Para assinalar o desenvolvimento urbano no Brasil fez-se necessário uma atenta visita a memória da "Herança Colonial" brasileira, ou seja, observarmos como a sociedade e o território brasileiro se desenvolveu no contexto histórico da colonização.

Buarque de Holanda (1995) caracterizou de modo brilhante nosso modo de colonização denominando de semeador o "português", que estabelecido no litoral, constituía cidades irregulares sem qualquer planejamento, fato que se explicava, segundo o autor, pelo desejo de fazer fortuna rápida dispensando assim o trabalho regular. Daí advém às relações sociais de caráter personalista, patriarcalista e clientelista na qual influênciaram substancialmente a formação social brasileira e a dinâmica urbana no Brasil.

No nosso país esses fenômenos como paternalismo e clientelismo se adaptaram ao processo urbano-industrial, arliculando um novo tipo de sociedade sob forma desigual, na qual a relação patrão e clientese fundamentava no interesse em obter bens valorizados, proteção e favor criando um tipo de capitalismo dependente em que a visão tradicionalista e a moderna redefinia as esferas da sociedade. A urbanização no Brasil, no âmbito de suas especificidades, ao invés de enfraquecer e fragmentar os laços de parentescos na sociedade, ao contrário, demonstrou-se mais forte, sendo esses laços a mola propulsora das grandes funções dentro do dinâmismo da estrutura social.

Outro importante autor para a compreensão desse processo histórico é Gilberto Freyre que em "Sobrados e Mucambos" explicita as discussões acerca da evolução urbana no Brasil ao qual é visto sob o clima de mudança da casa para a rua. Ou seja, a sociedade fechada formada nos engenhos e fazendas através do personalismo, perde esta individualidade para se tornar mais aberta e pública ganhando as ruas das cidades que se modernizam e crescem. Uma sociedade que fragmentou uma tradição rural e patriarcal de trezentos anos a fim de se viver um sonho urbano. Para esses intelectuais são estes alguns fatores que caracterizam e nos auxiliam à compreender do desenvolvimento da urbanização brasileira e a sua formação social desde a colonização aos dias atuais, de modo a contribuir para percebermos como a nossa sociedade se desenvolveu ao longo dessas discussões.

O urbanismo brasileiro teve início profíncuo com a vinda da "Famíla Real" em 1808. A partir daí pudemos observar as construções, ou seja, o desenvolvimento da cidade do Rio de Janeiro, atual capital do Brasil naquele contexto, com a utilização do aparato burocrático inserido nas relações administrativas e a intervenção do legado de nossa herança colonial como idéia e forma de desenvolvimento dos espaços, principalmente o urbano, no qual as visões tradicionais vão se confrontando com os valores modernos emergidos na Europa e que foram apropriados pelo Brasil. Desta forma com o desenvolvimento das cidades, a hierarquização das relações sociais foi firmada pela oposição entre o nosso mundo arcaico e os valores europeus burgueses, principalmente aqueles relativos às transformações do estilo de vida na sociedade, que vieram integrar-se ao perfil do caráter nacional, criando espaço para uma sociabilidade até então não existente.

O urbanísmo intervém nas cidades a partir de construções e planejamentos a fim de legitimar uma crescente modernização e também poder justificar essas intervenções no espaço urbano. O processo de urbanização no Brasil se desenvolveu de modo complexo. Sua pesquisa histórica é feita, em sua maioria por profissionais da arquitetura (Fernandes; Gomes, 2004), dessa forma, não ultrapassando os limites da construção física. Quando na realidade, torna-se necessária uma investigação histórica profunda (ofício do historiador) que analise de forma problematizadora os sujeitos, as tramas espaço-temporais e o significado desse processo para uma determinada sociedade.

No Brasil diversas teorias contribuíram para o desenvolvimento urbano, exemplo foram as teorias médicas, situadas entre fins do século XIX e parte do século XX, objetivando reforçar um conjunto de formas de pensamento e atuação no sentido de intervenção nas cidades, fazendo-se assim uma apropriação nacional de idéias urbanísticas já tão bem processadas e desenvolvidas na Europa. Essa influência pôde ser observada na então capital brasileira, o Rio de Janeiro

No discurso que proferiu o então Dr. Alreliano Portugal, médico da saúde pública, enalteceu as vitórias alcançadas pelo prefeito como se fosse ele o chefe militar de uma blitzkrieg. Em três anos conseguiria desalojar milhares de pessoas de suas habitações [...], demolir no todo ou parcialmente, cerca de dois mil prédios promovendo ao mesmo tempo mil outras [obras] de ordem diversa, tendentes ao saneamento e embelezamento de uma cidade extensíssima, que conta em seu seio cerca de um milhão de habitantes.(BENCHIMOL, 2001: 233).

Essas teorias como forma de se pensar no belo em oposição à feiúra e da higienização em oposição à insalubridade se referem tanto ao aspecto estético como em relação ao imaginário elitista da época. Essas transformações se tornaram possíveis a partir da República, remodelando as cidades acerca dos princípios de racionalidade que objetivava corrigir os erros de suas origens marcadas pelo atraso, assim como o desenvolvimento da sociedade nos rumos da modernidade. Assim

Além das obras de demolição e reconstrução sem precedentes na História dessa e de outras cidades brasileiras, um cipol de leis e posturas procurou coibir ou disciplinar esferas da existência social refratárias à ação do Estado. A reforma urbana foi, na realidade, o somatório não previsto das ações de múltiplas forças, humanas e não humanas. (BENCHIMOL, 2004: 234).

Essas reformas urbanas realizadas em diversas cidades brasileiras (XIX e XX) lançaram as bases de um urbanismo moderno. Foram construídas obras para o embelezamento paisagístico de acordo com as exigências do modo de produção capitalista, no qual pudemos perceber, em contrapartida, a exclusão da população menos favorecida, marginalizada das benésses desse processo. Desse modo expulsando- as para as ditas "periferias" da cidade. Podemos relacionar a forte influência no processo de urbanização brasileira com a importância do trabalho escravo, já que segundo Nabuco, o peso do trabalho escravo tornaria-se presente mesmo após a abolição, com a força de trabalho livre e pela influência do poder político relacionado ao patrimonialismo pessoal. Então observamos que os processos históricos no Brasil foram permeados por constantes contradições, pois

O modo de vida da maior parte da população urbana ao evidenciar a convivência dos bens modernos, com um ambiente de um casebre cuja construção parece remontar a uma era pré- moderna- leva a conclusão de que não é possível dissociar esse urbano e essa moradia dessa sociedade e desse modelo de industrialização e desenvolvimento [...] A tragédia urbana brasileira, não é produto das décadas perdidas. Tem suas raízes em cinco séculos de formação da sociedade brasileira, em especial a partir da privatização da terra (1850) e da emergência do trabalho livre (1888). (MARICATO, 2000: 24).

Ao longo de nossos estudos acerca do processo histórico urbano pudemos perceber o caráter do desenvolvimento de cunho concentrador da urbanização e consequentemente da aglomeração e do inchaço das cidades que, por sua vez, interferiram nas relações sociais tanto política, econônica quanto culturalmente dos indivíduos. Uma possibilidade de explicação seria, talvez, devido à influência das teorias européias desenvolvidas em resposta à modernidade ter chegado ao Brasil antes mesmo que essa modernização aqui acontecesse de fato. Assim as elites locais procuraram urbanizar o país sem fazer uma correlação com a transformação das estruturas socias. Tornou-se imprescindível, para nós historiadores, a compreensão de o porquê do urbanismo no Brasil procurou criar espaços para uma sociedade moderna que ainda não existia realmente. Ora, isso pode ser explicado através dos costumes da vida no Brasil durante o século XIX, no qual os indivíduos mais abastados tentavam se comportar o mais próximo possível do comportamento europeu, fruto do contato dos brasileiros com a Europa a fim de se educarem ou para outros fins. Esse modo de vida burguês começou a ocorrer no Brasil mesmo antes da industrialização, diferenciando- se a população urbana, não apenas economicamente, mas também de uma forma cultural. Isso também pôde ser compreendido a partir da análise do autor de Sobrados e Mucambos, pois atentou para o fato de que a europeização e o aburguesamento so­cial, impulsionados por idéias que haviam tido origem em uma realidade social diversa, chegavam refratados, singularizando-se, já que não havia aqui nem uma urbanização clássica, nem um grupo social que pudesse ser considerado como burguesia, uma vez que a sociedade brasileira somente se urbanizava e ainda era marcada pelo escravismo.

Importante observarmos o desenvolvimento das futuras décadas que contribuíram para reforçar as práticas urbanísticas no país. Exemplos foram o impulsionamento do Estado Novo nesse processo, assim como no pós- guerra entre 1946 e 1964, na revolução civil-militar, passando pela redemocratização, enfim, a questão nacional foi sendo retomada através de intensas discussões ao longo desses anos. Temas de progresso e modernidade eram gerados em oposição ao subdesenvolvimento. Exemplo disso pode- se observar

A inauguração de Brasília, em 1960, que propiciou uma marcha para o oeste e a consequênte integração territorial, suscitou debates acalorados que giravam em torno da necessidade de se gastar tanto dinheiro para sua realização e do arrojo de sua arquitetura considerada extremamente moderna e avançada. (OLIVEN, 2001:08).

Podemos inferir que o processo de urbanização a partir desse momento vai se estruturando aos moldes da valorização de uma cultura nacional em oposiçao aquela apropriação da cultura européia. Logo o resgate dessa cultura nacional se constituiu em impulso decisivo rumo à modernização. Essa urbanização com a intensa valorização do moderno foi fruto do pragmatismo de uma determinada concepção de mundo onde as práticas e representações socias se articularam a favor do estabelecimento do domínio do espaço urbano. Assim a sociedade brasileira foi marcada por ações, princípios e pensamentos urbanos desde a colonização, caracterizando-se ora por contradições no próprio espaço de suas relações sociopolíticas, econômicas e porque não dizer culturais, ora por um reforço de seu caráter nacionalisa, distanciando-se (mas ainda fortemente influênciada), do simbolismo cultural europeu em detrimento de sua própria produção intelectual, econômica e de simbologias.

A complexidade da urbanização no Brasil resultou da tentativa de conciliação das exigências da modernidade com as suas peculiaridades. Isto apontou para o caráter sincrético da modernidade brasileira implicando, desse modo, na caracterização da formação social no seu modo de relações sociais internas e externas, na sua organização espacial e econômica, em sua importação e exportação de simbolismos culturais, inclusão e exclusão no processo ideológico e prático das construções das cidades.

É provável que o que haja de peculiar à sociedade brasileira seja justamente sua capacidade de deglutir aqueles aspectos da modernidade que lhe interessam, transformando- a em algo adaptado à sua própria realidade em que o moderno se articula com o tradicional, o racional ao afetivo, o individual ao pessoal.(OLIVEN, 2001: 12).

Consideramos que essas idéias discutidas acima, nos mostraram o caráter complexo que permeou o nosso processo histórico, reforçando a diversidade de experiências tanto no tempo como no espaço. E nos fez compreender também as características fundamentais da nossa sociedade desde a sua colonização e perceber algumas permanências e/ ou rupturas processadas em nossos dias. Uma sociedade marcada por desigualdades sociais, decorrentes em sua maioria do processo de urbanização tanto pensada como praticada no Basil.