Como as coisas podem mudar tanto?! Nunca poderia imaginar que, em aproximadamente um século e meio, a vida pudesse modificar em tamanhas proporções. Eu sou a prova de que o milagre da vida é uma constante transformação. Passei por muitos desafios e vi o mundo se converter geografica, cultural e economicamente. Mas entre essas mudanças o que mais me impressiona é a decadência dos valores humanos. Eu sou do tempo dos pudores...
Meu nome é Henriqueta Santini Palavro. Nasci em 24 de setembro de 1874, em Pergine, localidade próxima de Trento, na Itália. Sou a filha caçula de Angelo Santini e Maria Palaoro. O "Palaoro", mais tarde, transformou-se em "Palavro". No Brasil, houve modificações de cartório. O "Palavro" fica por último no meu nome porque, coincidentemente, casei com João Palavro, que tinha o mesmo sobrenome de minha mãe, provavelmente um parentesco de longe. Além dessa modificação no sobrenome, tive uma mudança de nome, pois nos livros de batizado sou "Enrica Teresa Maria". O porquê passei a ser chamada oficialmente de Henriqueta nunca descobri.
No ano de 1878, aos meus 4 anos, houve uma grande mudança na minha vida, situação pela qual passaram milhares de pessoas na época. Meus pais decidiram se mudar para o Brasil na esperança de melhores condições de vida. Lembro que mesmo com dinheiro na mão era quase impossível comprar até comida. A Itália passava por uma crise assustadora. Então, no dia 15 de setembro de 1878, meus pais, meus três irmãos e eu embarcamos no navio ISABELA. Lembro-me que papai pagou pela viagem de todos nós 600 mil réis. Com a graça de Deus, tudo correu muito bem durante a viagem, apesar de o trajeto ter demorado 29 dias de Gênova até o Rio de Janeiro, no Brasil.
Ficamos no Rio de Janeiro por dois dias até regularizarmos os documentos de imigrantes. O governo brasileiro, na época comandado pelo Imperador Pedro II, custeou nossa viagem até o Rio Grande do Sul. Nossa família, então, após paradas em várias cidades gaúchas, chegou a São Sebastião do Caí. Recordo-me que ali ficamos alojados em um dos barracões que a comissão da emigração construiu para todos que deles necessitassem. Infelizmente, esse lugar era muito sujo. Como havia muitos imigrantes que o utilizavam, alguns o deixavam em péssimas condições de higiene. Mas ficamos ali no barracão apenas dois dias, pois começamos a procurar por terras, afinal, tínhamos de nos instalar e começar a fazer a nova vida no Brasil.
Começamos nossa jornada com outras famílias. Nessa interminável batalha por encontrar um pedaço de chão, nos alojamos em muitos lugares, atravessamos a mata, vimos bichos de todas as espécies. Em toda situação de perigo, as mulheres, principalmente, rezavam muito e invocavam o nome de Deus e dos santos constantemente. A religiosidade era a grande força que impulsionava os imigrantes italianos. "Maria Vergine, che brute bestie!", repetia mamãe. Eu, como era muito pequena, não entendia exatamente o que acontecia e achava tudo muito divertido.
Finalmente, papai fechou um negócio e comprou um pedaço de terra em São Valentim. Essa terra era repleta de mata fechada. Mas em apenas alguns dias de muito trabalho, com machados e foices, abriram um clarão. Os troncos das árvores, serrados no punho, serviram para construir nossa casa de seis por quatro metros. Logo em seguida, já foi providenciada uma horta. Foi uma alternativa de conseguir comida rapidamente. Minha mãe tratou de pedir a amigas mudas de hortaliças: alface, cebola, alho, repolho, rabanete etc. Para matar a fome, também íamos à mata catar frutas silvestres. Meus irmãos se divertiam enquanto subiam nessas árvores. Ficar se agarrando em cipós enquanto procuravam frutas era o máximo. Eles eram meninos jovens, estavam em idade de se divertir com essas coisas.
Fui crescendo, acompanhando a luta da minha família. Graças a Deus, evoluímos muito. Ampliamos nossa casa, tivemos uma boa lavoura e sempre continuamos muito unidos. Minha vida seguia mudando...
Em 1899, aos 25 anos, me casei com João Palavro e fui morar no Morro Gaúcho. Tive 9 filhos: 3 meninas e 6 meninos. Da minha infância até a época em que tive meus filhos, a minha vida melhorou muito. Meu marido já não trabalhava na agricultura; ele pôde montar um armazém junto à nossa casa, um trabalho muito mais leve e rentável. Meus filhos todos se encaminharam bem e construíram suas famílias.
Mas as mudanças continuavam a me surpreender. Um fato que não posso me esquecer, moralmente o mais marcante, aconteceu por volta dos meus 40 anos, quando fui a Caxias do Sul fazer umas compras. Apesar de a distância entre o Morro Gaúcho e Caxias do Sul não ser tão grande assim, os contrastes culturais eram visíveis. Lembro que, enquanto estava passeando, observando as vitrinas, mal pude disfarçar o meu espanto. Fiquei corada, sem reação, ao ver na vitrine da loja Magnabosco uma calcinha, que naquele tempo dizíamos calça. Até mesmo pelo tamanho, não poderíamos denominá-las no diminutivo. O tamanho das peças íntimas femininas era similar ao de uma bermuda de hoje. Com o pano daquela calcinha, atualmente, daria para fazer mais de 20 peças, sem dúvida nenhuma. Em casa, não ousávamos deixá-las à vista nem mesmo no varal. A cena me espantou. "Benedeto!", falei baixinho. Imagina, que vergonha! O que aquilo fazia exposto na rua? Eu jurei que o fim do mundo se aproximava. Muito espantada, ao chegar em casa, contei para uma de minhas netas, que até hoje cai na gargalhada recontando o fato.
Realmente, minha vida foi marcada por mudanças. Agora, eu paro e penso. Se naquela época eu soubesse que hoje o mundo estaria desse jeito, sem pudor algum, com valores soltos ao vento, talvez eu teria me conformado com o que vi. Se a transformação do mundo tivesse sido marcada apenas pelo tamanho da peça íntima, hoje, eu não me espantaria. O que mais me deixa triste é que valores, bem superiores a isso, foram se dissolvendo. Sei que a "popa" que fui, que dava valor à família, ao trabalho e a todas às criações divinas jamais nascerá nas gerações de hoje, nem mesmo em minhas tataranetas.
* Texto de Kátia R. Maffei dos Reis, escrito com base no depoimento de Carmen Orlandin Maffei, neta de Henriqueta Santini Palavro, narradora-personagem dessas memórias literárias.