UMA REFLEXÃO SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE O SABER COTIDIANO E O SABER ESCOLAR, NO ENSINO DE MATEMÁTICA.
Maria Lúcia Wochler Pelaes

RESUMO


Esta análise propõe uma reflexão sobre as concepções estabelecidas dentro do universo pedagógico quanto às relações presentes entre os saberes cotidianos e os saberes escolares, no contexto da escolarização.

Este artigo é resultante de uma pesquisa realizada na disciplina Matemática, Cotidiano e Escolarização, que faz parte do quadro de disciplinas do Programa de Pós-graduação em Educação Stricto-sensu, da Universidade São Francisco, Bragança Paulista, Estado de São Paulo, no ano de 2003.

Palavras-chave: Ensino, Escolarização, Matemática, Cotidiano.



INTRODUÇÃO


O objetivo desta análise é verificar como são construídos os discursos sobre os saberes cotidianos e os saberes escolares, relativos aos conhecimentos matemáticos, e de que forma os professores compreendem e definem esses saberes e como esse fato impacta na ação pedagógica docente em sala de aula.

O presente estudo foi desenvolvido empregando uma metodologia de pesquisa com base na análise de um questionário, aplicado para um grupo de professores, num curso de capacitação docente na área de Matemática..
Os resultados foram analisados tendo por escopo a avaliação das concepções apresentadas referentes aos conceitos de cotidiano, de saberes cotidianos, presentes no universo escolar, assim como as relações que podem ser estabelecidas entre os saberes cotidianos e os saberes escolares, dentro da prática pedagógica dos professores entrevistados.

Os resultados foram classificados em categorias e as concepções apresentadas, foram embasadas nos estudos dos seguintes autores: Pierre Bourdieu (1998), numa visão sociológica das relações simbólicas estabelecidas dentro do universo escolar, afirmando a ideologia do dom; Eduardo Garcia (1998), através de uma análise da natureza do conhecimento escolar e sua relação com o cotidiano, explorando a noção do simples e do complexo; Gelsa Knijnik, desenvolvendo uma análise sobre as implicações da educação matemática e sua legitimidade cultural e Jean Lave (1988), através da abordagem da cognição na prática, desvendando as relações cognitivas estabelecidas em situações cotidianas, envolvendo o conhecimento matemático. Ainda serão apresentadas algumas das reflexões desenvolvidas por Gimeno Sacristán (apud Territórios Contestados:1995), referentes ao currículo e a diversidade cultural e Alexandrina Monteiro (apud Cadernos Cedes;2003), apresentando suas reflexões sobre a articulação entre os saberes escolares e cotidianos, dentro de uma perspectiva curricular.

1. O que entendemos por cotidiano, por saber cotidiano e por saber escolar

O termo cotidiano caracteriza a concepção de uma prática diária, rotinizada, associada à experiência e a vivência.

Quanto ao saber cotidiano, este constituí um conhecimento utilizado nas práticas diárias, sendo mediado e atualizado pela "necessidade" que a vivência cotidiana requisita.

O saber escolar é identificado com um tipo de conhecimento institucionalizado e legitimado, que tem sua validade proporcional às categorias do contexto em que foi estabelecido, porém refletindo o conceito de conhecimento científico, apresentando as noções de unicidade e de universalidade.

2. Como interpretamos as relações estabelecidas entre saber cotidiano e saber escolar, dentro do discurso pedagógico.

A vivência dentro do sistema escolar tende a estabelecer uma relação dicotômica entre esses dois saberes, o cotidiano e o escolar.

O saber cotidiano é entendido, nessa relação, dentro do universo escolar, como um conhecimento associado às práticas diárias, próprias de cada indivíduo, fora do contexto escolar. Tal conhecimento é visualizado como aquele que pertence a "vida real", estabelecendo com a escola, relações, a priori, que apresentam-se como artificiais, sem conteúdo implícito, ficando para a escola, o "papel" de instituição desvinculada do contexto da vivência dos alunos.

O saber escolar é valorizado dentro do universo escolar, como sendo o conhecimento legítimo, dotado de certa unicidade e universalidade, capaz de "conferir" a seus participantes um determinado conhecimento, que se instituí como aquele capaz de transcender ao contexto escolar, os habilitando à vivência na sociedade. O "conhecimento legítimo" lhes confere "direitos" de cidadania. Esse conhecimento legítimo ou visto como tal tem seu aporte no conhecimento científico e na ciência, estabelecendo sua origem como fonte de redenção, de civilização, aquela capaz de habilitar os atores de "verdadeiro conhecimento do real".

Essa escola, se estabelece na sociedade, como local de neutralidade, reprodutor de um modelo de conhecimento e de cultura único e legítimo, capaz de dotar seus co-participantes de "acesso e mobilidade social".
O aluno traz uma "bagagem" de vivências e conhecimentos relacionados ao seu dia-a-dia, embuídos de valores e crenças que refletem as necessidades diárias de apropriação e utilização desse conhecimento. Segundo os PCNs, tal disposição de conhecimentos prévios deve ser inserida nas práticas escolares, como podemos verificar no fragmento elencado dos PCNs- Introdução, parte referente à Matemática (1998, p.59):
"Os Parâmetros Curriculares Nacionais para a área de Matemática constituem um referencial para a construção de uma prática que favoreça o acesso ao conhecimento matemático que possibilite de fato a inserção dos alunos como cidadãos, no mundo do trabalho, das relações sociais e da cultura. Os parâmetros destacam que a Matemática está presente na vida de todas as pessoas, em situações em que é preciso, por exemplo, quantificar, calcular, localizar um objeto no espaço, ler gráficos e mapas, fazer previsões. Mostram que é fundamental superar a aprendizagem centrada em procedimentos mecânicos, indicando a resolução de problemas como ponto de partida da atividade matemática a ser desenvolvida em sala de aula".
Analisando o discurso presente nesse trecho selecionado, podemos verificar que o acesso ao conhecimento matemático é apresentado como um meio para a entrada no mercado de trabalho, na sociedade e na cultura. Nesse contexto, o conhecimento matemático, representado pelo conhecimento escolarizado, é visto como pré-requisito para a cidadania.
Um outro aspecto é o fato da matemática ser apresentada como atividade que está presente na vida das pessoas, em situações cotidianas, contextualizando o conhecimento matemático formal, salientando que ele está presente fora da escola.
Cabe também observar a crítica apresentada à aprendizagem centrada em procedimentos mecânicos, a qual faz uma menção direta aos procedimentos de memorização e repetição de conteúdos, desvinculados do contexto dos significados, sugerindo como alternativa, a utilização de problemas como estratégia de abordagem.
Essa concepção reafirma a expressão recorrente situações-problema, no que se refere ao discurso pedagógico presente quando se fala em abordagens atuais, no ensino da Matemática.
Porém essa premissa é tão genérica que os professores apresentam certa dificuldade em criar meios para transformar a sua prática pedagógica com vistas à inserção dos saberes cotidianos nas práticas escolares.
No sentido de aprofundar as reflexões aqui apresentadas, buscamos desenvolver a análise a seguir, estabelecendo categorias de abordagem, baseadas nas respostas dos professores entrevistados.

3. Análise da pesquisa desenvolvida e a correlação teórica


3.1. O conceito de cotidiano


Introduziremos a análise dos questionários a partir da concepção de cotidiano apresentada.
Nesse sentido, pode-se estabelecer categorias em relação ao conceito de cotidiano apresentado. O cotidiano é um termo entendido dentro da perspectiva das relações estabelecidas pelos entrevistados, podendo ser conceituado como:

a) Acontecimentos do dia-a-dia;
b) Situações reais;
c) Vivências práticas;
d) Vida fora da escola;
e) Acontecimentos que ocupam lugares comuns: casa, trabalho, lazer, etc.;
f) Experiências de vida;
g) Situações que podem ser aplicadas em sala de aula;
h) Conhecimentos adquiridos pelos alunos no dia-a-dia, que diferem do conhecimento escolar ou científico.

Observando algumas falas dos entrevistados podemos verificar as concepções apresentadas sobre o que se entende por cotidiano, dentro das categorias anteriormente abordadas. Vejamos alguns exemplos , segundo a fala dos professores que contribuíram para a realização da pesquisa, respondendo ao questionário:

É a vida do dia-a-dia, com suas descobertas, com experiências positivas ou negativas, conforme seu projeto de vida. Situações limites com intenção ou não. Saber ler o mundo é uma leitura que conduz o cidadão a ler bem a vida.

Nessa fala podemos observar a noção de cotidiano associada ao dia-a-dia, que encontra sua expressão no individual. Ela se fundamenta na possibilidade de descoberta e da experiência, conferindo ao indivíduo maior habilidade, saber ler o mundo, revelando a idéia de um cidadão que domina a leitura do mundo.

Observando uma outra resposta:

Estudar o cotidiano do aluno é transportar para a sala de aula os problemas matemáticos do dia-a-dia.

Nessa fala, a concepção de cotidiano aparece associada ao conhecimento do aluno e visualiza uma matemática da vivência cotidiana. Porém no termo transportar, observamos que o conhecimento matemático do dia-a-dia está fora da realidade da escola, necessitando do transporte para a realidade escolar.

Vejamos a fala a seguir:

Entendo como sendo situações vividas diariamente; que fazem parte da vida das pessoas, enfim algo "real" para o aluno.

Nessa fala podemos observar a concepção de cotidiano associada ao "real", conduzindo à idéia de que o ambiente escolar se caracteriza como algo "não real", que se coloca num mundo a parte da vida cotidiana do aluno. Esse valor traduz uma idéia constante nas principais reflexões pedagógicas: a noção de escola distante da realidade, descontextualizada, desvinculada da prática.

Observando uma outra fala:

As experiências e os conceitos adquiridos no dia-a-dia do aluno. Esses conceitos nem sempre estão em conformidade com a conceituação científica.

Essa fala revela a noção de cotidiano colocada numa relação oposta ao conhecimento científico, apresentando uma descontinuidade em relação ao conhecimento escolarizado, representado, nesse discurso, pela expressão conceituação científica.

Na visão funcionalista a noção da experiência cotidiana assume um caráter negativo, numa condição oposta ao conhecimento científico. Segundo Lave (1988, p. 124): "Na visão funcionalista o rótulo ?todos os dias? é pesado com conotações negativas em contraste com o pensamento científico".

Essa visão do cotidiano se identifica com a noção de saber cotidiano, enquanto algo simples e rotineiro, oposto ao pensamento científico, que se configura como saber complexo e elaborado, traduzindo uma visão reducionista do saber cotidiano, que se manifesta pela formulação de certas concepções. Sobre a idéia comum referente ao saber cotidiano, Garcia (1998, p.76) cita, sobre a ressalva de Porlán:

"O conhecimento cotidiano é inferior ao conhecimento científico e deve ser substituído por este.[...] O conhecimento cotidiano é um conhecimento homogêneo, no sentido de que todas as pessoas resolvem da mesma forma os problemas surgidos no ambiente em que vivem, e estático, no sentido de um conhecimento ?natural?, imutável".

O conhecimento cotidiano está associado às atividades diárias, presentes nas situações cotidianas. Em contraposição se estabelece o conhecimento escolar, identificado, segundo Garcia (1998, p.76), como "[...] o resultado da transposição didática do conhecimento científico para a sala de aula".


3.2. O saber cotidiano na escola


O saber cotidiano, de forma geral, é abordado pelos docentes, no ambiente escolar, através da aplicação de atividades que utilizem conhecimentos baseados na vivência cotidiana do aluno. Essas atividades são apresentadas com diferentes objetivos e de diversas formas, criando a possibilidade de se estabelecer novas categorias, apresentando a seguir, as mais significativas:

a) Para a sistematização do conhecimento;
b) Como motivação para a aprendizagem;
c) Como meio de conhecer e trabalhar a realidade do aluno;
d) Estabelecendo comparações com a realidade;
e) Como maneira de se aprofundar o conhecimento;
f) Para beneficiar o professor e o aluno.


Verificando uma das falas que caracteriza uma visão dicotômica entre o saber cotidiano e o saber escolar, sobre a importância do conhecimento cotidiano na escola enquanto aspecto motivacional:

Sim, é importante para prender a atenção do aluno, mas sem, com isto, banalizar o processo e o conhecimento específico da Matemática e seu avanço.

Analisando essa fala, merece uma atenção especial a expressão "banalizar". Ela se refere ao uso do saber cotidiano em sala de aula e reflete uma visão funcionalista da Matemática, vista como uma disciplina acadêmica que deve estudar apenas o conhecimento legítimo. Essa idéia revela as significações simbólicas que agem no discurso presente nas relações escolares. Nesse sentido Lave (1988, p.128), sobre o significado social do conhecimento matemático, comenta:

"O conhecimento matemático é levado a ser considerado como uma medida do coeficiente de inteligência; ele fornece uma espécie de verdade para qual não há argumento, e desse modo torna-se um meio simbólico de afirmação de autoridade tecnológica. Ela indica exatidão, racionalidade e lógica acurada [...]".

Nessa concepção, a matemática "real", acadêmica, dentro das práticas sociais, adquire um significado cultural de realidade "irrefutável" e "imutável". Segundo Lave, esse "irrefutabilidade" é construída sob o pressuposto de uma teoria cognitiva de universalização da escolarização, reproduzindo os valores de uma forma canônica, que tendem a ignorar as expressões diretas da cultura popular de materialização da matemática.

Observando uma outra fala que revela uma visão de conhecimento escolar centrado na figura do professor, reproduzindo uma relação vertical e hierarquizada. Vejamos:

Na sala de aula você encontra alunos de diversas classes sociais. Então eu, como professor, utilizo meu conhecimento cotidiano, para direcionar os alunos no mesmo nível.

Partido da noção de classe social, proposta pelo entrevistado, percebemos que as individualidades são marcadas pela condição de classe de cada aluno. O nivelamento traduz a necessidade de homogeneizar as relações, pois, nesse caso, a condição heterogênea da clientela passa a ser um problema. O professor estabelece um único saber cotidiano como referência, o seu próprio. Isso revela que, na medida que reconhece diferentes saberes cotidianos nos alunos, instituí um só, tendo como si próprio a referência. Elege o cotidiano para exemplificar a aprendizagem, mas delimita o cotidiano referência, anulando a própria abordagem, voltada para a vivência cotidiana.

A necessidade de unificar os desníveis sociais e culturais, dentro da sala de aula, na atitude do professor anteriormente citado, revela um mecanismo de supressão das desigualdades sociais que funciona no ambiente escolar e que se torna um importante veículo de apagamento das diferenças, atuando paradoxalmente como reforçador das desigualdades sociais e culturais.

Conforme Bourdieu (1998, p.53), sobre como são vistas as desigualdades culturais na escola:

"Para que sejam favorecidos os mais favorecidos e desfavorecidos os mais desfavorecidos, é necessário e suficiente que a escola ignore, no âmbito dos conteúdos do ensino que transmite, dos métodos e técnicas de transmissão e dos critérios de avaliação, as desigualdades culturais entre as crianças das diferentes classes sociais. Em outras palavras, tratando todos os educandos, por mais desiguais que sejam eles de fato, como iguais em direitos e deveres, o sistema escolar é levado a dar sua sanção às desigualdades iniciais diante da cultura. A igualdade formal que pauta a prática pedagógica serve como máscara e justificação para a indiferença no que diz respeito às desigualdades reais diante do ensino e da cultura transmitida, ou, melhor dizendo, exigida".

Ainda sobre a concepção de uniformidade cultural, Lave (1988, p.130) comenta:
"O conceito de uniformidade cultural reflete hipóteses funcionalistas sobre a sociedade como uma ordem consensual, e transmissão cultural como um processo de reprodução cultural homogêneo através das gerações".

A tendência em criar estratégias de gestão do conhecimento que viabilizem a uniformidade e transformem em homogênea a "clientela escolar", reflete a busca de uma "comodidade" profissional dos docentes, como aponta Sacristán (apud Territórios Contestados; 1995, p. 104):

"A comodidade profissional dos docentes e a resposta adaptativa desses, a certas condições de trabalho não satisfatórias, têm conduzido e reforçado a crença de que é mais fácil trabalhar com uma base homogênea de estudantes, o que repercute num estilo profissional que submete a um mesmo tratamento pedagógico, grupos de alunos com uma heterogeneidade interna".

Observando outras duas falas, estas referentes ao aspecto motivacional que o saber cotidiano adquire na prática pedagógica:

Muitos exemplos do cotidiano despertam interesse no aluno. Ele percebe que está aprendendo coisas que vai utilizar quando precisar.

Quando aproveitamos alguma situação do cotidiano do aluno, com certeza ele mostrará maior interesse nessa relação saber/experiência.

Nesse contexto, o saber cotidiano é utilizado como um recurso pedagógico para elevar a motivação ou atribuir qualidades aplicativas ao conteúdo ensinado. O conhecimento cotidiano não conserva, nessa perspectiva, relações intrínsecas com o conhecimento matemático formal.

Conforme Monteiro (apud Cadernos Cedes, 2003), sobre como o saber cotidiano é visualizado, numa perspectiva curricular, em relação aos PCNs:

"Quanto ao saber cotidiano, entendido como restrito e intuitivo, é compreendido como um saber prévio e torna-se relevante na medida em que é usado como subsídio pedagógico que favorece a apreensão de significados dos conceitos e promove situações pedagógicas motivadoras, possibilitando uma aprendizagem mais efetiva".

Analisando mais duas falas a respeito de como é visto o saber cotidiano na prática pedagógica, refletindo a delimitação de um espaço com relações paralelas ao conteúdo formal. Vejamos:

(...), mas nem todos os conteúdos podem ser justificados no cotidiano. É importante deixar claro que nem tudo é imediatamente aplicado.

(...), pois ajuda no entendimento da teoria de sala de aula com as atividades dos alunos fora de sala de aula.

Conforme Monteiro (apud Cadernos Cedes, 2003), sobre como o saber cotidiano é visualizado em comparação ao conhecimento científico, em relação aos PCNs:

"Tais documentos limitam-se a estabelecer o saber escolar como aquele que, aproximando-se do científico, sobrepõe-se ao do cotidiano e considera o primeiro como superior e legítimo, desconsiderando, assim, a diversidade cultural e social dos estudantes".

Sobre como o saber cotidiano é visto como um conhecimento simples, em relação ao científico, que é visualizado numa condição oposta, como complexo, Garcia (1998:84) comenta:

"Devemos notar como o conhecimento cotidiano recebe, em muitos casos, um tratamento pejorativo, por se considerar que ele trabalha com problemas muito simples ou mal definidos, com estratégias heurísticas, e com pouca precisão na formulação e organização dos sistemas conceituais. A polarização entre o científico e o cotidiano associa-se, portanto, a uma certa hierarquização do conhecimento, na qual há conhecimentos melhores e piores, superiores e inferiores, mais válidos e menos válidos".

Segundo Garcia, não existe conhecimentos intermediários entre o saber cotidiano e o científico, havendo com isso um distanciamento que é recorrente da própria natureza de cada conhecimento, instituído socialmente e que se reproduz dentro do efeito da divulgação científica. O distanciamento é constitutivo da estratégia de legitimação, que permite ao conhecimento escolarizado, estabelecer, com a ciência, sua ancoragem legitimadora. Com isso, quanto mais distante ele se estabelecer do conhecimento comum e cotidiano, mais ascendência terá sobre a sociedade e o que ela considera como legítimo.

3.3. Relações do conhecimento cotidiano com a prática escolar


Essas relações são visualizadas dentro do contexto das atividades que envolvem os saberes cotidianos, como podemos verificar na fala de alguns dos entrevistados, possibilitando estabelecer algumas categorias de análise, tais como:

a) No desenvolvimento de projetos;
b) No desenvolvimento da Geometria Espacial;
c) Em situações-problema;
d) Descrevendo uma viagem, compras, convívio com amigos;
e) A administração da mesada;
f) Uso de folhetos, anúncios jornais revistas;
g) Estudando um fato em evidência (eleições, campeonatos, copa do mundo, etc.);
h) Cálculos de área, utilizando o espaço físico da unidade escolar;
i) Classificação e encaixe de peças;

A seguir, analisaremos algumas falas que registram experiências com o conhecimento cotidiano e que revelam como esse conhecimento é identificado, estabelecendo relações com o conhecimento escolar.

Levantamento de preços de mercadorias durante um determinado período, a fim de calcular a diferença dos preços (operações com decimais) e porcentagem de aumento.

Podemos trazer questões, problemas que estão presentes na realidade do aluno. Situações práticas no lar, no convívio com os amigos, na própria escola, etc...

Estou ensinando regra de três simples. Pedi para os alunos contarem quantos passos levam de casa até a escola. Depois pedi que aumentassem a passada. Medimos a passada dos alunos e calculamos o tempo gasto para chegar a escola e a distância. Eles ficaram interessados e aprenderam fácil o cálculo.

Foi possível notar que vários professores entrevistados, quando questionados sobre em que situações utilizavam o conhecimento cotidiano, responderam que o faziam em "situações-problema". Percebe-se que nesse tipo de abordagem, a qual envolve as "situações problema", a presença do saber cotidiano nem sempre se configura, pois o fato de se relacionar o conhecimento matemático escolar com a realidade do aluno não é necessariamente uma forma de abordar o cotidiano do aluno, produzindo relações que não apresentam valor intrínseco entre o conhecimento cotidiano e o conhecimento escolar.

Segundo Lave (1988, p. 128), sobre uma situação semelhante, "(...) Neste contexto, a transformação de relações de quantidade é reduzida a procedimentos de resolução de problemas o que significa relações terminais em si mesma".

Pode-se perceber que a tônica dessas práticas pedagógicas consiste em acrescer situações cotidianas da vida "real" do aluno, aos conteúdos do conhecimento escolar. Os saberes cotidianos são visualizados como suporte motivacional ou de caráter exploratório para o conhecimento escolar. De forma geral, as relações estabelecidas entre esses dois tipos de conhecimento, acontecem de maneira artificial, fazendo prevalecer o conhecimento escolar sobre o conhecimento da vida cotidiana. O próprio conhecimento escolar se caracteriza por um distanciamento das relações sociais com o conhecimento, se estabelecendo num caráter formal, metódico e repetitivo.

Observando o sentido da fala apresentada a seguir, o conhecimento cotidiano e o escolar são dispostos, nas relações sociais, em valores polarizados. Vejamos:

Aluno traz seu dia-a-dia para que com isso ligarmos ao conteúdo ou mostrar-lhes que mesmo que nesse momento parecer que sua vida nada tem a ver com o que ele vê na escola, a sociedade usa tudo isso no dia-a-dia e cobra de todos nós o mínimo de um conhecimento para relacionarmos com o nosso mundo e com outros locais.

Sobre as relações entre o saber cotidiano e o saber escolarizado, visualizadas na perspectiva da fala apresentada anteriormente, Garcia (1998, p.84) aponta:

"No artigo de Reif e Larkin [...],pois, ao comparar o conhecimento científico com o cotidiano, definem este último como o ?conhecimento comum sobre os fenômenos naturais adquirido pela maioria das pessoas na vida diária e nas primeiras etapas de escolarização, antes de chegar a um estudo mais sistemático da ciência?. Nesta definição encontramos implícita a idéia de que o conhecimento cotidiano é um saber prévio à instrução, que tem sentido naquelas etapas da vida em que ainda não se pode ter acesso ao conhecimento científico, idéia sintonizada com a crença de que a sabedoria própria do ?sentido comum? é primitiva e pouco racional, em contraposição a um conhecimento científico racional e mais elaborado".

Podemos inferir que o discurso educacional presente nas falas aqui apontadas reflete a valorização do conhecimento escolar sobre o conhecimento cotidiano, revelando a própria condição de marginalização dos saberes populares em relação à cultura dominante. Longe de ser um espaço de neutralidade onde as diferenças sociais são apagadas, a escola nada mais é que lugar de reprodução das desigualdades sociais, pelo tratamento dado aos conteúdos e às estratégias pedagógicas. O sistema educacional, sob o ponto de vista aqui apresentado, não valoriza as vivências cotidianas dos alunos, utilizando-as preponderantemente como recurso pedagógico motivacional e facilitador da aprendizagem.

A natureza da cultura escolar dificulta a inserção dos saberes cotidianos nas práticas pedagógicas, como aponta Sacristán (apud Territórios Contestados; 1995, p. 101-102):

"A cultura escolar enfatiza o intelectual, em detrimento da dimensão social, afetiva, estética, motora, manual ou ética dos alunos.[...] O ser humano, na vida normal, exercita a observação, a comunicação, a aprendizagem, a tomada de decisões ponderadas, a expressão, a manipulação de objetos e instrumentos em situações muito mais variadas do que na escola [...] A cultura escolar propõe e impõe não apenas formas de pensar, mas ?comportamentos" dentro das escolas e das salas de aula?".

Esse aspecto reflete como a cultura popular é vista, em contraposição a uma cultura legitimada socialmente, representada pela cultura escolar. Vejamos como cita Knijnik (1996, p.101), sobre a relação de dominação cultural no "esquema" de Grignon e Passeron:

"[...] na origem, há uma dominação social entre as classes, estabelecida por uma relação de força econômica de uma sobre a outra, a saber, das classes dominantes sobre as dominadas. É esta força material também, que possibilita aos grupos dominantes definirem a ?sua? cultura como a cultura válida, legítima, instaurando entre as classes não mais somente uma relação de subordinação econômica, mas, ademais, uma relação simbólica. Tem-se, então, uma relação de força material que fica reforçada pela violência simbólica que a gerou. Seria este o papel da dominação simbólica: realizar o ?esquecimento? de que existe a relação de força material original, fazendo parecer ?legítima? a dominação simbólica".

O papel da escola frente à reprodução de uma cultura dominante, instituí uma dominação simbólica, que busca naturalizar um padrão de cultura, provocando o "esquecimento" das diferenças sociais e culturais. Esse fato caracteriza a violência simbólica que existe na forma como são estabelecidas as relações entre o conhecimento escolarizado, baseado no conhecimento científico, e o conhecimento cotidiano, associado às práticas diárias, sendo visto como conhecimento rotinizado e típico das situações informais.
Conforme Bourdieu (1998, p.50): "O capital cultural e o ethos, ao se combinarem, concorrem para definir as condutas escolares e as atitudes diante da escola, que constituem o princípio de eliminação diferencial das crianças das diferentes classes sociais".

Esse fato leva ao fracasso escolar de parte significativa dos alunos, que não se identificam com o que é ensinado nas escolas. O código de seu domínio é restrito e não corresponde a um padrão de desempenho e de êxito, que segundo Bourdieu (200, p.201), corresponde ao habitus cultivado - "sistemas de disposições inconscientes que constitui o produto da interiorização das estruturas objetivas". O fracasso é encarado como falta de pré-requisitos, porém as características que determinam "as habilidades, as aptidões e as competências", não dependem somente da capacidade ou do esforço pessoal do aluno, mas do acesso ou não ao capital cultural, dentro da vida familiar primeiramente. Essa mesma força que naturaliza o fracasso, identifica-se com a ideologia do dom, promovendo o êxito como resultante do atributo pessoal, mascarando as disposições sociais de exclusão, que tendem a criar mecanismos de ordem e imobilismo social.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

É possível concluir que a relação dicotômica estabelecida entre o saber cotidiano e o saber escolar, deve ser relativizada e questionada, a fim de serem identificadas as relações intrínsecas entre esses saberes, que são interdependentes e geram um processo de conhecimento cognitivo integrado e complexo, que transcende às categorias que a escola instituí.

Dentro dessa abordagem, o conhecimento matemático é visualizado como saber construído ao longo da vida de cada indivíduo, num processo cognitivo que se desenvolve desde as primeiras relações concretas e operacionais estabelecidas na infância, até as relações formais e abstratas da maturidade, sendo resignificado no contexto das relações sociais.
O conhecimento matemático, dentro da esfera escolar, constituí apenas uma fração de um conhecimento mais amplo e rico, que estrutura parte do processo de pensamento e cognição de cada indivíduo.

O conhecimento matemático se manifesta nas relações sociais, através de atitudes comuns da rotina diária, como a escolha de um produto num magazine, ou a resolução de um cálculo matemático, no planejamento dos gastos mensais. O que difere são graus de profundidade e complexidade mediados pela necessidade de solução de uma questão, seja ela escolar ou cotidiana.

Tais reflexões tornam imperiosa a necessidade de repensar a nossa prática pedagógica, de modo a romper com o imobilismo e o conformismo nas relações com o conhecimento atribuído pelos currículos, na busca de transformar a Escola numa instituição mais "real" e acessível às necessidades e motivações que configuram a realidade dos nossos alunos.

Referências bibliográficas

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