmax e menor prolongamento da repolarização e refratariedade celulares. Os fámacos do  grupo II, correspondem ao beta-bloqueadores; os do grupo III bloqueiam os canais de potassio, prolongando a repolarização ventricular e são representados pela amiodarona e sotalol. Finalmente, os antiarrítmicos do  grupo IV  são representados pelos bloqueadores dos canais de cálcio, como verapamil e diltiazem .