A questão da vacinação vem sido abordada a partir de determinado momento na história humana, tendo suas práticas atreladas a políticas públicas de saúde, que vinham se tornando evidenciadas desde o Século XVIII, aumentando sua abrangência consideravelmente a partir do Século XIX, procurando atender uma necessidade considerada sui generis.

O mundo procura se adequar a uma normatização higiênica, com intuito revelado de não mais sofrer danos causados por epidemias de outrora, que tinham como foco hábitos não condicionados por uma padronização higiênica, fator este primário da grande mortandade que solapou o mundo em séculos passados, como no período chamado de Idade Média.

Entretanto, o filósofo francês Michel Foucault, em obras que tiveram grande projeção científica, como História da Sexualidade, podendo também ser mencionado O Nascimento da Clìnica ou Microfísica do Poder, onde discute uma transformação da sociedade, em que a padronização higiênica teria um caráter também de controle, disciplina do corpo, atendendo uma mentalidade capitalista que focava o desenvolvimento humano atrelado ao processo produtivo, tornando o sujeito um "mecanismo" na produção, fazendo-se necessário adequá-lo às condições emergentes e a rotina de tempo controlado.

A partir desta perspectiva, temos os hábitos humanos sendo alterados de forma radical, onde o estilo rústico começava a se restringir, o camponês era metropolizado, o homem civilizado era moldado de acordo com uma lógica urbana, assim como as relações sociais que se construíam a posteriori.

O Brasil do Século XIX, também promove sua transformação higiênica, aplicando uma ordenação que simulava um padrão europeu que era estendido ao mundo contemporâneo, com governantes imbuídos de fazerem ecoar as novas políticas sociais, criando outra perspectiva de conduta social, alterando as relações humanas e o convívio dos indivíduos em meio a uma "sociedade higienicamente correta".

O Rio de Janeiro, como capital do Brasil desde o Século XVIII, possuía a prerrogativa de ser exemplar nas práticas que a República se adequava, tendo como austero executor Rodrigues Alves, então presidente (1902-1906), contando com o apoio do prefeito Pereira Passos, nomeando como autoridade que detém o poder do conhecimento técnico, o médico Oswaldo Cruz, que viria assumir a Diretoria Geral de Saúde Pública.

Deve-se salientar a intenção de "modernizar" a capital republicana, sendo esta a real política implantada, criando formas de transformar a realidade brasileira, adequando a um padrão europeu de "civilização", tendo como foco o aumento da exclusão social e das disparidades sócio-econômicas.

Em 1904, somado às projeções governamentais, ocorreu uma epidemia de varíola que assolou a cidade do Rio de Janeiro, sendo implantada a obrigatoriedade da vacinação, conforme lei vigente desde 1837. Ciente da resistência popular, a vacinação foi aplicada nos moldes militares, com a divisão territorial da cidade em distritos, assim como uma polícia sanitária que iria impor as medidas.

A vacinação foi mal recebida, a começar pela forma como foi aplicada, onde moradores tinham suas casas invadidas, vacinados à força, sendo injetados líquidos desconhecidos sem o esclarecimento devido, causando pânico na população que se sentia coagiada diante de tal arbitrariedade.

A oposição colocou-se contrária as práticas governamentais, divulgando sua insatisfação publicamente, a imprensa também se posicionou contrária as práticas de Oswaldo Cruz, alimentando desta forma um movimento de resistência às medidas que estavam sendo executadas, o que inflamava as camadas populares.

Em 11 de novembro de 1911 eclodiu o motim que ficou conhecido na História como "Revolta da Vacina", tendo o Rio de Janeiro como cenário, uma verdadeira guerra civil, a população em clima de revolta provocou vandalismo, ocorreram tombamentos de veículos, incêndios, saques, apedrejamentos, embate violento contra tropas policiais, com estatísticas policiais de 23 mortos, 67 feridos e 945 presos.

Historiadores salientam este momento como o resultado de um processo que se desenvolvia naquele período, onde as práticas políticas marginalizavam a sociedade com medidas elitistas, criando um segregacionismo social, com a implantação de medidas quem solapavam as camadas populares.

O chamado "bota abaixo", que demoliu diversas moradias em prol de um projeto modernista, assim como medidas jurídicas de exclusão que foram promovidas causaram grande descontentamento popular, criando uma repulsa aos projetos que já se sabia de antemão, serem em detrimento das camadas populares.

A vacinação se tornou um álibi para certas práticas que o governo desejava implantar, a população, ciente do ardil, procurou resistir de forma drástica, em consonância à insatisfação acumulada, criando um conflito de proporções tão escabrosas, ao mesmo tempo demonstrando sua força de reação e organização, evidenciadas nas dificuldades de conter o conflito.

Conclui-se que a Revolta da Vacina serve como marco de um período de transformação social em que governo e população confrontaram-se, o primeiro pela perspectiva de impor uma nova política, o segundo como resistência ao aviltamento que as classes populares sofreram ao longo dos anos.

Referência Bibliográfica:

PORTO, Mayla Yara. Cienc. Cult. vol.55 no.1 São Paulo Jan./Mar 2003. Publicado em: http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?pid=S000967252003000100032&script=sci_arttext&tlng=pt

PÔRTO, Ângela; PONTE, Carlos Fidelis. Hist. cienc. saude-Manguinhos vol.10 suppl.2 Rio de Janeiro 2003. Publicado em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-59702003000500013&script=sci_arttext&tlng=pt

SEVCENKO, Nicolau. Hist. A Revolta da Vacina: Mentes insanas em corpos rebeldes. São Paulo: Scipione, 2003.