UMA PROPOSTA ENSAÍSTICA DO “OUTRO” NA HISTÓRIA: O CASO FRBRÔNIO INDIO DO BRASIL, NA OBRA DE PETER FRY

O homem contempla e admira esse grande ser vivo que é todo o mundo; faz parte dele.

(Homero) 

RESUMO: O presenta artigo faz uma abordagem sobre a questão do outro na História refletindo a cristalização de alguns hábitos e costumes socialmente instituídos. Nesse sentido utilizaremos Sigmund Freud e Jacy Alves de Seixas para nos servir de referência teórica enquanto discutimos o caso Febrônio Índio do Brasil, na obra de Peter Fry. Em sua trajetória, Febrônio deixa de ser o “outro” para servir de objeto de estudo para a Antropologia, para a psiquiatria, para a psicologia e, também como um instrumento de reelaboração e ressignificação dessas e outras áreas de conhecimento

PALAVRAS CHAVE: História do Outro; Etnocentrismo; O Estranho; Frbrônio Índio do Brasil

ABSTRACT: This paper presents an approach on the question of the other in history reflecting the crystallization of some habits and customs socially instituted. In this sense we use Sigmund Freud and Jacy Alves de Seixas to serve us as we discuss the theoretical framework of the Febrônio Índio do Brasil case, the work of Peter Fry. In his career, Febrônio ceases to be the "other" to serve as an object of study for anthropology to psychiatry to psychology and also as a tool for rewriting and reframing these and other areas of knowledge.

KEYWORDS: History of the Other; ethnocentrism; The Stranger; Frbrônio Índio do Brasil

A presente análise pretende abordar a questão do outro, como uma forma diferenciá-lo do convencional, da regra, mostrando a forma como o “diferente” causa estranheza, espanto ou monstruosidade, como já citava Lévi-Strauss num ensaio sobre Etnocentrismo. [1] Trataremos do outro, bem como a forma como se interpreta ou se atribui significados ao mesmo. Para tanto abordaremos alguns assuntos que instigam diferentes interpretações, visões e concepções; ainda, distintas abordagens oriundas de ângulos variados.

Nossa abordagem será mediada por referenciais que nos fornecerão a base teórica para a pretendida análise. Tais textos nos oferecerão maior inteligibilidade no que diz respeito a abordagem ao “outro”: O estranho, de Sigmund Freud, A Imaginação do outro e as subjetividades narcísicas, de Jacy Alves de Seixas e A evolução da Noção de “Indivíduo Perigoso” na Psiquiatria Legal do século XIX de Michel Foucault.

Nossa sociedade é composta por diferentes manifestações culturais, estas estão diretamente ligadas ao comportamento a ações dos indivíduos e, consequentemente, seus valores, sua visão de mundo, seus interesses em abordar o outro, entre outros aspectos, serão distintos. Segundo Norbert Elias, antes do século XIX já existiam alguns códigos de civilidade e de comportamento, tanto na mesa, quanto na vida social. Essa distinção de comportamento é apresentada pelo autor para ilustrar a “mobilidade” entre o espaço público e privado.

Em O estranhoFreud se propõe a investigar as condições que promovem o aparecimento do estranho, considerando-as como fatores básicos de retorno de um conteúdo reprimido, qualquer que fosse seu afeto original. Salienta que estranheza se deveria ao retorno em si, e à secreta familiaridade do fenômeno, indicando, portanto, não ser este novo ou alheio à mente, mas que apenas teria sido afastado pela repressão.

Tratamos aqui de um caso no qual a figura do outro é abordada, lida e analisada por diferentes ângulos. O caso Febrônio Índio do Brasil, sob a análise de Peter Fry, merece ser abordado e entendido, nesse caso, como uma construção pautada por um conjunto de interesses.

Febrônio Índio do Brasil é uma das mais intrigantes e assustadoras figuras na história brasileira. Filho de açougueiro, durante a década de 20, Febrônio era antes de tudo um criminoso. Uma espécie de "bicho-papão" para as crianças brasileiras das décadas de vinte e trinta; ele ganhou esta fama ao ser preso, em 1927, sob a acusação de ter estrangulado dois menores que resistiram a seus ataques homossexuais. Os corpos, encontrados na Barra da Tijuca, tornaram Febrônio um dos criminosos mais conhecidos do Brasil.

O mineiro Febrônio Índio do Brasil, já era velho conhecido da polícia, tendo sua primeira prisão ocorrido em 1916, aos 21 anos, depois da qual se acumularam outras 29, por motivos diversos como roubo, vadiagem e chantagem. Atuou como médico e dentista sem licença ou formação em diversas cidades do Brasil. No final dos anos 20, depois de uma visão mística, Febrônio tornou-se um profeta. Evangelizador de uma religião própria que pregava a existência do Deus vivo.

De acordo com as ordens de uma santa loura que apareceu em uma visão, sua missão era “escrever um livro e marcar os jovens eleitos com as letras D.C. V.X. V.I., tatuagem que é o símbolo do Deus- Vivo, ainda que com o emprego da violência!”. Febrônio escreveu o livro, "Revelações do Príncipe do Fogo", onde descrevia prolixamente esta religião, que ele próprio mandou imprimir e vendia de mão em mão.

Com prosa apocalíptica e tumultuada, Febrônio inspirou modernistas como o brasileiro Mário de Andrade e o francês Blaise Cendrars, que escreveram sobre ele. No julgamento, o advogado Letácio Jansen, solicitou sua internação numa casa de loucos onde houvesse a devida segurança e precisa vigilância.

Com sua insanidade sendo atestada Febrônio foi para um manicômio. Num laudo de trinta e quatro folhas o médico Heitor Carrilho determinou o sepultamento em vida do homem que, a partir de 1936, foi esquecido, passando longos períodos na solitária. Aos 89 anos e completamente senil, o preso mais antigo do Brasil, interno número 000001 do Manicômio Judiciário, morreu de edema pulmonar agudo. Havia passado 57 anos no hospício.

Para Peter Fry, o caso de Febrônio índio do Brasil representa, neste sentido, uma situação dramática capaz de revelar não só noções correntes da sociedade brasileira da época sobre o crime, homossexualidade, profecia, loucura, punição e correção, mas também algo a respeito dos vários personagens que se envolveram com o caso. A partir de um determinado momento, Febrônio deixava de ser o sujeito e o médico passava a ter o direito de dizer o que o outro não podia dizer. O médico adquiria a autoridade necessária para dar rumo à vida do outro, às decisões, o que é viável ou inviável, etc.

O caso de Febrônio Índio do Brasil passa a servir de objeto de estudo e análise para vários campos de conhecimento. Dessa maneira, diversas áreas vão ser resinificadas, reformuladas, revistas, repensadas, aperfeiçoadas.

Não nos cabe aqui estabelecer divergências ou aproximações entre o outro na psicanálise e na história, se é que é possível estabelecermos distinções. Mas quando Peter Fry apresenta-nos diversos profissionais debruçados no caso Febrônio, temos o outro e quem fala pelo outro vivendo e convivendo simultaneamente, ou seja, presentes no mesmo tempo e espaço.

A autora Jacy Alves de Seixas nos traz a ideia de que na contemporaneidade, as condições do exercício da alteridade transformam-se substancialmente, e o outro como exclusão, foi preenchido de forma ainda espantosa, os espaços de significação, reconhecimento e visibilidade social e simbólica. Segundo Marcia Nayara, hoje o outro é aquele que não apenas é discriminado, mas coisificado.

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FREUD, Sigmund. Obras Completas. Vol. XVII. Rio de Janeiro: Imago. 1969O caso de Febrônio Índio do Brasil encontra-se presente na obra de Peter Fry, Caminhos Cruzados. São Paulo: Brasiliense, 1982.