Uma leitura psicanalítica da síndrome de burnout em profissionais de saúde

Resumo

O presente artigo tem como objetivo fazer uma leitura psicanalítica dos vínculos sociais entre profissionais de saúde acometidos pelo estresse crônico no espaço institucional, nomeado de Síndrome de Burnout. Se recorrermos à psicanálise freudiana perceberemos que  em processos e conflitos subjetivos o inconsciente emana de recônditos do psiquismo por meio de sintomas. Neste ponto, a ideia de síndrome passa a contar neste trabalho como uma manifestação sintomática. Desde já, cabe situar nosso interesse na dimensão inconsciente que se presentifica em modos de existência como em vínculos que operam nas interações sociais no trabalho de profissionais de saúde, por meio da compreensão de mecanismos de defesa psíquicos que operam neste cenário. O estresse crônico provoca grande sofrimento psíquico nos profissionais, em especial naqueles que lidam diretamente com o ser humano e suas emoções, doenças e morte. Assim, propomos uma leitura psicanalítica acerca dos sintomas do burnout com o intuito de suscitar uma reflexão sobre os vínculos que permeiam as relações entre os profissionais de saúde em seus ambientes institucionais.

Palavras chave: psicanálise, burnout, profissionais de saúde.

Introdução

Na atividade laboral os profissionais de saúde convivem diariamente com grandes demandas em um ambiente profissional permeado pelo sofrimento e pulsão de morte. Tais profissionais usam dos mecanismos de defesa de forma a manter sua integridade e equilíbrio perante a complexa dinâmica cotidiana. No entanto, diante das crescentes demandas não elaboradas e convivendo com a progressiva cronificação do estresse, encontramos profissionais que passam a ter mecanismos de defesa com excessiva  presença.

Estudos recentes registram o grande sofrimento psíquico que estes profissionais estão expostos, como também a necessidade de intervenção preventiva para que os mesmos tenham espaço possível para suas pulsões de vida, pois quando isso não acontece, seus investimentos libidinais se esvaziam, “queimando” assim sua singularidade e a possibilidade de elaboração saudável da vida profissional, como também de suas relações interpessoais.

Desenvolvimento

O termo burnout é de origem inglesa e quer dizer “aquilo que parou de funcionar” (TRIGO et. al., 2007). O uso desse termo começou por volta dos anos 70 em publicações de Freudeberg[1] nos Estados Unidos, onde ele descreveu o comportamento que alguns voluntários começaram a apresentar frente ao trabalho em uma clínica de dependentes químicos (BIEHL, 2009). Freudeberg observou nesses voluntários o surgimento de sentimentos de derrota em relação ao próprio trabalho, como também exaustão e frustração por não conseguirem atingir as metas traçadas no programa de tratamento. Assim, esses voluntários passaram a ter atitudes e reações agressivas com os pacientes adictos, além de dispensarem tratamento distanciado e cínico, como também tinham a tendência a culpá-los pela própria doença (LOPES, 2009). Posteriormente, esse termo – burnout - foi francamente usado por Maslach e Jackson em várias publicações desde a década de 80 (BIEHL, 2009). A síndrome de burnout está listada no Código Internacional de Doenças (CID-10) sob o código Z73, como também foi declarada como risco ocupacional para atividades profissionais que envolvam: cuidados com a saúde, educação e serviços humanos.

Observamos que profissionais de todas as áreas são cada dia mais atingidos pela síndrome de burnout, em especial os profissionais da área de saúde (médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, psicólogos dentre outros). No Brasil, os que se enquadram nesta categoria parecem estar submetidos a uma maior influência de fatores estressantes, principalmente se trabalham na área de saúde pública, que apresenta problemas de infraestrutura, falta de material básico para o atendimento, grande demanda imposta pelos órgãos responsáveis e etc. No que concerne ao Sistema Único de Saúde (SUS), os desafios que decorrem de sua implementação são, dentre outros: a universalização, a regionalização, a hierarquização dos serviços, o que leva o profissional a estar sempre atento a seus papéis como também ao papel da instituição pública junto aos seus usuários (BORGES et al., 2002 apud CARVALHO & MALAGRIS, 2007).

Mas afinal o que é a síndrome de burnout? A síndrome de burnout se refere a um processo onde o indivíduo vivencia grandes níveis de estresse por longo período em sua atividade laboral, ou seja, é uma síndrome resultante de estresse profissional crônico (BIEHL, 2009). Como a própria etiologia sugere é um agregado de sinais e sintomas associados a uma mesma patologia. A literatura especializada trás uma relação considerável de sintomas associados ao burnout. Tais sintomas são separados em quatro categorias: sintomas físicos, comportamentais, defensivos e psíquicos (BENEVIDES-PEREIRA, 2008). Cada um dos grupos reúne características específicas.

O grupo de sintomas físicos inclui, dentre outros, um grande cansaço, falta de energia além de queixas de dores musculares (o indivíduo se sente literalmente “travado” em seus movimentos).

Os sintomas comportamentais reúnem características ligadas à negligência ou escrúpulo excessivo, o que acarreta em dificuldades relacionadas com atenção (pois o indivíduo passa a ser negligente com suas atividades ocupacionais, podendo se vitimar ou causar acidentes a outrem, como também se tornar obsessivo em verificar a mesma atividade várias vezes); irritabilidade; aumento da agressividade através de atitudes hostis e destrutivas; incapacidade de relaxamento por estar sempre em alerta; intolerância a mudanças; incremento no uso de substâncias; exposição a alto risco para minimizar sentimento de insuficiência; como também atentar contra sua própria vida (suicídio).

Os sintomas defensivos reúnem características que descrevem a tendência ao isolamento como forma de não conseguir lidar com a realidade que vive e de diminuir seu sentimento de insuficiência; desenvolvimento de sentimento de onipotência como forma de lidar com a frustração e incapacidade, como também lidar com sentimentos de paranoia; desinteresse por seu trabalho; grande número de faltas (absenteísmo); impulsos de abandonar suas atividades; ironia e cinismo com colegas de trabalho, como também com pessoas a quem presta serviço.

Os sintomas psíquicos descrevem falta de atenção e de concentração, pois o indivíduo passa a ter dificuldade em focar em suas atividades, parecendo “ausente” ou tendo atenção seletiva apenas para o que ainda lhe interessa; alterações de memória influenciando sua capacidade de fixação e evocação, como também em lapsos; lentidão de raciocínio; sentimento de estar alienado do ambiente; solidão; impotência; instabilidade emocional; dificuldade de auto-aceitação e baixa autoestima; astenia, desânimo, disforia e depressão; desconfiança e paranoia.

Segundo Carvalho e Malagris (2007) a síndrome de burnout é constituída por três dimensões, que se constituiu na tríade multidimensional dos sintomas: exaustão emocional, despersonalização e a baixa realização profissional. A exaustão emocional faz alusão aos recursos emocionais onde o sujeito está privado de energia psíquica, ou seja, desprovido de investimentos libidinais para lidar com as emoções do trabalho. Nesta etapa já podemos verificar o sofrimento psíquico onde o sujeito sofre com a ausência do desejo, pois este mesmo sujeito vivencia conflitos inconscientes que se manifestam nas suas relações de trabalho através dos mecanismos de defesa conceituados por Freud (FREUD, 2011) e, posteriormente, também descritos por Anna Freud (FREUD, 2006), mecanismos estes que permeiam o campo psíquico do trabalho. Freud afirmou que a civilização se constrói através da lei que organiza o social, neste pacto o sujeito renuncia a busca da satisfação sem limites, mas a substituiu por satisfações que lhe são ofertadas pela sociedade (MARTINS, 2009). Dessa forma, não podemos esquecer que o desejo vai estar sempre presente no fazer humano. A negação da subjetividade vinculada ao desejo nos locais de trabalho, nas instituições e vida cotidiana se manifestam através de sintomas como uma grande ferida narcísica.

Neste ambiente psicodinâmico cada indivíduo colabora com sua subjetividade, assim apresentamos a segunda dimensão descrita pelos autores, a despersonalização.  Esta dimensão implica na relação negativa entre o profissional e o usuário de seu serviço, seja este paciente, cliente, aluno e etc. Afloram sentimentos que provocam rigidez afetiva no trabalhador em relação ao outro, tais como, ironia, indiferença e cinismo.

O vínculo que o sujeito constrói com seu trabalho é constituído desde a infância, perpassado por vínculos sociais, familiares em um contexto sociocultural.  Por ocasião da formação da identidade ocupacional, o sujeito se depara com a necessidade da escolha, sendo este um processo psicodinâmico (SANTOS-FILHO, BARROS, 2007). Posteriormente, o mesmo sujeito já formado profissionalmente, depara-se com uma realidade complexa que não fazia parte de sua construção laboral fantasiosa. Dessa forma, na impossibilidade de elaborar de forma saudável o conflito que se instala em seu ego ferido, o sujeito lança mão dos mecanismos de defesa, como forma de lutar para que seu ego não se desintegre diante de tantas frustrações. Assim, fantasiado pelo sentimento de onipotência, porém diante do complexo cotidiano de seu ambiente institucional que lhe causa frustrações, ambiente este que deveria lhe proporcionar grandes realizações, este sujeito imbuído de um grande sentimento de doação, realização, se frustra e se fragiliza, e, muitas vezes, a consequência disto é ter suas relações interpessoais prejudicadas, pois o profissional chega a seu contexto institucional com uma visão idealizada e sem preparo para encarar a realidade. Dessa forma, a identidade pessoal entra em choque com a identidade profissional.

A síndrome de burnout provoca desencontros nas relações interpessoais, pois desconecta o sujeito de seus vínculos sociais, esvaziando seus sentimentos e expectativas, “queimando” sua pulsão de vida e levando-o à inércia, ou seja, presentificando a pulsão de morte. Pulsão de vida e morte se entrelaçam e enlaçam a vida de cada indivíduo, porém quando este alcança a síndrome de burnout, o equilíbrio não mais existe, perdendo a pulsão de vida quase todo seu lugar para a pulsão de morte. Neste momento, a falta não mais move o desejo, mas sim congela o sujeito esvaziado.

O sujeito acometido pela síndrome também não mais conta com os mecanismos de defesa para proteger seu ego e afastar as ameaças, pois tais mecanismos passam a existir de forma exacerbada levando o indivíduo ao sofrimento psíquico, contribuindo para sua “queima” emocional, corroborando com o encarceramento de uma vida psíquica que passa a existir cheia de vazio, ou seja, esvaziada de sentido.

 

Considerações finais

A promoção de saúde não isenta o sujeito do encontro com o sofrimento, mas tem o intuito de não deixá-lo chegar ao sofrimento patológico, onde os mecanismos de defesa já não protegem mais seu ego, mas sim o colocam perante uma desigual luta inconsciente.

O sofrimento, frustrações e morte fazem parte da vida cotidiana destes profissionais. O avassalador superego não consegue controlar a dinâmica da vida. Assim, promover saúde é não ser prisioneiro de sofrimento e frustrações, mas sim poder lidar com seus conflitos.

É fundamental ter um entendimento psicodinâmico do sofrimento que envolve os profissionais de saúde no exercício de sua profissão, e que podem levá-los ao desequilíbrio emocional. Dessa forma, acolhendo o sujeito temos a chance de cuidar dos cuidadores, refletindo sobre a elaboração das relações interpessoais adoecidas para transformá-las ou resignificá-las.

E para finalizar, gostaria de compartilhar com vocês um poema por mim parido ontem no tempo limite de finalização deste trabalho que, como sugerimos no início, servirá de reflexão para continuarmos a buscar mecanismos para entendermos e acolhermos o sofrimento psíquico dos sujeitos acometidos pelo burnout.

Houve aqui também uma intencionalidade de justificar o tema deste evento a partir da escuta dos outros trabalhos até então apresentados, num processo de troca e cumplicidade.

 

Referências bibliográficas

BARROS, M. Elizabeth Barros de; SANTOS-FILHO, Serafim B.. Trabalhador da saúde – Muito prazer! Protagonismo dos trabalhadores na gestão do trabalho em saúde. Rio Grande do Sul: UNIJUI. 2007. 272 p.

BIEHL, KA. Burnout em psicólogos. 2009. Tese (Doutorado em Psicologia) – Instituto de Psicologia, Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Disponível em: <http://tede.pucrs.br/tde_arquivos/20/TDE-2009-06-26T134218Z-2030/Publico/412837.pdf>. Acesso em 2 mai. 2012.

BENEVIDES-PEREIRA, Ana Maria Teresa.(org.). Burnout: quando o trabalho ameaça o bem-estar do trabalhador. 3 ed. São Paulo: Casa do Psicólogo. 2008. 282 p.

CARVALHO, Liliane de; MALAGRIS, Lucia Emmanoel Novaes. Avaliação do nível de stress em profissionais de saúde. Estud. pesqui. psicol.,  Rio de Janeiro,  v. 7,  n. 3, dez.  2007 .   Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/pdf/epp/v7n3/v7n3a16.pdf>. Acesso em:  01  mai.  2012.

CID-10  - Classificação Estatística Internacional de Doenças. Porto Alegre: Artmed. 2009. 252 p.

FREUD, Anna. Os mecanismos de defesa. 1 ed. Porto Alegre: Artmed. 2006. 124 p.

FREUD, Sigmund. Sigmund Freud – Obras psicológicas completas. 1 ed. Rio de Janeiro: Imago. 2011. 8016 p.

LOPES, L. F. Síndrome de Burnout em profissionais de saúde. 2009. 52 f. Monografia – Faculdades São Camilo, Rio de Janeiro. 2009. Disponível em: <https://www.mar.mil.br/dsm/artigos/Monografia_LuisFernando.pdf>. Acesso em: 1 mai. 2012.

MARTINS, Soraya Rodrigues. Clinica do trabalho. 1 ed. São Paulo: Casa do Psicólogo. 2009. 195 p.

TRIGO, Telma Ramos; TENG, Chei Tung; HALLAK, Jaime Eduardo Cecílio. Síndrome de burnout ou estafa profissional e os transtornos psiquiátricos. Rev. psiquiatr. clín.,  São Paulo,  v. 34,  n. 5,   2007 .   Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rpc/v34n5/a04v34n5.pdf>. Acesso em: 1 mai. 2012.


[1] “Staff burnout” (The Journal of Social Issues,1974) e  “The staff burnout syndrome in alternative institutions” (PsychotherTheory Res. Practice, 1975)