Imaginemos uma vida bem normal de um típico jovem de renda mediana. Ao acordar, escova os dentes com aquela pasta dental. Toma um café-da-manhã com leite e hambúrguer, entre outros alimentos. Em seguida, põe aquelas roupas na moda que não são caras: uma camisa "made in China", uma calça importada do sudeste asiático e aqueles sapatos de uma grande multinacional dessas, única peça que requereu compra a prazo. Vai de carro à faculdade, gastando um litro de gasolina na ida e um na volta. No almoço, come aquela picanha, frita com o óleo de uma gigante do agronegócio, acompanhada pelos cereais e verduras de praxe. À noite, passa o sabonete, o shampoo, o condicionador, o creme de pentear e o desodorante de marcas conhecidas. Janta um eggburger no fast-food com os amigos, novamente munido do sapato da multinacional e agora vestindo um colete de couro. Enfim, atividades para lá de normais e corriqueiras. Você se pergunta: "O que tem de mais nisso tudo? Não vejo nada de errado nessa vida que o rapaz leva".

Digo, para sua pasmaceira e infelicidade, que essa vidinha simples sustentada no consumo de produtos considerados normais – dependendo de seus ingredientes – é mais, muito mais mesmo, exploratória, nociva e destrutiva do que você pensa. Não falo apenas do que todo mundo fala, sobre os impactos ambientais (mas falo desta parte também), mas também de conseqüências igualmente sérias em humanos e em animais não-humanos. Cada quilo de carne, cada garrafa de óleo de soja de certas marcas, cada produto importado da China e de outros países violadores de direitos humanos e trabalhistas, cada litro de gasolina queimado no motor do carro, tudo isso tem uma origem ou conseqüência que ninguém gostaria de conhecer. É fato irrefutável que o consumo corriqueiro em que se sustenta a vida comum de uma maioria esmagadora da população é sustentado por um alicerce infernal em que são esmagados pelo nosso "edifício", vivos ou mortos, milhares de humanos e bichos das mais diferentes espécies.

Começo pela parte da exploração humana, realidade em todos aqueles países em que o sindicalismo é proibido e reprimido ou é incipientemente mal-estruturado. A camisa, a calça e os sapatos do jovem cujo consumo diário foi descrito, assim como uma miríade de produtos das mais diferentes espécies, vêm desses lugares. Em grande parte da Ásia, em especial na China, está em operação um perverso regime de trabalho imposto aos operários das indústrias. A ânsia em abastecer os mercados consumidores de todo o mundo nos menores tempo e preço e o máximo de quantidade possíveis, está passando por cima da dignidade da pessoa humana e de seu trabalho, com a imposição de carga de trabalho exorbitante e salários ridiculamente irrisórios. Para você ter uma idéia, pense que está trabalhando ao menos(!) 60 horas semanais para receber no fim do mês um salário de cerca de cem reais – ou menos ainda –, e você não pode reclamar sob pena de ser espancado e preso pela polícia. Explorados ao extremo, os trabalhadores chineses muito pouco têm direito à livre-associação ou à formação de sindicatos, e ai de quem esboçar uma greve. É por isso mesmo que os produtos chineses saem tão em conta nos países onde são comercializados, porque a baixeza dos salários compensa o preço muito baixo das mercadorias – sem falar da pesada exploração ambiental, que ainda vou falar mais adiante –, o que gera lucros exorbitantes aos empresários que possuem filiais ou matriz na China e em outros países próximos que lançam mão desse regime semi-escravo que transgride severamente a concepção de trabalho livre que os teóricos do capitalismo sempre exaltaram. Se você quer deixar de ser um cúmplice disso, terá que boicotar produtos estampados com "made in China" e substituir por produtos nacionais ou de outros países que respeitam mais seus trabalhadores. Você sozinho não conseguirá fazer muito em prol da dignidade do operariado chinês, mas será uma peça que, com o tempo, montará o quebra-cabeça do combate aos abusos trabalhistas.

Em situação ainda pior estão os animais que fornecem a você a carne, o leite, os ovos, o couro, a base dos seus sabonetes (feita de gordura animal) e muitos ingredientes de muitos produtos. E dessa vez não é só no Extremo Oriente, mas no mundo inteiro. Você deve já saber, mas esses "produtos" vêm de seres sensíveis explorados e mortos. Todos aqueles animais nasceram não para ter uma vida natural, mas com o propósito único de servir de matéria-prima ao homem, sendo condenados a uma prisão perpétua em sítios de confinamento – no caso da pecuária intensiva e das agroindústrias leiteiras, o aprisionamento é desde a juventude –, verdadeiros campos de concentração animal. Há sofrimento, gritos e dor psicológica nos matadouros que fornecem a carne servida nas refeições humanas, não sendo à toa que a visita ao interior desses lugares normalmente é proibida. Sem falar nas criações de ovos de galinha, em que milhares de pintinhos são descartados e queimados(!) por não serem úteis para a perversa produção de ovos – visto que a maioria dos pintinhos machos é morta enquanto os pintos fêmeas têm o bico serrado e são postos para crescer para se tornarem galinhas poedeiras. Outro aspecto que torna o consumo humano cruelmente sustentado são os testes de produtos em bichos. A cada dia, muitos produtos, desde os de limpeza doméstica até os cosméticos e de higiene pessoal (lembra-se do shampoo, do condicionador, do creme de pentear e do sabonete do jovem do primeiro parágrafo?), antes de terem seu lançamento ou alteração de ingredientes autorizado, são perversamente despejados na pele, nos olhos ou em outras partes corporais de muitos animais, com destaque para cães, ratos, coelhos e macacos, causando sérias feridas, cegueira e até morte (em testes de natureza letal como o chamado LD50). E tudo isso que digo, por estar resumido, é apenas a ponta do iceberg de como o consumo que o humano comum pratica é sustentado na crueldade e na morte de seres sencientes. Há muitos outros fatos de exploração e matança animal que ratificam isso.

E não é só uma parte oprimida da humanidade e da fauna do planeta que sofrem com as necessidades dispensáveis ou substituíveis do ser humano médio. O meio ambiente sofre horrores com o efeito "ecocâncer" que ele desencadeia. Necessidades crescentes das populações humanas, aliadas à falta de zelo ecológico, consomem florestas inteiras, exaurem rios, lagos e até mares interiores, levam à extinção centenas de espécies de fauna, flora e fungos a cada ano. Alguns casos específicos são emblemáticos na questão, como o caso de gigantes multinacionais de agronegócio que obtinham (ou ainda obtêm) soja de terras roubadas (desmatadas) da Amazônia, ora para produzir os óleos de soja ora para fornecer forragem de gado no Brasil e no exterior, e a própria produção de carne, cujos efeitos devastadoramente degradantes na natureza vão de consumo de muita água (milhares de litros para cada mísero quilo de carne, no caso de bovinos) e exaustão de imensas áreas de pasto à poluição e emissão de gases-estufa pelos excrementos e flatulências dos animais explorados. Considere também a gasolina que seu carro queima todo dia, é uma poluição no mínimo incômoda e perigosa.

Todos devem ter consciência desse aspecto terrível que marca a vida de muitos que é costumeiramente descrita como normal, precisam aprender que cada produto consumido pode estar gerando a continuidade de perversos sistemas de exploração e degradação de vidas. Há soluções plausíveis e praticáveis, como o veganismo – cessar de todo o consumo de produtos de origem animal e/ou testados em bichos – e o boicote a produtos vindos de indústrias ou países adotantes de perversidades trabalhistas. Essas são algumas das poucas alternativas que garantirão a remoção dos seres esmagados pelo alicerce do "edifício da vida normal". Quanto à questão do homem como um "ecocâncer", são necessários bom senso, respeito à natureza e disposição para ajustar seu modo de vida a algo o mais próximo possível da sustentabilidade através de medidas caseiras como economia de água, cessar do consumo de carne e moderação no uso de carros, além de haver necessidade de os debates sobre soluções de gestão ambiental de indústrias e de manejo sustentável de fontes de matéria-prima continuarem com força. Dá trabalho, mas é necessário suar para que deixemos enfim de viver à base de abusos, sofrimentos, crueldades e mortes desnecessárias e nos tornemos uma espécie de vida inteligente mais ética e compassiva.