285 - UMA  VISITA  INESPERADA  DE  NATAL

 

 

Véspera de Natal.

A casa estava um rebuliço.

Vinte e tantos parentes, vindos de toda a parte, instalados precariamente nos quartos, nas salas, na garagem.

 

Dez mulheres lutando bravamente com as comidas; aquele peru  escorregadio e gelado,  a massa da lasanha escorregadia e fervendo, o bolo no forno com aroma de baunilha, as amêndoas torrando, com perfume de licores antigos.

Um calor insuportável, avançando em ondas, da porta da cozinha.

 

Dez homens, bravamente espichados, em posições cômodas mas ridículas, na sala de estar, ao redor da TV, discutindo acirradamente o último pênalti do último jogo decisivo; uma guerra.

 

Meia dúzia de pirralhos, correndo de um lado para outro da casa, tropeçando nos móveis, empurrando-se, rindo, gritando.

Um rebuliço, eu disse.

 

Vovó Helena passou tropeçando, enquanto arrastava lentamente  seus noventa anos até a cozinha.

- Posso ajudar? Tem alguma coisa que eu possa fazer?

- Fique descansada, mamãe!

- Posso descascar umas batatas...

- Você já fez tudo o que podia, nos últimos setenta anos! Agora é a nossa vez!

- Sente-se aqui, pare de andar, de se fatigar, Vovó!

- Mas eu queria ajudar...

- Está tudo sob controle, fique quietinha, tranquila!

- Tomou sua pastilha?

- Qual?

- A das nove, aquela azul; e a outra, a amarelinha das dez e meia; e aquela quadrada do meio dia.....

- Acho que tomei todas. Mas não me lembro...só ter que me lembrar de toma-las, me cansa....

- Bem, é melhor você não tomar nenhuma, Vovó; hoje é véspera de Natal. Vai abusar do espumante, com certeza. E pode lhe fazer mal. Vá com calma, viu?

- Puxa, meninas! Este ano vieram todos...de todas as partes.  Foi uma boa surpresa.

- Fomos eu e a Marta, que conseguimos, vovó – respondeu Elisa - Alguns não queriam, outros não podiam, outros ainda não deviam.  Mas é Natal e no fim conseguimos convencer todos.  Não é bom assim? . 

- Bom demais, querida. Só faltou o Tio Homero!

 

O burburinho parou, como se alguém tivesse pronunciado uma palavra terrível.

 

Tio Homero tinha saído de casa muitos anos antes, numa noite de Natal, depois de um bate-boca sem importância.

Nunca mais se soubera nada dele;  acreditava-se que tivesse morrido, ou que estivesse perdido em alguma floresta da Índia ou da África Ocidental.

Mas a Vovó ainda lembrava muito bem dele.

E quando os programa da TV ficavam absolutamente chatos, insuportáveis, ela ligava aquela velha vitrolinha, repetindo que tinham sido tão próximos na juventude; contando novamente que tinham crescido juntos, amigos carinhosos,  companheiros de verdade; que ainda sentia imensa saudade dele..

As netinhas imaginavam algo mais;  conversavam sempre  em voz baixa,  perguntando-se o que haveria, além do que a Vovó contava; se ela tinha uma lembrança tão forte, se ficava tão emocionada, algo deveria ter havido.

Mas eram irmãos!

Não, não. Vovó nunca faria nada errado.

Era a mente torcida delas que estava a criar fantasmas. 

Vergonha!

 

Aos poucos a mesa foi se enchendo de pratos, talheres, copos,  bandejas...

Alguém acendeu as duas velas do candelabro, colocado ao centro da mesa.

O barulho da conversa diminuiu, houve um momento de quase-silêncio,  de concentração, de recolhimento, que tocou levemente cada um ..

 

Antes que as conversas recomeçassem,  a campainha da porta tocou.

 

- São onze horas! Quem será?

- Cuidado com os assaltantes!

- Não abra a porta!

- Pergunta primeiro quem é! 

 

O Osvaldo e o Albertinho – o primeiro faixa preta de judô e o segundo um peso pesado de 130 quilos- avançaram para a porta.

Um silêncio absoluto baixou  na casa inteira, como se fosse uma pesada cortina de veludo. 

 

- É um homem, um pobre, pedindo esmola! – a voz tranquila do Osvaldo aliviou a tensão.

- Vamos dar-lhe  alguma coisa! – acrescentou a Marilda.

- Mas súbito, sem deixar espaços, a voz da Vovó  Helena levantou-se segura:

- É o Homero! Finalmente voltou! Façam-no entrar! Rápido!

Entre a desconfiança de alguns, a incredulidade de outros, o ceticismo de todos, o “Homero” avançou para o centro da sala e se encontrou face a face com a Vovó .

 Era um maltrapilho de meia idade, mal vestido, cabelo desalinhado,  provado pelas vicissitudes da vida, o rosto sulcado de rugas precoces. Não teria cinqüenta anos, mas aparentava muitos mais.

E a Vovó tinha noventa...

Todos perceberam a incongruência, mas ninguém abriu a boca.

- Oh Homero, há quanto tempo! Pensei que não nos veríamos mais; sabe estou tão  velha, sinto-me tão cansada, tão trôpega...Se você demorasse mais um pouco, não me  encontraria mais...Estou tão feliz!... Mas você está bem? Quer se lavar, tomar  um banho,trocar de roupa?

Osvaldo, por favor, ajuda o Homero!

Ela estava radiante, lépida, feliz; parecia ter rejuvenescido vinte anos.

Levaram o “Homero”  para cima, deram-lhe roupas, ele se lavou, fez a barba, penteou-se, voltou outro.

- Ah, agora, sim! Agora é o meu Homero! Sabe que quase não o reconheci quando entrou? 

Deram-lhe um lugar perto da Vovó, pratos, talheres, copo, um guardanapo bordado, serviram-lhe vinho. Todos sentaram à mesa, e “Homero” pôde livrar-se da fome crônica que  o acompanhava há meses. 

Houve brinde, mas na hora do discurso, foi ele que levantou e agradeceu:

- Nunca estive em uma família tão grande, tão feliz, tão generosa – disse .

E continuou tecendo elogios, olhando nos olhos de cada um, e parando por fim nos da Vovó Helena,  que o fitava embevecida:

- A você, minha menina querida, meu agradecimento. Você sabe que, infelizmente, meu destino é andar, sem parar, sem descansar. Fiquei contente em ver todos aqui, com saúde, com disposição, com o ânimo em paz. E agradeço sua acolhida, sua generosidade.

Espero revê-los no ano que vem, se nossos caminhos se cruzarem outra vez.

Espero que todos tenham saúde e sorte. Vou levar comigo uma lembrança doce, carinhosa. Fiquem com Deus. Obrigado!

Olhou de novo nos olhos da Vovó, profundamente, silenciosamente. Os dois ficaram com a vista turva, os olhos marejados se lacrimas, comovidos inapelavelmente.

- Eu disse, que tinha algo mais entre eles...-  comentou Marta no ouvido da prima

- Deixa de ser boba! Ele podia ser o filho dela! – retrucou Elisa. – Você não sabe fazer contas, não?

- Mas dariam ainda um belo par, não acha?

 

Ninguém as escutava. Todos estavam na porta da rua, despedindo-se do Tio Homero, do Primo Homero, do Sobrinho Homero....Dando-lhe um  pacotinho de roupas, um farnel, algum dinheiro, um abraço, um sorriso, um adeus, um agradecimento....Até ele desaparecer na esquina.

 

Vovó, ainda com os olhos brilhantes, desabou sobre a cadeira, na sala, diante da taça de espumante pela metade.

 

Todas as atenções viraram-se para ela, todas as vozes calaram.

 

Ela levantou a taça e disse, numa voz forte, segura:

- Ao Tio Homero! Onde quer que ele esteja!

   Ou vocês pensam que eu não sabia, o tempo todo, que não era ele?