Mara Regina Santos Rita de Cássia de Souza Moreira ¹ Adilma Nunes Rocha ²

Este trabalho tem como proposta apresentar uma análise do conto Amor de Clarice Lispector, a partir da teoria psicanalítica de Lacan.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura; psicanálise; Amor; Clarice Lispector.

Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? E que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver.

(Clarice Lispector, "Amor" in. Laços de Família, 1998. p. 26-27)

INTRODUÇÃO

O conto Amor de Clarice Lispector publicado no ano de 1982 encontrado na obra Laços de Família apresenta uma temática voltada para as questões existenciais, em que a personagem protagonista Ana, em um determinado momento da sua vida cotidiana rotineira demonstra uma extrema insatisfação com a realidade a sua volta.

A partir dos estudos sobre a teoria freudiana do psicanalista francês Jacques Lacan compreendemos a questão do sujeito humano, bem como seu lugar na sociedade e sua relação com a linguagem. Desse modo, procuraremos analisar a personagem Ana segundo o que Lacan define como o estado imaginário que seria uma condição em que nos falta qualquer centro definido do eu, no qual o eu que possuímos se confunde em uma incessante troca.

Clarice Lispector conhecida por sua complexa subjetividade e seus questionamentos do mundo externo sob o interno, nos proporciona uma leitura, em seu conto Amor, da tomada

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¹ Graduandos do curso de Letras Vernáculas da Universidade do Estado da Bahia – Campus XXI, VI semestre vespertino.

² Professor orientador

de consciência de mundo da personagem protagonista. Devido a isso, enxergamos em Ana a figura de uma ser humano com aspectos psicológicos incomuns, que nos possibilita uma análise psicanalítica.

A análise psicanalítica da personagem Ana, nos proporciona um maior entendimento das questões existenciais, são monólogos interiores da personagem que se acontecem e se combinam num estilo indireto livre até por fim se encontrarem em toda obra. Teremos então uma redução dos vários universos pessoais as correntes de consciência. A obra da autora sublinha a precariedade e o nomadismo da consciência da existência entre as aleluias e as agonias de ser.

Os teóricos de base utilizados para a elaboração deste artigo, foram: EAGLETON, 2001; RALLO, 2005; SCHUITZ, 2005.

LITARATURA E PSICANÁLISE

Jacques Lacan, psicanalista francês, estudou a psicanálise, a partir da teoria freudiana. Seu foco principal era a questão do sujeito humano, seu lugar na sociedade e a relação com a linguagem, sendo que a última era a de seu maior interesse.

Lacan na tentativa de reinterpretar Freud buscou embasar-se em suas teorias estruturalistas do discurso a fim de relacioná-lacom a psicanálise. Para Lacan a criança em seu desenvolvimento ainda não distingue o sujeito do objeto, logo ela se ver no estado imaginário numa condição que não permite que se defina ou que defina seu "eu". No período pré-edipianoa criança se sente dependente do corpo da mãe e em determinados momentos ela terá instintos agressivos contra o corpo da mãe.

Conforme a teoria lacaniana a criança ainda não se reconhece no espelho momento esse conhecido como "fase do espelho", pois ela ainda se vê no imaginário e não consegue aceitar a imagem que vê no espelho como sendo sua, é nessa fase que a criança começa a construir seu "eu".

O pai representa para a criança o incesto, pois ela ao perceber a distinção dos sexos entre a mãe e o pai, se sente apenas como parte de uma relação familiar. Como de acordo com o complexo de Édipo a criança se sente atraída pela mãe, ao descobrir o papel que o pai desempenha na família, reprime seu desejo culposo, conhecido como inconsciente.

A criança refletida no espelho é como uma espécie de "significante" algo que atribui significação e resulta em significado. O significante e o significado estão unidos como um signo, a criança se vê refletida no espelho e se assemelha ao reflexo, logo para Lacan os objetos refletem-se a si mesmos uns aos outros, acriança encontra plenitude na frente do espelho e a identidade total no significado de seu reflexo, ainda não foi estabelecido nenhum "hiato" entre o significante e o significado, entre o sujeito e o mundo.

As identidades surgem em conseqüência da diferenciação e da semelhança com outros sujeitos à sua volta, assim ao passar dessa fase a criança passa do imaginário para a "ordem simbólica" que conforme Lacan é a "estrutura pré existente dos papéis sexual e social e das relações que constituem a família e a sociedade".

Um significante leva a outro, o "mundo metafórico" do espelho transfere-se ao "mundo metonímico" da linguagem. Assim a partir dos significantes produzir-se-ão significações ou significados. De acordo com Lacan entende-se por desejo o "movimento interminável de um significante para outro", o desejo nasce pela falta de algo que se tenta suprir. Desse modo, a linguagem mexe com a falta, a ausência de objetos reais indicados pelos signos. Ao partir para a linguagem, consequentemente significa estar presa ao desejo e distante do "real", do que está inacessível e fora do alcance da significação, ou seja, exterior a "ordem simbólica".

Sendo assim, o inconsciente se estrutura como a linguagem, pois além de funcionar como metáforas e metonímias, também se assemelha a concepção pós-estruturalista da linguagem, sendo composto por menos signos e significações estáveis do que significantes. Em resumo, o "inconsciente é apenas um movimento e uma atividade constante de significantes, cujos significados nos são muitas vezes inacessíveis por serem reprimidos".

ANÁLISE PSICANALÍTICA DA PERSONAGEM ANA

O conto Amor de Clarice Lispector, de forma complexa e subjetiva, fazendo uso intenso de metáforas, relata a história da personagem Ana, uma simples dona de casa entregue a uma vida de rotina, como por exemplo, cuidar dos filhos, da casa e do marido. A personagem vive cercada por situações simples e corriqueiras, mas guarda em seu inconsciente desejos que insiste em negar por considerá-los um perigo à situação segura e reconfortante que imagina viver.

Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E crescia árvores, crescia árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno dos empregados do edifico. Ana dava a tudo, tranquilamente, suas mãos pequenas e forte, sua corrente de vida.

(LISPECTOR, p. 17-18)

A personagem Ana, procurava se entregar a uma vida tranqüila e previsível, na qual não poderia haver espaços para situações inusitadas. Mas, em determinados momentos um certo desconforto. Pois havia dentro dela, sensações que ela não conseguia negar, que insistia em emergir do seu inconsciente. A personagem se perdia, mas lutava para encontrar um equilíbrio em tudo que vivia. Ana desejava algo, mas que não sabia exatamente o que era. Estava presa àquele mundo de convenções e se sentia mais segura ali, "Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantava riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se.[...]" (LISPECTOR, p. 18).

Havia momentos na vida da personagem, sentimentos que guardava dentro de si, que causavam angústias, percebemos que a personagem se sente encurralada, perdida em si mesma, o que segundo Lacan pode ser considerado como se a partir do processo de auto-análise estivesse a procura do objeto de desejo que pode ser entendido como a liberdade, algo que está além do seu eu, mas que a personagem insiste em negar.

No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Nela havia aos poucos emergido[...].

(LISPECTOR, p. 18).

Ana constroe para si uma vida que segundo ela, considera segura e reconfortante, tenta deixar de lado toda aquela inquietação que a tempos a persegue e considera um perigo, uma ameaça, um risco a vida que havia escolhido para si mesma, assim procura ver as coisas que tem como certas, concretas e seguras, contrapondo aos sentimentos insólitos que sentira em sua juventude e volta e meia desperta do seu inconsciente.

Segundo a teoria de Freud do pós-estruturalismo, revista por Lacan, a personagem está presa a fase imaginária. E mesmo com o anseio de libertar-se da mesmice na qual está condicionada, tem medo. Não consegue se aceitar e reconhecer estas sensações que volta e meia se fazem presentes em sua mente, que poderiam ser vistas como a possibilidade de mudança da personagem por uma vida na qual poderia se auto-afirmar e ser sujeito da sua própria existência. Sem se prenderaos padrões e convenções da época. Sensações estas que poderia despertar a personagem do mundo imaginário e desperte para o que Lacan classifica como "Real", que se caracteriza por aquilo que causa inquietação, por estar fora do alcance da significação.

Seria preocupação, reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto – ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido.

(LISPECTOR, p. 19)

O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e escolhera.

(LISPECTOR, p. 18-19)

Esses momentos angustiavam a personagem, pois ela se defrontava com o que considera fantasmas interiores, mas que pode ser considerado como um fluxo de consciência em que a personagem, poderia se libertar daquele mundo que a oprimia. Só que por estar presa a fase do imaginário, Ana vê como se o perigo estivesse justamente nesses momentos de perturbação psicológica.

O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto. A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego. O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles.

(LISPECTOR, p. 19)

A partir deste fragmento, percebemos que a inquietação na personagem é ainda maior, ela finalmente emerge na pessoa do cego, e Ana se vê nele, o cego representa o significante, posto por Lacan, pois ele traz a tona o que tanto perturbava a personagem, a falta de liberdade, o seu desejo de ter uma vida diferente da que havia imposto a si mesma, "Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgira-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume (LISPECTOR, p. 20).

Seu desejo de liberdade emergia-se por fim, a personagem reconhece o sentimento que a tanto a perturbara, sentimento de frustração, de não realização, percebera que tudo aquilo que lhe bastara em um determinado momento não fazia mais sentido, era a tão sozinha liberdade que ficara presa em si mesma. Tudo que vivera até agora, não era real, passou a compreender isso na figura do cego com sua indiferença, a sua presença causara um grande transtorno a Ana, e fez com que entendesse que na sua condição não se sentia realizada, estava presa as convenções sociais e deixara de viver.

A rede de tricô era áspera entre os dedos, não intima como quando a tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido, não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçara ao redor. O mal estava feito. Porquê?. Teria esquecido de que haveria cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobre aviso, tinham um ar hostil, perecível... o mundo se tornara de novo um mal-estar.

(LISPECTOR, p. 21)

Neste fragmento percebemos que tudo se desconstroe ao redor da personagem, as coisas fugiram ao seu controle. Ela desperta para a realidade, e isso tudo a amedronta. Segundo Lacan, o "Real" que está causando problemas e angústias, tudo está se desorganizando a sua volta. E ela não sabe como lhe dar com essas novas sensações.

Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? E que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver.

(LISPECTOR, p. 27)

A situação de desconforto, era cada vez mais intensa, todos os questionamentos emergiam em sua mente, entre assumir a sua vontade de viver uma outra realidade, de sair deste mundo de convenções ou ignorá-la e deixar as coisas seguirem na mesma linha, continuar vivendo no mundo do imaginário.

Hoje de tarde alguma coisa tranqüila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver. Acabara-se a vertigem de bondade. E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela soprou a pequena flama do dia.

(LISPECTOR, p. 30)

A personagem a partir do que descreve Lacan em sua teoria do pós-estruturalismo, não consegue se libertar do mundo imaginário. Acaba se prendendo ao mundo no qual já estava acostumada, por considerá-lo mais seguro.

Sendo assim, Ana não consegue assumir sua própria identidade, desse modo segundo a teoria lacaniana, a personagem possivelmente teria se identificado com o cego, pois ele representa o seu próprio reflexo, uma pessoa igualmente limitada. Assim, conforme escreve Lacan, as identidades surgem em conseqüência das semelhanças com outros sujeitos a sua volta. Logo, Ana não consegue passar da fase do imaginário para a simbólica que de acordo com a teoria psicanalítica é a estrutura pré-existente dos papéis sexuais e sociais das relações que constituem a família e a sociedade.

Diante disso, o que parecia ser um relato de uma simples experiência acaba por nos mostrar uma grande revelação. A percepção de uma realidade atordoante, quanto a questões corriqueiras do cotidiano da personagem Ana.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O nosso trabalho buscou analisar o conto de Clarice Lispector Amor, a partir da visão psicanalítica. Sabemos que o objeto de estudo da psicanálise é decifrar os enigmas da experiência humana e na literatura é de grande contribuição, pois ambas lêem o homem na sua vivência cotidiana e seu possível destino histórico.

Desse modo, a psicanálise proporciona meios que permitem uma melhor leitura da literatura ou de uma obra literária como o nosso caso. Sendo assim, a teoria a qual nos atentamos, a partir de Lacan, para analisarmos a personagem Ana foi de grande contribuição para entendermos o comportamento incomum da personagem frente a realidade e seu lugar na sociedade e no mundo.

REFERÊNCIAS

EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. 4ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

LISPECTOR, Clarice. "Amor" in. Laços de Família. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

RALLO, Elizabeht. Métodos de crítica literária. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

SCHUITZ, Duane P. História da psicologia moderna. São Paulo: Pioneira Thompson Learning, 2005.