UMA VEZ EU “TINHA” UM CACHORRO – II-

Até hoje não sei como realmente aconteceu. Tudo iniciou com a idéia de paquerarmos (naqueles tempos falavam assim, agora é azarar) as filhas de um japonês que vendia pastel, em uma barraca na feira. Alguém já viu japonês que não venda pastel em feira? Este não fugia ao tradicional. Mas as filhas eram lindas. Pastel daqui, pastel dali e o papo correndo solto e as duas irmãs todas solicitas e os bobos só gastando o minguado dinheiro em troca de olhar aquelas meninas. Até que um dia o japa resolveu que ele nos atenderia. Acabou o encanto e gastança de dinheiro.

E como o Bidu entrou nesta história? Primeiro o apelidamos de Bidu, não se sabe qual a razão. Mas quando nós estávamos azarando as japonesinhas pasteleiras, um cachorro sempre ficava ali, como pedindo um pedaço ou um pastel inteiro. Quando voltávamos  para a república, cada um com seus pastéis, notamos que aquele cachorro da feira nos acompanhava. Chegamos e o tal cachorro postou-se na entrada do jardim. Ao nos sentarmos na varanda para comer os nossos pastéis, olhamos para o portão e, lá estava o dito cachorro sentado, olhando, parado como uma estátua. Cortou o coração. Um assobio e lá veio ele, abanando o rabo. Quando se aproximou, notamos algumas características diferentes. Ele de cor preta em sua maioria. Com algumas peculiaridades. A ponta do rabo era branca. As quatro patas também eram brancas. E tinha um “óculos” branco no olho direito. O corpo todo preto e esses detalhes em branco.

Resolvemos então chamá-lo de Bidu. Mas quem diria que o tal cachorro atendesse por tal? Psicologia animal em ação. Um pedaço de pastel e : Bidu vem aqui. Vinha. Sem pedaço de pastel. Bidu vem aqui.Não vinha. A tática era fazer ele entender que cada vez que o chamássemos de Bidu, algo de bom aconteceria. E deu certo. Agora era Bidu a toda hora.

Um dos mandamentos da república Vietcong, era de nunca entrar em casa, de sapatos.

Providenciado os apetrechos de sobrevivência canina: uma tigela para comida e um pote para água. Tapete para dormir? O tapete de entrada. A noite veio e com ela a chuva. Sábado era dia de jogo de canastra. Domingo pela manhã. Surpresa. Onde estão os sapatos? Todos espalhados pelo jardim e molhados. Bidu seu filha... Acontece que ele não agüentou o chulé coletivo, algum gaiato saiu com essa.

A rotina era a seguinte. Um ficava encarregado de despertar os demais “republicanos vietcongs”, outro de comprar pão e leite, outro de fazer o café e outro de arrumar a mesa, outro de lavar a louça do café e outro de guardar os alimentos. Porta trancada e agora com um cão de guarda. Bidu o grande. Era o guardiã mor.

Para solucionar o problema com os sapatos, providenciamos uns caixões de madeira, aqueles que armazenam tomates. Agora Bidu ficava longe dos mal cheirosos sapatos e dormia soberano no tapete.

Acordar com latidos de cachorro era tudo que nós não queríamos. Mas amanhecia, lá pelas seis da manhã, era um latido só. Bastava passar alguém em frente ao portão que um susto só. Ele ficava escondido, só esperando o pobre vivente passar e ele latia feito um desesperado. Com este costume, o despertador foi colocado de lado. Era o Bidu latir e olhar no relógio: seis em ponto.

Um domingo de sol estávamos assando um churrasco e o Bidu por ali, um pedaço de carne aqui, outro lá e conseguiu ganhar uma ripa de costela que nem chegou a cair. Pegou no ar a dita ripa. Correu para o centro do jardim e ali ficou a saborear a tal ripa, mas...eis que de repente surge em pleno jardim, uma cachorra da raça Poodle, toda branquinha, parecia um floco de algodão. Foi chegando, chegando e o Bidu, só rosnava. Ficamos só olhando o estrago que poderia acontecer, em dois lances. Primeiro a cachorra era da vizinha, uma solteirona que morava com uma irmã esquizofrênica. Segundo se o Bidu resolvesse reagir ante um intruso que supostamente estaria interessado na sua ripa de costela? Preocupações descabidas. Largou a ripa e começou a cheirar a cachorra da vizinha e brinca que brinca. Nos distraímos em relação a sessão “distrações caninas” e quando vimos lá estava o Bidu no maior Love do mundo. Para piorar as coisas, eis que surge a vizinha (uma solteirona convicta) e se depara com aquela cena. Era o inicio do caos. Maldito vira-lata, vai matar a minha Fifi, e pegou um tijolo e partiu para cima do casal que a estas horas, estava no auge do encontro  casual e sexual canino, onde os desejos hormonais explodiam. Ao vermos a tentativa de um canicidio saímos feito um bando de loucos e nos interpusemos  entre a desvairada solteira e a dupla canina. Não teve jeito. Ela arremessou o tijolo com tanta força e sem uma pontaria correta. Pronto, como diz o samba tinha um corpo estendido no chão. Um dos moradores vietcongs, levou uma tijolada na cabeça e desmaiou. Era sangue que não terminava mais. Acertou bem no meio da testa. E então a solteirona desmaiou. Corre e chama a ambulância. Não chama a polícia. Agora eram dois corpos estendidos no chão. Remove para área. O churrasco está queimando. Corre e tira a costela do fogo. Estendido em cima da mesa de refeições. Prato, farofa, lingüiça, cerveja, faca, salada passaram a dar lugar a um corpo estendido. E entre um pedaço de lingüiça com pão, passamos para a assepsia geral. Um corte significativo, mais de 8 centímetros. Compressas com gaze. Tira um pedaço de grama, aqui. Uns fragmentos de tijolo dali e vamos ver com fica. Caixa de material cirúrgico. Fio de sutura. Puta merda este troço vai doer. Calma. Vamos anestesiar. Geral?  Só levar outra tijolada. Melhor não suturar, vamos levá-lo para o São Lucas, lá em um P.A. Só que tem um pequeno problema: Boletim de ocorrência e vai dar Polícia. Isto mesmo Polícia, mandamos prender a doida da vizinha. E se ela alegar que fomos nós os provocadores da situação? Como assim? O Bidu namorador, conquistador, deflorador e etc. Deixa de lado o P.A. Mas espera ai. Não vai suturar igual a testa do Frankenstein?Ficou com tremenda de uma bandagem na testa de uns 6 centímetros. Gozação geral, o Unicórnio vietcong. E a tal mulher estava lá estatelada no gramado. Quando nos demos pela situação de abandono da agressora, foi uma risada só. A cachorra Fifi a lambia no rosto e o Bidu dava uma tremenda de um mijada na cabeça da mulher desmaiada. E olha que desmaio. Entre a tijolada, remoção para a mesa do churrasco, uns pedaços de lingüiça com pão, sutura e comentários, foram quase 40 minutos. Acordou. Rodeada pelos marmanjos e pela Fifi pulando de alegria... O que vocês fizeram comigo? Nem pensar em responder. Um dos mais doidos correu para buscar uma revista masculina e uma máquina fotográfica. A senhora vai aparecer assim na revista. Tirei mais de vinte fotografias, inclusive uma que aparece a senhora sem calcinhas. Sem calcinhas? Como vocês sabem? Tremendo chute que deu certo. Saiu correndo e a Fifi toda faceira a acompanhou. O Bidu? Tranquilo.Voltou ao que antes do ocorrido estava a fazer. Se deliciar com  a sua ripa de costela. E o atingido pelo tijolo? Resolveu usar um boné para encobrir o curativo. No final da tarde resolvemos que deveríamos consultar alguém da área da Medicina, pois até então o acidentado havia sido atendido pela Medicina Veterinária. Pronto. As meninas lá do prédio da república Calcinhas Independentes. Alô. Marilu? Nós vamos fazer um churrasco hoje à noite, vocês são nossas convidadas. Não precisa trazer nada. Corre que corre. Limpa tudo. Deixa tudo em ordem. Compra mais cervejas. Deixa o banheiro mais limpo que se possa imaginar. Toalha de mão. Sabonete. Ducha higiênica. Papel higiênico. Toalhas descartáveis. Sabonete. Xampu. Xampu? Tá doido. E se alguma delas resolver tomar um banho e lavar os cabelos... Tá doido, sô? Vamos primeiro planejar como apresentar o acidentado tijolado e como elas irão proceder. Se estiver tudo certo, depois a gente dá continuidade ao tal lavar os cabelos..

Chegaram. Seus depravados. Seus pecadores. Isto aí é Sodoma e Gomorra. Coitada das mães destas meninas. Isto ai é um covil. Um antro de perdição. Corremos para ver o que estava acontecendo. Era a doida surtando novamente.  Agora em cima do muro. Equilibrava-se e gritava. As meninas pararam. Olharam. Viraram de costas para a doidona e levantaram as saias ou baixaram as calças jeans e mostraram as bundas a dona da Fifi. Pronto. A vizinha caiu do muro, desmaiada. Pior ainda, caiu para o nosso lado. Deixa ai, ela vai acordar. Acordou. Novamente o Bidu fez das suas...

Mas o pior ainda estava por vir. A gravidez da Fifi fora confirmada. Expectativas ente sete e nove semanas. Alguém estava a bater palmas. Domingo pela manhã. O Bidu ressabiado, entrou sala a dentro e ficou com cara de que não tinha nada a ver com a pessoa, que estava no portão. Pois não? A Fifi está querendo criar. Criar? Ah! Parto a vista. A senhora pode trazê-la para que possamos auxiliar? Lógio. Esta ingrata. Dilatação normal. E então nasceram cinco filhotes. Três fêmeas e dois machos. Surpresa geral. A pelagem. Era um festival de combinações. O mais engraçado acontecia com as fêmeas. Metade do corpo era preto e outra metade branco, pelagem lisa. Nos machos a situação era pior ainda. Tronco branco e liso. Abdômen preto e todo coberto com pelos pretos. Era a Lei de Mendel em ação. Parto a termo, tudo normal. A senhora pode levar a Fifi para casa e qualquer coisa é só nos chamar. Levar? Não quero saber destes monstros e desta ingrata. E o Bidu? Sumiu. Consenso geral. Fica. Era uma cachorrada só. Desmamados criaram a maior confusão. Havia disputa entre vizinhos, amigos e até o pessoal do posto de combustível. Por fim foram doados e a Fifi? Arrependida a vizinha doidona veio, buscá-la. Alívio geral.  

 

A república Vietcong, tinha seus regulamentos e projetos. Quem obtivesse notas de avaliação menor que sete, ficava proibido de jogar baralho e trazer sua “namorada” para passar o final de semana. Durante a semana, nem pensar. Projetos. Construção de três banheiros e três sanitários. Separados. Construímos. Tal se deu por ocasião de um plantão no Hospital Veterinário da Universidade. Um boxer fora atropelado. O proprietário, um senhor com semblante desesperado, em lágrimas explicou que o boxer fora atropelado por uma ambulância. Recolheu o animal que gemia muito. Fratura exposta da tíbia direita. Fratura de 4 costelas, tórax direito. Fratura do fêmur direito. Lacerações múltiplas. Deu entrada em estado de choque. Procedimentos normais. Raio-x, confirmava algumas suspeitas –politraumatismo -. O senhor assina a autorização da cirurgia? É preciso? E se ele morrer? Assinou. Cirurgia complicada e demorada. Pino no fêmur e na tíbia. Recuperação no canil da Faculdade. Todos os dias, três vezes por dia, lá estava o “seu” Dino. Acelerou a recuperação este cuidado extremado, para com o amigo. Alta confirmada. Cuidados explicados. Trabalha com que “seu” Dino? Pedreiro, aqui está o número do telefone da minha casa. Alô, “seu” Dino? Lembra-se do acadêmico de Medicina Veterinária que atendeu o seu boxer?  Orçamento pronto. Economia de guerra na república Vietcong. Todos trabalhavam como “meia-colher” de pedreiro. Trabalhamos só aos sábados e não o terminávamos sem um belo e gostoso churrasco. Três banheiros e três sanitários. Todos separados. Quanto custa? Nem pensar. Não pensamos.

Agora a ligação da cozinha com os banheiros era por um corredor. Adivinhem o que aconteceu? Quando as “namoradas” vinham passar o final de semana na república, o Bidu resolvia levar o tapete no qual dormia, para o meio do corredor. Era uma das meninas se dirigir ao banheiro ou sanitário que o Bidu começava a rosnar. Cismou que era o dono do pedaço.

Resolvera agora a perturbar os ciclistas. Ficava escondido entre o portão e o muro. Era só passar um ciclista e de lá saia latindo e correndo atrás do incauto pedalador. Sábado,dia de faxina, de lavar roupa, de rever estoques de comida e bebidas. De repente uma gritaria enorme e um homem correndo e atirando pedras. Seu filha da..., agora eu te pego e o Bidu a gemicar e latir ao mesmo tempo. E nós aparvalhados assistindo a corrida desesperada entre o Bidu e o homem que gritava e atirava pedras. Entrou correndo jardim afora e o homem atrás. Mas não deu nem tempo para que saíssemos em sua ajuda. Ele parou, deu meia volta e saiu latindo agora atrás do seu agressor e este por razões de segurança quando viu seis marmanjos saindo em socorro do mascote, voltou nos calcanhares e saiu correndo. E então o Bidu se encheu de razão, a ponto do pobre homem, passar pela bicicleta caída na calçada e sumir. Para variar deixou a sua marca na bicicleta, uma tremenda  mijada.

Fim de curso. Entrega da casa. Retirada dos móveis. Uns dados, outros vendidos e o Bidu só olhando desconfiado. A proprietária veio receber a casa, agora com três banheiros e três sanitários. E o cachorro? Que pergunta difícil e dolorida de dar. É...nós vamos ver quem gostaria de ficar com ele. Ôh de casa. Era a proprietária. Vim pedir para ficar com o cachorro. O Bidu? Tinha mais algum cachorro? Acontece que as minhas sobrinhas resolveram prestar exames vestibulares para Medicina Veterinária e eu resolvi vir morar aqui. Alívio geral. Por qual razão? O Bidu no colo da sua nova dona.

Um por um nos despedimos do Bidu. Eu por último. A estas alturas a dona da casa, já havia mudado para a casa com as sobrinhas e o Bidu era o centro das atenções.

Meses depois fui participar de um Seminário e resolvi dar uma olhada no Bidu. Foi uma alegria só. Velhos amigos se encontrando. Novas estudantes de Medicina Veterinária e o Bidu mimado e protegido.

Anos depois passei novamente. Mudaram. Para onde? Rondônia. E aquele cachorro preto de rabo preto com a ponta branca e o olho com uma máscara branca no olho? Foi também, as meninas adoravam aquele cachorro. Só que aconteceu uma coisa que deu a maior confusão. Como assim? Sabe aquela mulher solteirona, que tinha uma cachorro toda branca, de nome Fifi? Não acredito. Acredite sim. Olha aqui um filho do Bidu.

Cor preta em sua maioria. Pelo liso. Ponta do rabo branca. Quatro patas brancas. Óculos branco direito. O corpo todo preto.

Com os olhos cheios de lágrimas e algumas já sendo derramadas e no fundo do coração falei para mim mesmo: Um dia eu “tinha” um cachorro....