Werner Leber

Uma grande filosofia vale pelos flancos que ela deixou abertos. Esse é o caso de Kant, ao menos em minha modesta visão. Seus adversários aproveitaram-se das lacunas de sua filosofia e por elas emprenharam-se, fazendo o contrário das intenções dele. O construto de Kant expresso em suas Críticas, e que forma a base de seu projeto criticista, teve como função equacionar o dilema fé e razão, que agora haviam sido colocados de lados opostos. Como sabemos, o construto de Kant, qual seja, a junção dos princípios empiristas e inatistas em um novo paradigma, chamado Criticismo pelos comentadores contemporâneos, abriu também uma brecha perigosa nas concepções religiosas em detrimento da ciência, e que traíram às intenções de Kant. Kant evidentemente sabia dos perigos que já estavam instalados no pensamento ocidental desde que a Navalha de Ockam havia sido posta em marcha no final da Idade Média, somada às investidas de Francis Bacon e Descartes, já na modernidade. Kant sabia que a filosofia moderna o que mais fazia era desqualificar a fé o tanto que podia. Mas como Kant se comporta diante do dilema de ter que preservar a legitimidade da fé, da teologia e da filosofia, sem as desqualificar? Como mantê-las se elas, aparentemente, se excluem? O problema de Kant movimentar-se diante de três dilemas: i) manter a filosofia relevante; ii) não negar os princípios fundamentais das ciências empíricas; iii) manter a legitimidade da fé dentro do universo petista em que ele se encontrava.

De determinado modo, a prática filosófica encontrava-se alinhada à racionalidade científica moderna, na qual à fé pouco espaço sobrou. A teologia deixou de ser uma ciência pública para tornar-se uma ciência de seminários somente. Seu conteúdo pouco a pouca deixava ser tema de debate civil para tornar-se apenas conhecimento de quem prega aos convertidos. A tradição cristã e a fé haviam sido empurradas para o âmbito privado, naquela famosa separação entre Igreja e Estado que pouco a pouco se consolidava no Iluminismo europeu. Sendo o Estado laico, a religião não é mais assunto de interesse público. Se tomarmos como regra a Crítica da Razão Pura, veremos que Kant quer separar o que se "pode pensar" do que se "pode saber". Mesmo que minha abreviação das intenções Kant seja grosseira, posto que não pretendo e nem poderia esgotar a fecundidade da filosofia Kantiana, julgo que ela esteja sumariamente correta. Pensar e saber significam então coisas distintas para ele. A razão pura, só pode saber o que se dá nos seus limites transcendentais de Tempo e Espaço. Dessa forma, Deus, Anjos, Ressurreição, Pecado, Queda, não categorias objetivamente (tecnicamente) conhecíveis pelo intelecto. Elas não podem ser provadas, pois “[...] o que pode ser provado é insignificante, diz Brunner (2004, p. 69). Era necessário, conforme nosso autor, primeiro determinar o alcance do conhecer. Assim escreve Kant (2005, p. 47) "A filosofia precisa de uma ciência que determine a possibilidade, os princípios e a extensão de todo conhecimento a priori". Depois vem a "Antinomia da razão pura" (op. cit., p. 344-349) em que Kant formula as teses com as quais tentará mostrar a impossibilidade da prova ontológica (id. ibid., p. 450), prova cosmológica (id ibid., p. 456) e físico teológica de Deus (id. ibid., p. 466). O que eu quero apontar é o seguinte: Kant era encontrava-se dentro do pietismo prussiano e protestante, que influenciou decisivamente sua crítica. Há várias questões religiosas em Kant. Ele está em luta com a fé e com a razão. A separação entre “o que se pode saber” e “o que se pode pensar” tem raízes protestantes, e no caso de Kant, luteranas. Maurice Merleau-Ponty, às vezes, ironicamente o chamava “Pastor Kant”. Deus e toda teologia pertencem somente à fé. O teólogo Robert Jenson (BRAATEN; JENSON Eds. 1990) considera essa questão central em Kant. No fundo, Kant quis dizer: o problema revelatório de Deus não é assunto de filosofia. Como se expressou Brunner (2004, p. 69) “[...] a palavra de Deus pode ser respondida apenas pelo sim da decisão e não pelo sim de uma convicção teórica". Kant, ainda que minha afirmativa agora careça de explicações mais detalhadas, preservou aquela tradição de Lutero do Debate Heidelberg de 1518, tese 29, quando afirma: “Quem quiser filosofar sem perigo em Aristóteles precisa antes tornar-se bem tolo em Cristo” (LUTERO, 2004, p. 39).

REFERÊNCIAS

BRAATEN; JENSON, Eds. Dogmática cristã. São Leopoldo, RS: Sinodal, 1990, v.1. Para as partes que mencionei, páginas 175-191 (O Ser de Deus).

BRUNNER, Emil. Teologia da crise. Editado por Eduardo de Proença e Eliana Oliveira de Proença. 2ª reimpressão. São Paulo: Editora Novo Século, 2004.

KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. [tradução de Alex Marins]. São Paulo: Martin Claret, 2005.

LUTERO. Obras selecionadas: os primórdios – escritos de 1517 a 1519. São Leopoldo/Porto Alegre: Sinodal/Concórdia, 2004, v.1.

Kant vê a racionalidade constituída por um padrão universal, seria como uma Lei Universal da razão, e que estaria dado pelo Tempo e pelo Espaço. É como se a razão tivesse uma estrutura única e universal em todos nós. Ele chama a isso de A Priori.

Emil BRUNNER, em Teologia da crise, uma coleção de textos de diferentes épocas do autor suíço, oferece um bom ensaio sobre essa temática.

Pietismo foi um movimento de reavivamento espiritual surgido nos meios protestantes no século XVII, e que chegou também aos meios da fé católica. Tinha como objetivo manter a dignidade da fé diante das investidas renascentistas e iluministas que ameaçavam destituir por completo a teologia e, sobretudo, o cultivo do Evangelho e a prática comunitária cristã, considerados ultrapassados para a visão moderna e cientificista de mudo que surgia.