Uso da exceptio non adimpleti contractus em face da Administração Pública

A excepctio non adimpleti contractus, ou exceção do contrato não cumprido, é uma defesa contratual surgida e difundida no âmbito do Direito Privado, inclusive positivada no nosso Código Civil em seu art. 476. Trata-se de ferramenta, através da qual, um dos pólos do contrato se escusa de adimplir sua obrigação enquanto o outro não executar a que lhe cabe.

Na seara do Direito privado é comum a utilização desta cláusula, contudo, a discussão se desenvolverá emoldurada pelo Direito Administrativo, quanto à possibilidade da argüição da exceptio non adimpleti contractus em face da Administração Pública.

Parte da doutrina, a mais conservadora, não admitia a exceção do contrato não cumprido perante a Administração por contrariar princípios basilares como o Princípio da continuidade do serviço público, e o Princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, de modo que o particular não poderia interromper a execução do contrato, tal prerrogativa era apenas dada à Administração, portanto o contratado deveria requerer administrativamente ou judicialmente a rescisão contratual. Devido à natural evolução do Direito, tanto doutrina quanto jurisprudência passaram a abrandar tal proibição, pois observou-se que muitas vezes o Ente público agia de forma arbitrária, locupletando-se indevidamente, o que é condenável num Estado Democrático de Direito, além do dever de manter no contrato administrativo o equilíbrio econômico - financeiro. E é a corrente que será aqui adotada, no sentido de ampliar a utilização desta ferramenta pelos contratados da Administração.

Dentre os importantes doutrinadores que abordam no mesmo sentido sobre o tema, cita-se primeiro Maria Sylvia Zanella di Pietro, com a clareza que lhe é habitual, o Fato da Administração pode provocar uma suspensão da execução do contrato, transitoriamente, ou pode levar a uma paralisação definitiva, tornando escusável o descumprimento do contrato pelo contratado e, portanto, isentando-o das sanções administrativas que, de outro modo, seriam cabíveis.[1]

Ou seja, em regra admite-se a cláusula, objeto deste estudo, dentro da teoria do Fato da Administração, quando por sua conduta torna impossível a execução do contrato pelo contratado (particular), ou causa um desequilíbrio econômico extraordinário.

Mesmo célebres autores como Hely Lopes Meireles parecem aceitar com cautela esta corrente, pois segundo ele, em regra, a exceptio non adimpleti contractus é inoponível à Administração, não pode, o particular, suspender a execução sumariamente, à exceção de ele sofrer encargo insuportável ou não poder cumprir sua obrigação por inoperância da Administração, por exemplo quando a Administração deixa de entregar o local da obra ou serviço, ou não providencia as desapropriações necessárias, ou atrasa os pagamentos por longo tempo, ou pratica qualquer ato impeditivo dos trabalhos da outra parte [...] [2]

Com o advento da Lei 8.666, de 21 de junho de 1993 evidenciou-se a possibilidade de utilizar tal defesa em seu art. 78, incs. XIV a XVI[3]. Bem explica Marçal Justen Filho[4] que, na hipótese do inciso XIV em virtude das “imprevistas desmobilizações e mobilizações”, a que deu causa a Administração, é facultado ao contratante suspender a execução do contrato até que seja normalizada a situação. Já no caso de prestação continuada, em que o ente público incorre em atraso superior a 90 dias, é aceita expressamente a suspensão da execução pelo contratado (art. 78, inc. XV), relevando se houve imposição de ônus insuportável. Aqui diverge-se quanto à existência do ônus, pois configurada a hipótese de atraso de 90 dias está mais do que caracterizado o prejuízo ao particular. E finalmente quanto ao inc. XVI, do artigo citado, Marçal comenta que [...] o particular não pode ser constrangido a executar sua prestação quando ela dependa, causalmente, de providência prévia a cargo da Administração. Aliás a permanência desse estado de coisas autoriza, inclusive, a rescisão do contrato [...].[5]

Seguindo os ensinamentos do mesmo autor, sempre que a Administração deixar de cumprir determinação legal, quanto aos adimplementos de suas obrigações no contrato administrativo, deve-se considerar a recusa do particular em executar a sua prestação. Para aqueles que defendem a exceção do contrato não cumprido, contra a Administração, em sua maior abrangência de aplicação, questiona-se, como exemplo de descumprimento legal, o atraso do pagamento por parte de um determinado órgão público. Antes de se firmar um contrato com a iniciativa privada é sabido que deve-se ocorrer aprovação orçamentária, portanto injustificado qualquer atraso de pagamento, pois é de se supor que deva haver a reserva do capital, caso contrário incorre em ilegalidade, e assim sendo, seria aceitável a suspensão do contrato, pelo particular, antes mesmo dos 90 dias referente ao art. 78, inc. XV da Lei 8.666/93. Neste ponto deve-se acautelar, relevando o princípio da continuidade do serviço, legalidade, interesse coletivo, e quanto a efetivo prejuízo ao contratado ou a impossibilidade da execução da obrigação. Aqui abre-se um parêntese para criticar o uso indiscriminado da justificação com base unicamente no princípio da continuidade do serviço, que é utilizado até mesmo no caso em que não se trata de serviço, como a compra de um bem, no momento em que não é pago o valor devido, é lícito a recusa do cumprimento pelo particular.

A jurisprudência também vem abrangendo as hipóteses para o uso da cláusula em tela:

AÇÃO DE COBRANÇA. CONTRATO ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CONTRATUAL. SERVIÇOS DE PAVIMENTAÇÃO ASFÁLTICA. RESCISÃO UNILATERAL DO CONTRATO PELO MUNICÍPIO, SEM A INSTAURAÇÃO DE REGULAR PROCESSO ADMINISTRATIVO. PROVA NOS AUTOS A INDICAR DESCUMPRIMENTO CONTRATUAL DA ADMINISTRAÇÃO. OBRIGAÇÃO DO MUNICÍPIO EM SALDAR A PARTE CONCLUÍDA DA OBRA. PROVA DOCUMENTAL E TESTEMUNHAL DA PRESTAÇÃO PARCIAL DA OBRA CONTRATADA. Havendo prova substancial da dívida, e reconhecimento por parte da Administração, por parte do Secretário Municipal responsável à época dos fatos, confirmando ter a contratada concluído parte da obra, não pode esta última furtar-se ao pagamento do serviço prestado, na parte concluída, sob o argumento de rescisão unilateral do contrato, sem a realização de procedimento administrativo para tanto, sob pena de configurar caso de enriquecimento ilícito da Administração. Prova dos autos a indicar a inadimplência de obrigações assumidas pela Municipalidade, no tocante a preparação do terreno para a realização das obras. Aplicação do princípio da exceptio non adimpleti contractus. Ante a verificação da culpa concorrente do Município para a inexecução do contrato, impõe-se a ele o dever de liberar os valores caucionados pela autora, como garantia do contrato. Procedência parcial da ação. APELAÇÃO NÃO PROVIDA. SENTENÇA CONFIRMADA EM REEXAME NECESSÁRIO, COM EXPLICITAÇÃO. (Apelação e Reexame Necessário Nº 70013774120, Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Henrique Osvaldo Poeta Roenick, Julgado em 26/04/2006)

Cita-se também excelente acórdão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, o qual se amolda perfeitamente à corrente aqui adotada:

ADMINISTRATIVO. CONTRATO PARA FORNECIMENTO DE COBERTORES. EXCEÇÃO DO CONTRATO NÃO CUMPRIDO. - Se o descumprimento integral da segunda parte do contrato pelo particular decorreu exclusivamente do atraso no recebimento do preço acordado com a União, acarretando prejuízo insuportável ao contratado, está justificada a invocação da "exceção do contrato não cumprido". - Inobstante os contratos administrativos estarem submetidos a regime jurídico próprio em que tem lugar a supremacia do Poder Público, esta não pode ultrapassar os condicionamentos do Estado Democrático de Direito. - A União, ao deixar de cumprir a cláusula atinente às condições de pagamento, parcelando o preço, procedeu a verdadeira alteração do contrato, violando o princípio do equilíbrio econômico-financeiro; por isso, não encontram respaldo legal a rescisão do contrato pela União assim como a cominação das penas de multa e advertência. - Mantida a sentença que rescindiu o contrato com fundamento no art. 78, XV, da Lei nº 8.666/93, condenando a ré ao pagamento devido nos termos do art. 79, §2º. - Honorários advocatícios elevados para 10% sobre o valor da condenação, na esteira dos precedentes da Turma. - Prequestionamento quanto à legislação invocada estabelecido pelas razões de decidir. - Apelação da autora provida. Apelação da União e remessa oficial improvidas. (TRF4, AC 1999.04.01.034581-0, Quarta Turma, Relator Silvia Maria Gonçalves Goraieb, DJ 14/11/2001)

Deste acórdão é válido destacar trecho que ilustra o que já foi dito, sobre o desvirtuamento do princípio da continuidade do serviço público, que muitas vezes é usado para finalidades distintas ao interesse coletivo, e também serve à elucidação do tema, aqui tratado, em si:

Subjaz aos argumentos postos na apelação da União que o não pagamento no prazo acordado não teria qualquer relevância jurídica, cabendo unicamente à autora a observância dos prazos contratados, em atendimento ao princípio da continuidade do serviço público (itálico no original), que veda ao particular a suspensão do cumprimento do contrato em face da omissão ou atraso da Administração.

Sob tal pretexto, via de regra, não é dado àquele que contrata com o Poder Público recusar-se ao atendimento das prestações a que se obrigou.

Ao princípio, todavia, deve ser conferida a devida parcimônia, porque a inadimplência do Poder Público não pode ser de tal forma relevante que acarrete prejuízo insuportável ao particular, desestabilizando-o, como ocorreu na hipótese dos autos, uma vez que a falta de cumprimento integral da segunda parte do contrato por parte da apelada decorreu exclusivamente do atraso no recebimento do preço acordado.[6]

Após tudo o que foi dito, conclui-se que deve ser execrada do direito brasileiro a idéia da impossibilidade de aplicação da exceptio non adimpleti contractus em face da Administração Pública, não se pode mais aceitar tal retrocesso. A argüição de princípios como continuidade do serviço público e do interesse coletivo, não podem mais, servir às arbitrariedades de indivíduos que põem seus próprios interesses camuflados pelo manto da Administração. A defesa em questão também resguarda o princípio do interesse público, no sentido de que é interesse de todos garantir aos particulares confiança em contratar com o Poder Público, este é o causador e maior prejudicado pela insegurança crescente da iniciativa privada em contratá-lo.

Pelo posto, prega-se a abrangência da exceptio non adimpleti contractus, para encorajar as empresas a contratar com a Administração, pois terão uma defesa efetiva e rápida, sem ter de depender, pelo menos de maneira imediata, de providências judiciais.

REFERÊNCIAS:

Brasil. Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 22 jun. 1993

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 17.ed. São Paulo: Atlas, 2004.

JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 11. ed. São Paulo: Dialética. 2005.

JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 2 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006.

Brasil. Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 22 jun. 1993.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 33. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.

MEIRELLES, Hely Lopes. Licitação e Contrato Administrativo. 13. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.

[1] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 17.ed. São Paulo: Atlas, 2004. p.266.

[2] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 33. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 239.

[3] Art. 78.  Constituem motivo para rescisão do contrato:

(...)

XIV - a suspensão de sua execução, por ordem escrita da Administração, por prazo superior a 120 (cento e vinte) dias, salvo em caso de calamidade pública, grave perturbação da ordem interna ou guerra, ou ainda por repetidas suspensões que totalizem o mesmo prazo, independentemente do pagamento obrigatório de indenizações pelas sucessivas e contratualmente imprevistas desmobilizações e mobilizações e outras previstas, assegurado ao contratado, nesses casos, o direito de optar pela suspensão do cumprimento das obrigações assumidas até que seja normalizada a situação;

XV - o atraso superior a 90 (noventa) dias dos pagamentos devidos pela Administração decorrentes de obras, serviços ou fornecimento, ou parcelas destes, já recebidos ou executados, salvo em caso de calamidade pública, grave perturbação da ordem interna ou guerra, assegurado ao contratado o direito de optar pela suspensão do cumprimento de suas obrigações até que seja normalizada a situação;

XVI - a não liberação, por parte da Administração, de área, local ou objeto para execução de obra, serviço ou fornecimento, nos prazos contratuais, bem como das fontes de materiais naturais especificadas no projeto;

[4] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 11. ed. São Paulo: Dialética. 2005.

[5] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 11. ed. São Paulo: Dialética. 2005. p. 599.

[6] TRF4, AC 1999.04.01.034581-0, Quarta Turma, Relator: Silvia Maria Gonçalves Goraieb, DJ 14/11/2001.