A utilização de algemas em nosso país, ainda não foi regularmente positivada, o que torna a análise deste tema, extremamente tortuosa. Porém, não há que se falar em falta de regulamentação total, devendo ser aplicada, ante a lacuna existente no ordenamento jurídico, a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito, conforme disposição do Art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil.

Desde o advento da Lei de Execução Penal (Lei 7.210/84), a sociedade clama por um decreto federal que venha a dissipar qualquer dúvida quanto ao uso indiscriminado de algemas, traçando um verdadeiro paralelo com o crime de abuso de autoridade, este, regulamentado na Lei n.º 4.898/65.

Segundo a obra de Sérgio Marcos de Moraes Pitombo, a palavra algema deita suas origens no árabe "al jamad", que significa "a pulseira". Apenas por volta do século XVI, adotou-se o uso de algemas para aprisionar os infratores da lei.

Antes, todo instrumento de metal, subjugante de prisioneiros, ora surgia sob a denominação de cadeias, ora de ferros. É depois que se principia a distinguir as algemas para tolher pelos pulsos ou dedos polegares e os grilhões para deter pelos tornozelos os presos. Meio, pois, de submeter, fisicamente, mas de também castigar.

Em resumo, entende-se por algemas o instrumento de força, em geral metálico, empregado pela Justiça Penal, "com que se prendem os braços" de alguém, "pelos punhos", na frente ou atrás do corpo, ao ensejo de sua prisão, custódia, condução, ou em caso de simples contenção. (01)

Porém, os limites impostos ao uso indistinto de algemas, há muito se encontra presente em leis que regulamentam o processo penal. Exemplo é a Lei n.º 2.033, de 20 de setembro de 1871, regulamentada pelo Decreto n.º 4.824/1871, que, em seu art. 28, assim dispunha:

"[...] o preso não será conduzido com ferros, algemas ou cordas, salvo o caso extremo de segurança, que deverá ser justificado pelo condutor; e quando o não justifique, além das penas em que incorrer, será multado na quantia de dez a cinqüenta mil réis, pela autoridade a quem for apresentado o mesmo preso."

Fácil perceber, portanto, que há tempos o legislador pátrio vem se preocupando com os abusos perpetrados pelo uso de algemas pelas autoridades policiais. E pasmem, até o momento, não há lei regulando o uso de algemas.

Recentemente, com a deflagração da famosa operação "Satiagraha" pela Polícia Federal, que culminou com as prisões de Celso Pitta, Daniel Dantas, Naji Nahas, e outros "poderosos", o tema veio à tona.

A legislação ainda aplicável quanto ao abuso de autoridade, data de 09 de dezembro de 1965 (Lei n.º 4.898), vale dizer, antes do advento da Constituição da República de 1988, que trouxe vários princípios fundamentais inerentes à pessoa, ainda não tão amplamente dispostos pela então vigente Constituição de 1967.

A Declaração dos Direitos Humanos, assinada em 1948, já dispunha, ainda que implicitamente, quanto à proteção do acusado no que tange ao uso de algemas. Vejamos:

Artigo V. Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante. [original sem grifo]

Artigo XI. 1. Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.

A citada Lei n.º 4.898/65, que trata do abuso de autoridade, assim dispõe quanto ao assunto em comento:

Art. 3º. Constitui abuso de autoridade qualquer atentado:

[...]        

i) à incolumidade física do indivíduo;

Art. 4º Constitui também abuso de autoridade:

a) ordenar ou executar medida privativa da liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder;

b) submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei; [...] [original sem grifo]

Desta forma, qualquer atitude vexatória à pessoa tida sob a custódia do Estado, deve ser de pronto repudiada pelo Poder Judiciário, por constituir crime. Entre tais atitudes vexatórias, indene de dúvidas, figura o uso indiscriminado de algemas pelas autoridades policiais.

Evidente que o uso de tal aparato, não raras vezes, se mostra de extrema necessidade, seja para resguardar a segurança de terceiros, do agente que conduz o acusado, ou até mesmo, do próprio acusado, quando este pretende se auto flagelar pelo ilícito cometido.

Porém, deve ficar claro que as algemas só devem ser utilizadas em situações de extrema necessidade, situações excepcionais, e não como vem sendo comumente empregada pelos agentes de polícia, com truculência e de maneira desproporcional.

É certo que a polícia militar e a polícia civil, também fazem uso das algemas, mas é a Polícia Federal que desencadeia as inúmeras manifestações acerca dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo, seja pelo caráter espetaculoso dado às suas operações, seja pelo fato de serem, os acusados, na maioria das vezes, pessoas de influência, com cargos relevantes na sociedade.

O fato, é que mesmo após mais de vinte anos da vigência da lei que trata do abuso de autoridade (Lei n.º 4.898/65), o legislador constituinte de 1988 perdeu uma ótima oportunidade ao não dispor, expressamente, acerca do uso de algemas, tratando, de maneira pormenorizada os casos em que caberia a utilização desse degradante instrumento vexatório da dignidade humana.

Em recente evento promovido pela Ordem dos Advogados do Brasil, intitulado IV Conferência Estadual dos Advogados do Paraná, realizada nos dias 22 a 24 de junho de 2008, em Curitiba, Paraná, constatou-se que muitos dos direitos expressos na Constituição de 1988 ainda não se concretizaram na prática.

Alexandre de Moraes, ao comentar a Constituição Federal, assim se manifestou (02):

"A constitucionalização dos direitos humanos fundamentais não significa mera enunciação formal de princípios, mas a plena positivação de direitos, com base nos quais qualquer indivíduo poderá exigir sua tutela perante o Poder Judiciário, para concretização da democracia."

E mais adiante afirma:

"O respeito aos direitos humanos fundamentais, principalmente pelas autoridades públicas, é pilastra mestra na construção de um verdadeiro Estado de direito democrático."

Grosso modo, podemos dizer que a Constituição é muito bonita e democrática, mas lhe falta efetividade. De nada adianta um ordenamento jurídico que não seja efetivo, que não acolha os anseios da sociedade. Não basta a positivação dos princípios fundamentais inerentes à pessoa humana pela Carta Magna. Tais preceitos devem ser respeitados imperiosamente, pois, caso contrário, estaríamos regressando na evolução de um Estado Democrático de Direito, tão almejado por todos nós.

Vejamos a exata disposição da Constituição Federal no que tange aos direitos e garantias fundamentais:

Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

III – ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante;

[...]

X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

[...]

XLIX – é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;

[...]

LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo,aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

[...]

Ante as disposições acima colacionadas, parece cada vez mais evidente que o Estado vem tolhendo direitos dos cidadãos paulatinamente, mesmo lhes sendo assegurados tais direitos pela Constituição Federal.

Sendo este o momento oportuno, peço vênia para vaguear brevemente sobre os princípios constitucionais que vêm sendo sufragados pelo Estado, principalmente por meio da Polícia Federal.

O inciso III do já citado art. 5º da CF/88, dispõe que ninguém será submetido a tratamento degradante. Por degradante, conforme consta no Dicionário Aurélio, entende ser aquilo que torna vil, desprezível. Nos exatos termos:

Degradar. [do lat. tard. degradare.] V. t. d. 1. Privar de graus, dignidades ou encargos; exautorar: degradar um magistrado. 2. tornar vil ou desprezível; aviltar, envilecer [...]. (03)

A 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao analisar caso análogo ao ora debatido, assim se posicionou:

Uso de algemas e tratamento desumano ou degradante: STJ – "A imposição do uso de algemas ao réu, por constituir afetação aos princípios de respeito à integridade física e moral do cidadão, deve ser aferida de modo cauteloso e diante de elementos concretos que demonstrem a periculosidade do acusado – Recurso provido" (STJ – 6ª T. – RHC n.º 5.663/SP – Rel. Min. William Patterson, DJ de 23 set. 1996, p. 35.157).

Desta forma, o uso de algemas em toda e qualquer operação policial, como se elas é que representassem o poder de polícia, está eivado da mais absoluta inconstitucionalidade, pois seu uso deve se dar de maneira ponderada, em casos de extrema necessidade, como quando o preso tenta a fuga ou ainda, quando tenta agredir terceiros. Aí sim as algemas demonstram sua real função, qual seja, obstar o preso de intervir na efetividade do mandado de prisão ou da prisão em flagrante.

É comum abrirmos o jornal e estar estampada a foto de um preso ao lado das provas do ilícito cometido e com o emblema da Polícia ao fundo, como se aquele indivíduo representasse um troféu à entidade repressora. Não são essas atitudes que demonstram o poder, a efetividade da polícia. Pelo contrário, nada moraliza tamanha barbárie, como revela o aumento indiscriminado da criminalidade no país.

Não é porque o indivíduo é acusado ou condenado por um crime, que à ele não mais se aplica o código de processo penal. Já tive a oportunidade de tratar do tema "Direito Penal do Inimigo" em minha tese de pós-graduação apresentada à Escola da Magistratura do Paraná, e me parece que o uso desordenado de algemas pela polícia demonstra uma verdadeira aceitação dos ensinamentos de Günther Jakobs - um dos precursores do Direito Penal do Inimigo - pelo Estado brasileiro (04).

Por outro lado, o art. 5º, X, da CF/88, resguarda o direito à intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas.

Alexandre de Moraes, em já citada obra, assim se manifestou ao tratar do inciso sob análise:

"Os direitos à intimidade e à própria imagem formam a proteção constitucional à vida privada, salvaguardando um espaço íntimo intransponível por intromissões ilícitas externas. A proteção constitucional refere-se, inclusive, à necessária proteção à própria imagem diante dos meios de comunicação em massa (televisão, rádio, jornais, revistas etc.).

[...]

Assim, não existe nenhuma dúvida de que a divulgação de fotos, imagens ou notícias apelativas, injuriosas, desnecessárias para a informação objetiva e de interesse público (CF, art. 5º, XIV), que acarretam injustificado dano à dignidade humana, autoriza a ocorrência de indenização por danos materiais e morais, além do respectivo direito à resposta."

Diante das alegações aqui postuladas, pergunta-se: onde se respeitou tais princípios constitucionais, por exemplo, na prisão do ex-prefeito de São Paulo, Celso Pitta, efetuada pela Polícia Federal na operação conhecida como Satiagraha? Tal prisão revestiu-se de uma inconstitucionalidade latente. Não se pode admitir que um sujeito seja filmado dentro de sua casa, de pijamas, ao receber uma ordem de prisão, por uma rede de televisão internacional, como se todo o mérito pela prisão coubesse à Polícia Federal. Um absurdo, que deve ser rechaçado pelo Poder Legislativo com a regulamentação específica sobre o uso de algemas em nosso país.

A Lei de Execuções Penais (Lei n.º 7.210/84), em suas disposições finais, mais especificamente em seu art. 199, bem que tentou pôr termo ao impasse. Porém, até agora não foi promulgado nenhum decreto federal que venha a suprir a lacuna existente na lei.

O citado art. 199 da LEP assim dispõe:

Art. 199. O emprego de algemas será disciplinado por decreto federal.

O desdém de nossos legisladores, porém, contribuiu para que, após mais de 20 (vinte) anos, este decreto ainda não tenha sido regulamentado.

Porém, as autoridades judiciárias não podem quedar-se inertes aos abusos diariamente cometidos, que desvirtuam a real finalidade dos princípios basilares dispostos no Art. 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, entre eles, a presunção de inocência, a garantia de quem ninguém será submetido a tratamento degradante, e, ainda, o respeito à integridade física e moral dos presos, conforme assegurado pelo inciso XLIX do citado artigo 5º.

Na ausência da lei, cabe, aos aplicadores do direito, valerem-se da analogia, dos costumes e dos princípios de direito, ditando, desta forma, a mais escorreita justiça.

Aliás, é justamente esta a excelência do direito: a interpretação das normas. O direito jamais poderá se tornar uma ciência engessada, onde a lei deve ser aplicada exatamente como disposta ante um caso concreto. Cabe ao hermeneuta jurídico, valer-se das disposições legais aplicáveis, ainda que analogicamente, ao caso posto em análise.

Não é porque não há expressa regulamentação quanto ao uso de algemas, que ela pode ser utilizada "a torto e a direito". Cabe, ao poder judiciário e a sociedade como um todo, zelar pelo fiel cumprimento da lei e dos princípios dispostos na Carta Magna, aplicáveis erga omnes.

Nosso Código de Processo Penal, ainda que de maneira discreta, tece breves comentários ao uso da força quando da captura de um suspeito ou acusado:

Art. 284 - Não será permitido o emprego de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso.

Art. 292 - Se houver, ainda que por parte de terceiros, resistência à prisão em flagrante ou à determinada por autoridade competente, o executor e as pessoas que o auxiliarem poderão usar dos meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência, do que tudo se lavrará auto subscrito também por duas testemunhas.

Ainda que nosso Código de Processo Penal não use a palavra "algema", valendo-se da hermenêutica, ciência intrinsecamente ligada ao direito, entende-se que a algema só poderá ser utilizada em casos excepcionais, em que a atitude do acusado demonstre a real exigibilidade de tal instrumento, pois, caso contrário, o agente infrator estaria sujeito às penas administrativa, civil e penal.

Nesse sentido, vale citar as disposições do Código de Processo Penal Militar, regulamentado pelo decreto-lei nº 1.002, de 21 de outubro de 1969, que assim expõe:

Art. 234. O emprego de força só é permitido quando indispensável, no caso de desobediência, resistência ou tentativa de fuga. Se houver resistência da parte de terceiros, poderão ser usados os meios necessários para vencê-la ou para defesa do executor e auxiliares seus, inclusive a prisão do ofensor. De tudo se lavrará auto subscrito pelo executor e por duas testemunhas.

1º O emprego de algemas deve ser evitado, desde que não haja perigo de fuga ou de agressão da parte do preso, e de modo algum será permitido, nos presos a que se refere o art. 242.

2º O recurso ao uso de armas só se justifica quando absolutamente necessário para vencer a resistência ou proteger a incolumidade do executor da prisão ou a de auxiliar seu. [original sem grifo]

Complementando, o Art. 242 do citado diploma processual penal, elenca os casos em que não será permitida, de modo algum, a utilização de algemas, conforme redação do já citado Art. 234, §1º. Vejamos:

Art. 242. Serão recolhidos a quartel ou a prisão especial, à disposição da autoridade competente, quando sujeitos a prisão, antes de condenação irrecorrível:

a) os ministros de Estado;

b) os governadores ou interventores de Estados, ou Territórios, o prefeito do Distrito Federal, seus respectivos secretários e chefes de Polícia;

c) os membros do Congresso Nacional, dos Conselhos da União e das Assembléias Legislativas dos Estados;

d) os cidadãos inscritos no Livro de Mérito das ordens militares ou civis reconhecidas em lei;

e) os magistrados;

f) os oficiais das Forças Armadas, das Polícias e dos Corpos de Bombeiros, Militares, inclusive os da reserva, remunerada ou não, e os reformados;

g) os oficiais da Marinha Mercante Nacional;

h) os diplomados por faculdade ou instituto superior de ensino nacional;

i) os ministros do Tribunal de Contas;

j) os ministros de confissão religiosa.

Nota-se, assim, que as pessoas elencadas no Art. 242, não poderão, de forma alguma, ser coagidas ao uso de algemas. O legislador, inclusive, ficou omisso quanto aos casos em que haja reação do acusado, caracterizando, a meu ver, situação excepcional, autorizadora do uso das algemas. Desta forma, basta um diploma em faculdade de ensino nacional, para ser obstado o uso de algemas. Onde está o cumprimento da lei?

Assim, não se pode afirmar que o ordenamento jurídico é totalmente omisso no que tange ao uso de algemas. A lei existe, ainda que para ser aplicada analogicamente. Resta sua efetividade.

Fato é que um cidadão surpreendido em sua residência, no crepúsculo do amanhecer, para ser levado preso, ao ser algemado, não ousaria alegar a isenção disposta no citado art. 234 c/c 242 do Código de Processo Penal Militar na presença de inúmeros policiais armados como se fossem para guerra. Se é que, em uma situação como essa, o sujeito se lembraria de reportar-se à tal lei.

Pode-se dizer, ainda, que se aplica, quanto ao uso de algemas, também por analogia, as disposições da Lei 9.537/97, que cuida da segurança do tráfego aquaviário em águas sob jurisdição nacional. Eis a redação do Art. 10 da citada lei, a saber:

Art. 10. O Comandante, no exercício de suas funções e para garantia da segurança das pessoas, da embarcação e da carga transportada, pode:

I - impor sanções disciplinares previstas na legislação pertinente;

II - ordenar o desembarque de qualquer pessoa;

III - ordenar a detenção de pessoa em camarote ou alojamento, se necessário com algemas, quando imprescindível para a manutenção da integridade física de terceiros, da embarcação ou da carga;

IV - determinar o alijamento de carga. [original sem grifo]

Desta forma, resta evidente, ante as disposições legais hodiernamente em vigor, que o uso de algemas só pode ser tolerado em situações excepcionais, em que o indivíduo resista a prisão ou coloque em risco a efetividade da medida, seja tentando uma fuga, seja ameaçando terceiros. Fora esses casos, jamais se poderia admitir o uso indiscriminado de algemas, por tratar-se de nítida afronta aos princípios fundamentais de direito pregados pela Carta Magna de 1988.

Vários Habeas Corpus já foram impetrados perante nossos Tribunais, requerendo a abstenção do uso de algemas pelo paciente, e não raras vezes, tal garantia é concedida. Caso mais recente e avultoso é o do banqueiro Salvatore Cacciola, que obteve liminar, concedida pelo Ministro do STJ Humberto Gomes de Barros, proibindo o uso de algemas no condenado, evitando, desta forma, que seja exposto ao achincalhe público.

"Barros afirmou, em sua decisão, que Cacciola é idoso e que, portanto, não apresenta riscos aos policiais federais. "Quanto ao uso de algemas, o próprio Supremo Tribunal Federal já decidiu que ele deve ocorrer com a finalidade de impedir, prevenir ou dificultar a fuga ou reação indevida do preso".

Segundo o presidente do STJ, "o uso de algemas é legítimo dentro da finalidade de garantir o cumprimento de diligência policial ou de preservar a segurança do preso, de terceiros e das autoridades policiais". "No entanto, não pode ocorrer como instrumento de constrangimento abusivo à integridade física ou moral do preso.".

[...]

Os advogados do banqueiro alegaram, em pedido de habeas corpus, "a possibilidade de uso abusivo de algemas na extradição de Cacciola", lembrando o recente e polêmico debate sobre as prisões ocorridas durante a Operação Satiagraha, dentre elas a do banqueiro do Opportunity Daniel Dantas, do ex-prefeito de São Paulo Celso Pitta e do investidor Naji Nahas." (05)

Como se vê, ainda que alvo de severas críticas pela população, vários são os fundamentos que justificam a concessão da liminar pelo Ministro do STJ, evitando, desta forma, atropelos aos princípios difundidos pela Constituição da República.

Como já citado, o Supremo Tribunal Federal, ao debruçar-se sobre o tema aqui proposto, defendeu a tese de que consiste em abuso de direito o uso indiscriminado de algemas (HC 89.429-1 / RO).

Em seu voto, a ministra relatora, Carmen Lúcia, assim se manifestou:

"[...] Afirma-se que no Brasil, o uso de algemas não estaria regulamentado, o que não parece ter eco no sistema jurídico vigente. Se nele não se encontram regras específicas e expressas sobre aquele meio empregado pelas autoridades policiais e judiciais, é bem certo que o sistema baliza as normas de princípios e até mesmo as regras que definem e limitam o uso daquele instrumento.

De resto, uma olhada breve na legislação deixa patenteado que sempre houve uma preocupação da legislação com o uso do que, inicialmente, eram os ferros, com os quais se prendiam as pessoas. [...]"

Evidente, desta forma, que não é a lacuna existente em nosso ordenamento jurídico, que autoriza o uso de algemas em toda e qualquer operação deflagrada pelas autoridades policias ou judiciárias.

O Código do Império (1830), já impunha limitações ao uso de algemas, dispondo que o deslocamento de presos "com ferros, algemas ou cordas, salvo o caso extremo de segurança", deveria ser justificado pelo "conductor", sob pena de multa. Resta latente a necessidade imperiosa de regulamentação sobre tal assunto, barrando, desta forma, os abusos cometidos pelos agentes públicos.

Prosseguindo em seu voto, a douta Ministra Carmen Lúcia, assim afirmou:

O Código Penal e o Processo Penal vigentes atualmente não tratam, específica e expressamente, do uso das algemas. Daí haver reiteradas (sic) referências à omissão legislativa quanto a esta providência que, assim, ficaria na discrição administrativa das autoridades policiais e, eventualmente, das judiciais.

Todavia, conforme afirmei na decisão sobre a liminar, a Lei de Execuções Penais, em seu art. 199, determina que o emprego de algema seja regulamentado por decreto federal, o que ainda não ocorreu.

O emprego de algemas está previsto também na legislação que dispõe sobre a segurança de tráfego em águas territoriais brasileira. O art. 10, inc. III, da Lei n. 8.537/97 estipula que o comandante da embarcação pode "ordenar a detenção de pessoas em camarote ou alojamento, se necessário com algemas, quando imprescindível para a manutenção da integridade física de terceiros, da embarcação ou da carga".

Nem de longe, portanto, se há de pensar que a utilização daquele instrumento possa ser arbitrária ou tolerada sem que regras jurídicas vigorem no País quanto ao seu emprego, pois a forma juridicamente válida do seu uso pode ser inferida a partir da interpretação dos princípios e até mesmo das regras vigentes."

Coloco-me inteiramente a favor da tese defendida pela eminente Ministra, pois não é a ausência de lei específica que autoriza o uso de algemas em toda e qualquer situação.

Reporto-me, mais uma vez, ao voto proferido pela Ministra do STF:

"Como se deu em relação aos ferros – a prisão em ferros e aos braceletes (quando se imaginava que seria necessário simbolizar o preso qualquer que fosse a situação) – as algemas são mais uma forma de impedir reações violentas ou indevidas dos presos, quer quanto a fuga, quer quanto a reações que ponham em risco a vida dos próprios presos, dos policiais ou de terceiros.

O que não se admite, no Estado Democrático, é que elas passem a ser símbolo do poder arbitrário de um sobre outro ser humano, que ela seja forma de humilhação pública, que elas se tornem instrumento de submissão juridicamente indevida de alguém sobre o seu semelhante. Nem ao menos, então, seria uma pena, mas uma forma de punição sem lei que a fundamente e, o que mais e pior, sem causa específica e sem reparação moral possível para os danos que a imagem do preso teria arcado.

Vivemos, nos tempos atuais, o Estado espetáculo. Porque muito velozes e passáveis, as imagens têm de ser fortes. A prisão tornou-se, nesta nossa sociedade doente de mídias e formas sem conteúdo, um ao deste grande teatro que se põe como se fosse bastante a apresentação dos criminosos e não a apuração e a punição dos crimes na forma da lei. Mata-se e esquece-se. Extingui-se a pena de morte física. Mas instituiu-se a pena de morte social." [original sem grifo] (06)

Em tempos remotos, quando o poder de polícia necessitava de uma auto-afirmação, de demonstrar à sociedade a que veio, ai sim seria justificável o uso de algemas, não como forma de exposição indevida do preso, mas sim, como forma de moralização e pacificação social. Pensava-se que um indivíduo preso e algemado, evitaria o cometimento de um ilícito penal por outros tantos que o vissem nessa situação.

Porém, hodiernamente, a polícia já se encontra firmada em nossa sociedade, não como gostaríamos, é verdade, mas a tal ponto, que se torna totalmente dispensável o uso das algemas como forma de exposição, de espetáculo.

Está-se punindo previamente, ou seja, é imposta uma "pena" – o uso de algemas - antes mesmo de se apurar a verdade dos fatos, esquecendo-se por completo dos princípios constitucionais vigentes.

É até compreensível que a população como um todo, leiga em se tratando de leis e justiça, clame pela exposição árdua do preso, e de preferência, da pior maneira possível. Infelizmente, essa é uma característica inerente ao cidadão, que se vangloria com a desgraça alheia.

Qualquer forma de abuso, de desproporcionalidade, de uso desnecessário da força pelo agente público, deve ser repelida, ou seja, quando o agente do Estado cumpre os propósitos jurídicos com excessos, está relegando a evolução do direito penal conquistada ao longo da história, devendo, portanto, constituir crime tal atitude.

Recentemente, um projeto de lei foi apresentado pelo deputado federal Raul Jungmann ao atual Ministro das Relações Institucionais, José Múcio, no escopo de impor puniçõesmais severas aos acusados por abuso de poder.

Assim, peço vênia para colacionar trechos de tal projeto, que viria a revogar a então vigente Lei 4.898/65, a lei de abuso de autoridade:

Art. 1o  O abuso de autoridade no exercício de função pública, em razão dela ou a pretexto de exercê-la é punido na forma desta Lei, quando praticado por agente público de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

Art. 2o  Praticar, omitir ou retardar ato, no exercício de função pública, em razão dela ou a pretexto de exercê-la, com o intuito de impedir, embaraçar ou prejudicar o gozo de qualquer dos direitos e garantias fundamentais constantes do Título II da Constituição, em especial aqueles perpetrados contra:

[...]

II - a liberdade individual (art. 5o, inciso II, da Constituição);

III - a integridade física e moral da pessoa (art. 5o, inciso III, da Constituição);

[...]

V - a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas (art. 5o, inciso X, da Constituição)

VI - a inviolabilidade da casa, da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas (art. 5o, incisos XI e XII, da Constituição);

[...]

XVI - o devido processo legal e seus consectários, inclusive a presunção de inocência (art. 5o, incisos XXXVII a XLIV e LI a LXVII, da Constituição); [...] (original sem grifo)

Pena - reclusão de quatro a oito anos e multa equivalente ao valor de dois a vinte e quatro meses de remuneração ou subsídio devido ao réu.

§ 1o  Consideradas as circunstâncias a que se refere o art. 59 do Código Penal, o juiz também poderá decretar:

I - a perda do cargo, emprego ou função; e

II - a inabilitação para o exercício de qualquer outro cargo, emprego ou função pelo prazo de até oito anos.

§ 2o  As penas cominadas neste artigo serão aplicadas autônoma ou cumulativamente de acordo com as regras dos arts. 59 a 76 do Código Penal.

§ 3o  Quando o abuso for cometido por agente de autoridade policial, civil ou militar, de qualquer categoria, poderá ser cominada pena autônoma ou acessória de não poder o acusado exercer funções de natureza policial ou militar no município da culpa, por prazo de até doze anos.

§ 4o  São também crimes de abuso de autoridade quaisquer atentados contra outros direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Constituição e tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte (art. 5o, § 2o, da Constituição).

Art. 3o  Nas mesmas penas incorre quem:

I - ordenar ou executar medida privativa da liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder;

II - submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento;

[...]

X - empregar a força, salvo quando indispensável em razão de resistência ou tentativa de fuga do preso (Código de Processo Penal, art. 284) [...]

Art. 4o  Considera-se autoridade, para os efeitos desta Lei, o ocupante de cargo, função ou emprego público da Administração Pública direta, autárquica ou fundacional, o membro de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, do Ministério Público ou da Defensoria Pública e o detentor de mandato eletivo.

[...]

Art. 8o  A sanção administrativa será aplicada de acordo com a gravidade do abuso cometido e consistirá em:

I - advertência;

II - repreensão;

III - suspensão do cargo, função ou posto por prazo de cinco a trezentos e sessenta dias, com perda de vencimentos e vantagens;

IV - destituição de cargo comissionado ou função gratificada; ou

V - demissão, a bem do serviço público.

Parágrafo único.  O processo administrativo não poderá ser sobrestado para o fim de aguardar a decisão da ação penal ou civil.

Art. 9o  A sanção civil, caso não seja possível fixar o valor do dano, consistirá no pagamento de uma indenização de R$ 1.000,00 (mil reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais).

Parágrafo único.  Proferida a sentença condenatória, a União exercerá, no prazo de trinta dias, o seu direito de regresso contra o responsável (art. 37, § 6o, da Constituição). (7)

Aplaudível a atitude do nobre deputado ao apresentar projeto de lei que vise coibir o abuso de autoridade, impondo penas severas aos seus infratores.

Ainda, em suas justificações, assim expôs o autor do projeto, deputado Raul Jungmann:

A Lei no 4.898, de 9 de dezembro de 1965, relativa ao abuso de autoridade, está defasada. Precisa ser repensada, em especial para melhor proteger os direitos e garantias fundamentais constantes da Constituição de 1988 (mais rica no particular do que a Constituição de 1946, vigente quando da promulgação da Lei no 4.898, de 1965), bem assim para que se possam tornar efetivas as sanções destinadas a coibir e punir o abuso de autoridade.

Já não era sem tempo. Resta saber se, aprovado tal projeto de lei, terá efetividade o decreto que o regulamentar, pois como já demonstrado, mesmo que tacitamente, nosso ordenamento jurídico trata do uso de algemas, mas essas leis não são respeitadas.

Como bem expressou o Ministro Carlos Britto no já citado HC 89.429-1 / RO, parafraseando a "idade média", estamos vivendo a "idade mídia", em que as algemas são o verdadeiro símbolo da justiça, mesmo que para isso, alguém precise ser humilhado e ridicularizado.

Ora, os "espetáculos" promovidos especialmente pela Polícia Federal, não atende aos fins da pena, não garantem a punição dos culpados. Assim, vale dizer que não é montando um circo em torno de uma situação, que se valoriza o Poder Judiciário. A eficácia de tais ações é que diamantiza a atividade dos inúmeros agentes que lutam para reprimir o crime.

Desta forma, entendo que o uso das algemas só pode ser considerado legítimo se utilizado para impedir, prevenir ou dificultar a fuga do preso ou, na pior das hipóteses, para coibir alguma atitude indevida do preso, como agressão a terceiros, devendo, nesse caso, haver justificado receio de que o presumido venha a se concretizar, ainda que se corra o risco de sucumbirmos na subjetividade que o juízo de valor exigido do agente público requer.

Qualquer ato vexatório à dignidade e a honra do preso, e pior, que vise sua exposição desnecessária à imprensa para promoção de órgãos que tem como obrigação o combate ao crime, deve ser repudiada e seu autor devidamente apenado. A Polícia Federal, assim como qualquer órgão público repressor, não precisa se dar ao trabalho de exibir suspeitos em condições vexatórias para mostrar sua eficiência. Ela tem a obrigação de ser eficiente. É para isso que existe.

Deve-se evitar expor o indivíduo como se fosse um "troféu da diligência policial", como bem nomeou o Excelentíssimo Ministro Sepúlveda Pertence ao votar no citado HC 89.429 / RO, respeitando, sobre tudo e sobre todos, os princípios fundamentais garantidos pela República Federativa do Brasil.

Algemar quem não oferece qualquer risco, como se isso fosse obrigatório no agir policial, configura abuso de poder. Não há justificativa para o não cumprimento do até agora disposto em nosso ordenamento jurídico.

Porém, não se pode admitir, também, que cada Estado regulamente o uso das algemas como bem entender e pior, que as aplique a quem bem entender. Necessária uma legislação federal que uniformize o uso de tal procedimento em todo o Brasil, evitando, desta forma, ainda mais divergência de entendimento quanto ao uso legítimo das algemas, sendo aplicada à todos, indistintamente, rico ou pobre, branco ou negro.

Enquanto isso nos resta aguardar uma atitude resoluta dos nossos representantes, que venha a efetivar, de uma vez por todas, o que há tempos é disposto acerca do uso de algemas em nosso país, pugnando arduamente pelo fim do abuso de autoridade.

"O direito não é uma pura teoria, mas uma força viva. Todos os direitos da humanidade foram conseguidos na luta. O direito é um trabalho incessante, não somente dos poderes públicos, mas da nação inteira." (Rudolf Von Ihering)

Vamos lutar pelos nossos direitos. A democracia depende de nós.

Notas:

1. PITOMBO, Sérgio Marcos de Moraes. Emprego de Algemas – Notas em prol de sua regulamentação. Disponível em <http://www.processocriminalpslf.com.br/algemas.htm>. Acesso: 28 jul. 2008. Artigo originalmente publicado na Revista da Associação dos Magistrados do Paraná, Curitiba, v. 36. p. 19-61. jul./dez;, 1984.

2. MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislaçãoconstitucional / Alexandre de Moraes. – 5. ed. – São Paulo : Atlas, 2005.

3. Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda, 1910-1989. Novo Aurélio Séc. XXI: o dicionário da língua portuguesa – 3. ed. totalmente revista e ampliada. – Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1999.

4. Günther Jakobs é um doutrinador alemão que enunciou o direito penal do inimigo, sustentando desde 1985 a sua tese com base nas políticas públicas de combate à criminalidade. Foi tido com um dos mais brilhantes discípulos de Welzel. É considerado inimigo quem se afasta de modo permanente do Direito e não oferece garantias de que vai continuar fiel à norma. São os criminosos econômicos, terroristas, delinqüentes organizados, autores de delitos sexuais e outras infrações penais consideradas graves. Pelo direito penal do inimigo, ao cometer um ilícito penal, o indivíduo passa a não mais fazer parte do Estado democrático de direito, sendo relativizados todos os princípios norteadores da dignidade humana, amplamente pregados pela Constituição Federal. O infrator da lei passa a ser considerado um verdadeiro inimigo do Estado.

5. Notícia veiculada no Jornal Folha de São Paulo, cujo autor é Felipe Seligman. Em 17 jul. 2008. P. A-12.

6. A Ministra relatora, Carmen Lúcia, no citado HC 89.429-1 / RO, concedeu o habeas corpus requerido pelo impetrante, a fim de "determinar às autoridades tidas como coatoras que se abstenham de fazer uso de algemas no paciente, a não ser em caso de reação violenta que venha a ser por ele adotada e que coloque em risco a sua segurança ou a de terceiros [...]". Maiores informações podem ser obtidas através do Informativo n.º 437 do STF, disponível em <http://www.stf.gov.br/arquivo/informativo/documento/informativo437.htm#Uso%20de%20Algemas%20e%20Constrangimento%20Ilegal%20-%201>

7. Disponível em <http://www.rauljungmann.com.br/>. Acesso em: 27 jul. 2008.